O Coronavírus (Sar-Cov-2), causador da COVID-19, tem se disseminado por todo o mundo, e umas das áreas mais críticas atualmente é a cidade de Manaus. Aqui abordamos e ressaltamos o colapso de saúde pública que Manaus enfrenta e que começa a se propagar pelo interior, afetando drasticamente toda a população, mais especialmente os povos indígenas, que vem sendo negligenciados. A medida mais eficaz para conter o espalhamento da doença é um “lockdown” (proibição de circulação exceto para comprar comida, etc.).
A cidade de Manaus atualmente enfrenta uma taxa de mortalidade 108% maior que as taxas históricas [1]. Um estudo realizado pelo Imperial College London estimou que tanto as taxas de contaminação como as mortes por COVID-19 estejam grosseiramente subestimadas no Brasil [2]. Manaus foi a primeira cidade do Brasil a enterrar os mortos por COVID-19 em valas comuns, sendo as altas taxas de mortalidade pelo vírus a causa do colapso do sistema funerário da cidade [3].
Para fins de comparação do tamanho do problema de saúde pública que o município enfrenta, Manaus tem metade da população do Amazonas, um estado que representa apenas 2% da população do Brasil, mas o Amazonas apresentou 8,4% das mortes pelo COVID-19 oficialmente reconhecidas pelo país até 07 de maio.
Neste drástico cenário, os povos indígenas têm uma vulnerabilidade ao COVID-19 maior que pessoas não indígenas, como alertamos em uma carta na revista Science [4,5]. Na cidade de Manaus, indígenas de diferentes etnias contraíram o COVID-19 e morreram [6]. Muitas vezes a contaminação ocorreu dentro do próprio hospital, quando estas pessoas tratavam de outras enfermidades, como aconteceu com indígenas das etnias Tikuna e Kokama [7].
O número de indígenas infectados pelo coronavírus é claramente grande, embora não existam estatísticas confiáveis, pois muitos indígenas que morrem na cidade são classificados como não indígenas em números oficiais [8], o que dificulta o traçar de políticas públicas que sejam efetivas para proteger os povos indígenas do COVID-19.
Indígenas no Amazonas denunciaram ao Ministério Publico que eles não estão conseguindo atendimento tanto pelo sistema de saúde municipal local, quanto pelo Dsei (Distrito Sanitário Especial Indígena) no Alto Solimões [9]. Isto é um reflexo da pandemia que se alastra da capital para o interior, ampliando o colapso de saúde e vulnerabilizando os povos indígenas.
Embora as políticas públicas para conter a pandemia sejam claramente insuficientes, pressões vêm de múltiplos lados com a finalidade de relaxar o isolamento social. Um exemplo de uma política pública que em nada contribui para sanar os problemas de Manaus é a medida aprovada pela Assembleia Legislativa para reabertura de templos e igrejas, o que diminuirá o isolamento social [10].
O governo do Estado do Amazonas também indicou uma possível abertura do comércio no dia 14 de maio [11], indo contra todas as recomendações científicas para tornar mais rígido o isolamento social [4]. Para agravar a situação, duas associações comerciais, a CIEAM (Centro da Indústria do Estado do Amazonas) e FIEAM (Federação da Indústria do Estado do Amazonas), entraram com pedidos judiciais para barrar qualquer implementação de “lockdown” [12].
A cidade de Manaus precisa reverter imediatamente a abertura das igrejas, além de reverter decisões recentes reclassificando como “essenciais” atividades como salões de beleza, academias e construção civil. Em 12 de maio o prefeito de Manaus prolongou o fechamento de comércio “não essencial” até o final de maio, embora, por medo de não conseguir evitar distúrbios civis, ele é contra um “lockdown” [13].
A falta de um fechamento total, inclusive com “lockdown”, faz com que seja mais provável que a cidade enfrente um novo pico de casos de coronavírus. A falta de “lockdown” coloca toda a população de Manaus em risco e aumenta a disseminação do coronavírus para o interior onde existe ainda maior carência de assistência básica de saúde pública, além de uma maior fragilidade dos povos indígenas à pandemia.
O lockdown é uma medida necessária neste momento, e empresas e entidades religiosas que se manifestem contrarias a medida estarão prolongando a pandemia que afeta a saúde do povo amazonense, e também retardando a recuperação econômica do estado e do país.
Notas:
[1] G1-AM. 2020. AM registra recorde de mortes e casos confirmados de Covid-19 em um único dia; total chega a 8.109 infectados e 649 mortos. G1, 05 de maio de 2020.
[2] Bhatia S et al. 2020. Short-term forecasts of COVID-19 deaths in multiple countries. Imperial College London, 10 de maio de2020.
[3] Phillips, T. & F. Maisonnave. 2020. ‘Utter disaster’: Manaus fills mass graves as Covid-19 hits the Amazon. The Guardian, 30 de abril de 2020.
[4] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2020. Protect Brazil’s Indigenous peoples from COVID-19. Science 368: 251. https://doi.org/10.1126/science.abc0073
[5] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2020. Proteger os povos indígenas do COVID-19. Amazônia Real, 17 de abril de 2020.
[6] Farias, E. & E. da Costa. 2020. Coronavírus: Indígenas estão sendo infectados dentro das Casais no Amazonas e Roraima. Amazônia Real, 24 de abril de 2020.
[7] Ferrante, L. 2020. Comunicado pessoal, Fonte Liderança indígena Marcivania Sateré Maué.
[8] Farias, E. 2020. Coronavírus: Indígenas que vivem na cidade são classificados como “brancos” no Amazonas. Amazônia Real, 16 de abril de 2020. https://amazoniareal.com.br/coronavirus-indigenas-que-vivem-na-cidade-sao-classificados-como-brancos-no-amazonas/
[9] Amazonas Atual. 2020. Índios denunciam que são rejeitados em hospitais no interior do Amazonas. Amazonas Atual, 09 de maio de 2020.
[10] Amazonas Atual. 2020. Assembleia do Amazonas aprova projeto que reabre igrejas e templos na pandemia. Amazonas Atual, 06 de maio de 2020.
[11] Folhapress. 2020. Governador do Amazonas anuncia reabertura gradual do comércio em Manaus. Valor Econômico, 01 de maio de 2020.
[12] Juizo da 1° vara de fazenda pública da comarca de Manaus – AM. Processo Nº 0814463-25.2020.8.04.0001.
[13] BBC News-Brasil. 2020. Lockdown pode terminar em ‘tiro e morte’, diz prefeito de Manaus. BBC News-Brasil, 08 de maio de 2020.
Imagem que abre este artigo mostra a vala comum aberta pela Prefeitura de Manaus, para o enterro de pessoas de baixa renda, no cemitério N.S. Aparecida em Manaus (Foto: Fernando Crispim/La Xunga/Amazônia Real)
Lucas Ferrante é doutorando em Biologia (Ecologia) no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Tem pesquisado agentes do desmatamento, buscando políticas públicas para mitigar conflitos de terra gerados pelo desmatamento, invasão de áreas protegidas e comunidades tradicionais, principalmente sobre Terras indígenas e Unidades de Conservação na Amazônia (lucasferrante@hotmail.com).
Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 600 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.
Fonte: https://amazoniareal.com.br/porque-precisa-de-lockdown-em-manaus/
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