Quase três mil militares integram o governo Bolsonaro, que tem 16 meses de vida. Nenhum dos seis governos do regime militar, que se sucederam ao longo de 21 anos, entre 1964 e 1985, incluindo a junta formada pelos chefes das três forças armadas (entre a doença de Costa e Silva e a assunção de Garrastazu Médici, 1968-69), tiveram tantos militares em cada uma delas e no seu conjunto.

A participação de militares foi crescendo de forma progressiva, mas constante. Hoje, é como se o capitão da reserva Jair Messias Bolsonaro tivesse sob o seu comando efetivo maior do que o de um regimento de exército, podendo dar ordens a oficiais superiores, até mesmo a generais cinco estrelas.

Quando os nomes do general de brigada Albuquerque Lima e dos coronéis Jarbas Passarinho e Mário Andreazza foram especulados para a presidência da República, a impossibilidade prática dessas alternativas esbarrou na resistência dos generais. “Não bato continência para coronel”, advertiu logo o general Orlando Geisel, irmão do então presidente, ao qual dava suporte na tropa.

Os bolsonaristas podem alegar que essa mudança foi positiva e seria mesmo incontornável. Os militares mandam nos quartéis, mas foi Bolsonaro o eleito, circunstância que confere legalidade e legitimidade ao seu poder de mando, inclusive como comandante-em-chefe das forças armadas.

É verdade. Desde então, porém, o que o capitão tem feito é desfazer os elos com essa origem e solapar as bases do único regime que possibilita a representação dos cidadãos no poder pelo voto direto e universal: a democracia. A militarização do governo, como nunca antes na história republicana brasileira, não é fortuita nem casual.

O propósito de colocar as forças armadas como avalistas compulsórias de um membro da corporação, o único que chegou ao topo do poder pelo voto da maioria dos eleitores brasileiros, se evidencia de múltiplas maneiras. Como na ocupação de um cargo tipicamente civil, a chefia da casa civil da presidência da república, por um general, Braga Netto.

É verdade que o general Golbery do Couto e Silva ocupou a função nos governos de Geisel e Figueiredo, mas ele tinha um longo histórico como anfíbio, com um pé na caserna e outra na sociedade política. Foi até presidente da multinacional Dow Chemical. E era um dos principais ideólogos da união civil-militar através da Escola Superior de Guerra, a Sorbonne brasileira.

O pior, Bolsonaro fez agora. Colocou um general, Eduardo Pazuello, no Ministério da Saúde, no lugar dos médicos Luiz Eduardo Mandetta (também político) e Nelson Teich (só médico). Maravilhas da capacidade de articulação em logística e comando administrativo são atribuídas ao general, mas ele é um neófito total em saúde. Alguma coisa explica  esse ministério ter tido sempre um médico por chefe.

A irresponsabilidade de Bolsonaro nesse caso é chocante. Com o mando militar, ele transformou o Ministério da Saúde num quartel. Essa configuração seria até apropriada. O combate à pandemia do coronavírus não é uma guerra? Nada mais natural do que um general estar à frente (ou à retaguarda) da tropa (civil, porém, neste caso). Aplica-se a velha frase do líder francês Clemenceau: “A guerra é um assunto grave demais para entregá-la aos militares”?

Não é preconceito contra os militares. A França entende bastante de guerra e Clemenceau era um político conservador – e respeitado. É dele também a frase duríssima: “O nacionalismo é o covil dos canalhas”. Não acrescentou: covil dos políticos.

Bolsonaro sabotou deliberadamente o trabalho do ministro que escolheu para substituir Mandetta, com o qual não se entendeu – por deliberada decisão de não buscar entendimento. Presumia-se que, para o bem ou o mal, ele tinha resolvido esse problema. Mas Teich não sobreviveu sequer um mês. Por um motivo simples: queria atender o presidente, mas sem ignorar a ciência, tanto para evitar a contaminação (e curá-la) como enfrentar racionalmente a doença.

Teich logo percebeu que a conciliação era impossível. O presidente, que nada entende da questão, como admitiu na reunião do ministério no mês passado, tem certezas absolutas e não abre mão delas. O problema é sujeitar milhões de pessoas à condição de cobaias, conforme o recado da OMS ao decidir suspender as pesquisas com a cloroquina, endeusada por Bolsonaro.

Pelas declarações que ele deu (com outra fisionomia e postura), conclui-se que Teich estava na direção certa ao dar ênfase na universalização dos testes para definir um isolamento seletivo, a partir da revelação das informações sobre cada uma das realidades a atacar. Nem isolamento vertical nem horizontal. O Brasil ainda não chegou a 750 mil testes (os EUA têm 15 milhões), 3.461 testes por milhão de habitantes EUA: 46 mil); Rússia, 61 mil, com sete vezes menos mortes do que o Brasil).

Ninguém mais discorda do presidente, que, sem ser médico nem entender de medicina, se transformou em pajé branco. Mas o Brasil conseguiu ser o segundo do mundo em casos e mortes por coronavírus. Passando a ser tratado como o novo epicentro mundial da doença. A partir de amanhã, quem tiver saído ou passado pelo Brasil, não poderá pousar nos Estados Unidos. Ordem de Donald Trump. que irá vigorar a partir de amanhã. Não para o seu amigo Jair Messias Bolsonaro, evidentemente.

A imagem acima mostra Bolsonaro recebido por um pequeno grupo de indígenas e não indígenas, em Manaus, em 2019. Entre eles, está Raimundo Sobrinho, que foi proibido pelos Waimiri-Atroari de se identificar como sendo desta etnia.(Foto: Alan Santos/PR)


Além de colaborar com a agência Amazônia Real, Lúcio Flávio Pinto mantém quatro blogs, que podem ser consultados gratuitamente nos seguintes endereços:

lucioflaviopinto.wordpress.com – acompanhamento sintonizado no dia a dia.

valeqvale.wordpress.com – inteiramente dedicado à maior mineradora do país, dona de Carajás, a maior província mineral do mundo.

amazoniahj.wordpress.com – uma enciclopédia da Amazônia contemporânea, já com centenas de verbetes, num banco de dados único, sem igual.

cabanagem180.wordpress.com – documentos e análises sobre a maior rebelião popular da história do Brasil.


Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com.

 

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/o-brasil-do-paje-bolsonaro/

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