No próximo dia 11 de junho completa três meses que a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou a existência da pandemia do novo coronavírus no mundo. Na Amazônia brasileira, os povos indígenas foram tomando medidas por conta própria para se protegerem da doença Covid-19. As medidas de contingenciamento demoraram a chegar. No caso dos indígenas, o Ministério da Saúde (MS) divulgou um plano no dia 17 de março, apenas após o Ministério Público Federal recomendar ações emergências.
No Brasil, o MS notificou de 26 de favereiro até esta terça-feira (2) 555.383 casos confirmados do novo coronavírus e 31.199 mortes.
Na região amazônica a primeira morte por Covid-19 entre indígenas brasileiros foi registrada em 19 de março, no Pará. No entanto, o nome de Dona Lusia dos Santos Lobato, de 87 anos, do povo Borari, não consta na estatística do Ministério da Saúde como indígena pelo fato que ela morava fora de aldeia reconhecida pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e pela Política Nacional de Saúde Indígena da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Para o órgão, o primeiro caso de coronavírus no país foi da indígena Kokama, Suzane da Silva Pereira, 20, em 1º de abril, no Amazonas. Agente de saúde, que foi curada da doença, contraiu o vírus de um médico infectado da equipe do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Alto Solimões.
Em três meses, a pandemia do coronavírus já atingiu 1.371 indígenas de 56 povos da Amazônia e provocou 151 mortes, segundo dados da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e da Sesai divulgados entre os dias 31 de maio e 1o. de junho, respectivamente. Entre os mortos há 107 indígenas de territórios situados no estado do Amazonas. Desse total, a etnia Kokama é a mais afetada. Em 14 de maio eram 37 mortes. Em quinze dias, o número subiu para 51 pessoas óbitos durante a pandemia, segundo a Coiab.
Desde o mês de março, a agência Amazônia Real tem entrevistado médicos epidemiologistas, infectologistas e pesquisadores que atuam na região amazônica para trazer estudos e opiniões sobre a pandemia e sua disseminação entre os povos indígenas. Nesta nova reportagem, os entrevistados são os médicos Paulo Cesar Basta, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, Bernardino Albuquerque, presidente do Comitê Central de Combate à Covid-19 da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), e Douglas Rodrigues, que compõe Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Eles explicam o que é o coronavírus, a doença Covid-19, como ela surgiu e como afeta a saúde da população tradicional.
O que é a Covid-19?

Covid-19 é uma doença infecciosa causada pelo novo coronavírus, que foi identificado por cientistas na cidade de Wuhan, na China, em dezembro de 2019. O novo coronavírus recebe o nome de SARS-Cov-2. O nome vem da sigla em inglês referente à síndrome respiratória aguda grave, provocada por este novo coronavírus.
Esta doença não é uma gripe, nem mesmo um resfriado. Alguns de seus sintomas podem ser similares aos da gripe, mas a Covid-19 ainda é uma doença nova, e relativamente desconhecida. Sabe-se que ela ataca diversos órgãos do corpo humano, para além do sistema respiratório e que ela tem causado um elevado número de mortes em diversos países do planeta, entre eles, o Brasil.
De acordo com o Dr. Paulo Cesar Basta, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, “Covid-19 é uma doença emergente, uma doença que era desconhecida da sociedade, da ciência, da medicina, e que passou a existir a partir de um determinado momento, em dezembro de 2019. Só o fato dela ser uma doença emergente já lhe confere características especiais. Trata-se de uma doença infectocontagiosa, transmissível, provocada por um vírus, da família do coronavírus”.
O que é o novo coronavírus?
Segundo o site do Hospital Israelita Albert Einstein, “os coronavírus são uma grande família de vírus que podem causar doenças em animais e humanos. Em humanos, os coronavírus provocam infecções respiratórias, que variam do resfriado comum a graves doenças”.
Quais são os sintomas de uma pessoa contaminada?
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), “os sintomas mais comuns da Covid-19 são febre, cansaço e tosse seca. Alguns pacientes podem apresentar dores, congestão nasal, dor de cabeça, conjuntivite, dor de garganta, diarreia, perda de paladar ou olfato, erupção cutânea na pele ou descoloração dos dedos das mãos ou dos pés. Esses sintomas geralmente são leves e começam gradualmente. Algumas pessoas são infectadas, mas apresentam apenas sintomas muito leves”.
Ainda de acordo com a OMS “uma em cada seis pessoas infectadas por covid-19 fica gravemente doente e desenvolve dificuldade de respirar”.
Por que a Covid-19 não é uma “gripezinha”?

De acordo com o Dr. Bernardino Albuquerque, médico infectologista, professor e presidente do Comitê Central de Combate à Covid-19 da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), “ao contrário do que se tem propagado por aí, de que essa doença é igual a um resfriado comum, existem diferenças marcantes. Ela acomete o trato respiratório, mas também os outros órgãos como rins, cérebro, coração. É uma doença sistêmica e que compromete também o sistema de coagulação. Este é um grande diferencial que a ciência tem mostrado, no que diz respeito a essa infecção da Covid-19”.
O Dr. Paulo Basta, da Fiocruz, afirma ainda que o vírus “possui uma letalidade relativamente elevada, sobretudo em pessoas maiores de 60 anos e que possuem doenças pré-existentes, principalmente no sistema cardiovascular, como pressão arterial elevada. A falência respiratória está sendo atribuída a processos de trombose e embolia que ocorrem no parênquima pulmonar. Esses micro-trombos vão até a árvore respiratória, causando um processo inflamatório e fazendo com que a pessoa afetada tenha dificuldade de respirar, baixando assim o nível de saturação de oxigênio. Se não houver um tratamento adequado, às vezes com ventilação mecânica, a doença pode evoluir gravemente, levando o paciente a óbito”.
Como se dá a contaminação por Covid-19?

(Foto: DSEI ARS)
Segundo o Dr. Paulo Basta, “o vírus tem um alto potencial de contágio, majoritariamente sendo transmitido pelas vias aéreas, através de gotículas respiratórias produzidas por intermédio de tosse e espirro e que ficam suspensas no ar”.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), explica que “as gotículas também podem pousar em objetos e superfícies ao redor da pessoa – como mesas, maçanetas, celulares e corrimãos. As pessoas podem pegar Covid-19 quando tocam nesses objetos ou superfícies com as mãos ou outra parte do corpo e, em seguida, tocam os olhos, nariz ou boca. É por isso que é importante lavar as mãos regularmente com água e sabão ou limpá-las com álcool em gel”.
Dr. Bernardino Albuquerque complementa, ao afirmar que “outra forma importante, e até certo ponto invisível, é a contaminação de superfícies e objetos por material infectante. O vírus tem o potencial muito grande de transmissão indireta. Outras vias começam a surgir com possibilidade, como a transmissão fecal-oral. Hoje já está se encontrando o vírus em alguns mecanismos de escoamento de dejetos humanos. Ainda não está bem caracterizado se o vírus tem capacidade ou não de infecção [quando escoados junto a dejetos humanos]. A ciência procurará demonstrar a viabilidade dessa forma de transmissão”.
Quem pode se contaminar?
Todas as pessoas estão sujeitas a se contaminarem por Covid-19. Não é verdade que apenas pessoas maiores de 60 anos ou com comorbidades desenvolvam casos graves da doença, conforme esclarecem os médicos.
O Dr. Bernardino Albuquerque explica que “esse vírus vem demonstrando que é altamente agressivo, com a capacidade de ocorrer formas graves e levar ao óbito. Hoje temos situações vivenciadas que demonstram que essa situação não é exclusiva dos pacientes que têm comorbidades ou pessoas de faixa etária acima de 60 anos. Tem um percentual crescente que indica que sim, a doença tem a capacidade de agressão em indivíduos sem comorbidades e também fora da faixa etária dos acima de 60 anos”.
Como se prevenir?

De acordo com o Ministério da Saúde (MS) do Brasil, “atitudes adotadas no dia a dia, como lavar as mãos e evitar aglomerações, reduzem o contágio pelo coronavírus. O MS recomenda a redução do contato social o que, consequentemente, reduzirá as chances de transmissão do vírus”.
Especialistas também indicam que além de lavar as mãos e usar o álcool em gel, evitar levar as mãos ao rosto, e não tocar boca, nariz e olhos ajuda prevenir a contaminação pelo novo coronavírus.
O Dr. Paulo Basta ressalta que “embora a gente esteja vivendo a era da tecnologia digital, da informação, a única estratégia que se mostrou eficaz para enfrentar a epidemia por enquanto é a quarentena, que é uma estratégia utilizada desde a Idade Média para conter a disseminação da peste [bubônica]. Isso é o que temos de melhor no momento até surgir uma vacina ou um medicamento eficaz para o tratamento da doença”.
O especialista em epidemiologia afirma ainda a importância de se estabelecer “‘etiquetas’ individuais que incluem cuidados redobrados com a higiene das mãos, o uso de máscara e de luvas, mas também lembra da importância das medidas de contenção, a fim de evitar que as pessoas se desloquem sem necessidade aos centros urbanos, principalmente quando estamos falando de populações vulneráveis, que não dispõem de renda fixa, que tem acesso limitado aos serviços básicos de saúde e que vivem em uma situação de permanente insegurança alimentar”.
Por que as máscaras são importantes?

De acordo com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), “a recomendação de uso de máscaras caseiras em larga escala tem como base a proteção coletiva, uma vez que muitas pessoas podem estar infectadas e serem assintomáticas. Ou seja, poderiam estar transmitindo a doença sem saberem que estão com o vírus”.
A Fiocruz ressalta ainda que “o uso de máscaras caseiras pela população em geral pode causar uma falsa sensação de proteção. A Fiocruz recomenda, portanto, que as pessoas façam o uso correto da máscara caseira, não a compartilhando com familiares, não tocando o rosto depois de colocá-la e fazendo a sua limpeza conforme orientação do MS, e reforça a necessidade de manutenção do isolamento social e das medidas de higiene para o combate à Covid-19”.
Veja aqui vídeos explicativos sobre como fazer e usar as máscaras
Por que a quarentena salva vidas?

O Dr. Douglas Rodrigues compõe Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Há décadas ele trabalha na contenção de epidemias junto a população indígena. Ele é enfático ao afirmar a importância da quarentena e do atendimento primário à saúde. Sem eles, “fica todo mundo doente e morre na porta do hospital”.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, “a maioria das pessoas (cerca de 80%) se recupera da doença sem precisar de tratamento hospitalar”. O problema é que como o vírus se espalha muito rapidamente, mesmo que o percentual de pessoas contaminadas que necessitem de internação seja baixo, o número total é maior do que a capacidade hospitalar.
A nota da OMS ressalta que “qualquer pessoa pode pegar a Covid-19 e ficar gravemente doente. Pessoas de todas as idades que apresentam febre e/ou tosse associada a dificuldade de respirar/falta de ar, dor/pressão no peito ou perda da fala ou movimento devem procurar atendimento médico imediatamente. Se possível, é recomendável ligar primeiro para a(o) médica(o) ou serviço de saúde, para que a(o) paciente possa ser encaminhada(o) para a clínica certa”.
Desta forma, a quarentena previne que todos adoeçam ao mesmo tempo, permite ao sistema de saúde se organizar e a ciência avançar na pesquisa sobre formas de tratamento mais eficazes da Covid-19. Desde meados de maio, por exemplo, se sabe que anticoagulantes devem ser utilizados em tratamentos de casos graves. Isso era algo desconhecido no início da pandemia.
Cuidados voltados aos indígenas e ribeirinhos
O Dr. Douglas Rodrigues sugere que sejam criadas estruturas, como casas ou tendas de isolamento.
“Senão, no oitavo dia de sintomas, o cara já contaminou a aldeia inteira”, afirma o sanitarista. Para o médico, “uma boa alimentação, cuidados básicos de saúde e acompanhamento com oxímetro 24h por dia na própria comunidade pode reduzir a letalidade do vírus, antes dos quadros clínicos piorarem e tornarem necessária a internação hospitalar”.
“Essa mitigação, do meu ponto de vista, acaba por separar os casos, e que menos pessoas se desenvolvam casos graves. Em média, 5% das pessoas doentes precisam de medicação. E se elas forem cuidadas precocemente? E se elas receberem oxigênio nas aldeias? E se eu der uma alimentação boa? E se eu tratar das doenças graves? Isso pode diminuir a gravidade”, afirma o Dr. Douglas Rodrigues.
O médico também ressalta a importância do uso de oxímetros nas aldeias, aparelho que mede a taxa de oxigenação no sangue: “se cair abaixo de 95%, retirar a pessoa, direto para o hospital”.
Vale lembrar da importância de não se compartilhar objetos pessoais, como cuias, garfos, facas, colheres, copos e pratos.
Proposta para o enfrentamento da Covid-19

(Foto: Dsei Yanomami)
A Amazônia Real teve acesso à Proposta para o enfrentamento da Covid-19 em terras indígenas, elaborada pelo Dr. Paulo Basta. Este documento vem circulando entre epidemiologistas e gestores da área de saúde. Ele está dividido em duas partes: ações emergenciais (curto prazo) e ações estruturantes (médio prazo).
Entre as ações emergenciais da proposta, merecem destaque o desenvolvimento de ações para:
- Garantir o isolamento das comunidades para evitar a entrada do vírus;
- Garantir acesso a água potável, alimentos, produtos de higiene, recursos financeiros e benefícios sociais aos membros da comunidade, sem que os mesmos precisem se deslocar até a sede dos municípios de referência;
- Ampliar o cadastro de famílias vulneráveis no CadÚnico, a fim de ampliar o recebimento de benefícios (auxílio emergencial), respeitando os pressupostos de não deslocar indígenas para as sedes municipais
- Ampliar ações para garantir a atenção à saúde de forma continuada nas comunidades
- Criar um sistema de plantão (12h / por dia / 7 dias na semana) via radiofonia para que profissionais treinados (preferencialmente médicos e enfermeiros) possam dar orientações às equipes que estão no território, notadamente para os AIS
- Assegurar que todos integrantes das Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI) que atuam em terras indígenas sejam testados para Covid-19 (com a PCR) e recebam avaliação clínica, a fim de garantir a condição de não portadores, antes de ingressar nos territórios
- Garantir a distribuição de EPI em quantidade e qualidade suficientes (incluindo luvas, máscaras, protetores faciais, óculos, aventais etc) para o trabalho das equipes em área;
- Iniciar a vacinação contra a gripe como uma das ações prioritárias em saúde nas aldeias;
- Mapear os DSEI e as localidades que estão sob maior risco de contágio e transmissão da Covid-19 para o desenvolvimento de ações específicas;
- Montar hospitais de campanha ou unidades de referência intermediárias equipadas com medicamentos e suprimento de oxigênio em pontos estratégicos das terras indígenas (por exemplo, em aldeias onde existam pelotões especiais de fronteira, acesso à internet e pista de pouso) para prestar atendimento emergencial aos casos de necessitem de cuidados intensivos e remoção para unidades hospitalares.

(Foto: Dsei ARS)
Fonte: https://amazoniareal.com.br/medicos-explicam-o-que-e-a-covid-19/
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