Iniciativa reúne informações e amostras generosas da produção audiovisual, que as transforma em protagonistas das próprias histórias. Crescimento da rede na América Latina é uma das metas. A imagem acima, a cineasta indígena Aida Harika Yanomami (Foto: Marília Senlle/Divulgação).


São Paulo (SP) – Katahirine é uma palavra que significa constelação para a etnia Manchineri e também dá nome a uma rede que agrupa uma constelação de cineastas mulheres indígenas brasileiras em torno de um site (https://katahirine.org.br/), com informações em primeira pessoa sobre elas e amostras generosas de sua produção audiovisual. Até o momento de lançamento público, em 29 de abril, a Katahirine – Rede Audiovisual das Mulheres Indígenas havia mapeado 75 cineastas indígenas pelo Brasil adentro, das quais 57 já estão integradas à rede. O crescimento da rede é uma das metas iniciais, em nível não apenas nacional, mas da América Latina como um todo.

Por critérios definidos pelas próprias indígenas, elas não se agrupam no site pelas divisões regionais estipuladas por brasileiros não-indígenas, mas sim a partir dos diversos biomas que habitam. Segundo a rede, 15 realizadoras vêm da Amazônia, 18 da Mata Atlântica, 16 do Cerrado, sete da Caatinga e uma do Pampa. O Pantanal é o único bioma brasileiro por enquanto sem representação.

Não só em termos nacionais, mas também entre as cineastas da Amazônia, a diversidade é outro dos propulsores da Katahirine, desenvolvida pelo Instituto Catitu, empenhado no fomento ao protagonismo indígena, especialmente o feminino. Aida Harika Yanomami e Roseane Yariani Yanomami, por exemplo, representam a etnia Yanomami a partir das aldeias Watoriki e Buriti, ambas situadas na região do rio Demini, no Amazonas. O site oferece uma amostra do curta-metragem Thuë Pihi Kuuwi – Uma Mulher Pensando, co-assinado por ambas e apresentado como a primeira produção dirigida e apresentada por mulheres Yanomami. A partir do Acre, Ayani Huni Kuin reverencia a cultura Huni Kuin no média-metragem Ayani por Ayani, predominantemente falado na língua materna e centrado na figura de Ayani, avó da diretora.

Cineasta indígena Ayani Huni Kuin (Foto: Divulgação/Rede Katahirini)

Nascida na Terra Indígena Alto Rio Negro, no município de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, Francy Baniwa apresenta na rede Katahirine o média-metragem Kupixá Aqui Peé Itá – A Roça e Seus Caminhos . Sem diálogos verbais frontais para a câmera, o filme documenta o dia e a noite no leito do rio Negro, o trabalho indígena feminino e masculino, o descanso dos adultos nas redes e o lazer infantil no rio, os rituais de alimentação, a interação amistosa entre os cachorros e macacos da aldeia, e assim por diante. 

Cineasta indígena Francy Baniwa (Foto: Divulgação/Rede Katahirini)

“Sou a primeira mestra do meu povo”, orgulha-se Francy Baniwa, graduada em sociologia, mestra e doutoranda em antropologia, fotógrafa, cineasta, pesquisadora e professora, entre muitas atividades. Um dos propósitos de sua obra é evidenciar “o protagonismo das mulheres como guardiãs dos idiomas indígenas”, segundo explica. “Eu via a minha língua como estrangeira. A gente assiste a tantos filmes em inglês, por que não fazer filmes nas nossas línguas?”, questiona. 

Da mesma etnia é Lily Baniwa, atriz, performer e artista-pesquisadora indígena amazonense da comunidade de Itacoatiara-Mirim, no município de São Gabriel da Cachoeira. Graduanda em artes cênicas pela Unicamp, Lily exibe no site o filme-espetáculo Whaa – Nós, Entre Ela e Eu, o vídeo-performance-manifesto Lithipokoroda Ooni, um curta-metragem centrado nas águas, desde as límpidas dos igarapés e as escuras do rio Negro até as poluídas das regiões mais urbanizadas. “Há um tempo, o barco do sonho trouxe uma gripe forte para nós, a Covid-19. Meu avô conta que ainda não acabou, que ainda virão cinco ou seis doenças como essa”, narra a voz feminina de Lily, em idioma Baniwa, no poético Ooni . Outros trechos, falados em português, são legendados em Baniwa, indicando que a atual produção é primordialmente de indígenas para indígenas. Outra Baniwa é Elisangela Fontes Olimpio, criadora de Kupixá Yanéktiwara – Nora Malcriada.; e Vanessa Pãteani Huni Kuin exibe o média-metragem Pachamama 3 e o curta Nixpu Pima – Rito de Passagem Huni Kuin.

Cineasta indígena Lily Baniwa (Foto: Divulgação/Rede Katahirini)

A realizadora Cileuza Quero Jemiusi, nascida na Aldeia Paredão, no Acre, e integrante do Coletivo Ijã Mytyli de Cinema Manoki e Myky, também investe na questão linguística, no belo curta Os Espíritos Só Entendem Nosso Idioma. “Hoje eu não posso falar minha língua, mas não vou desistir de fazer poesia nela”, declara a narradora. E complementa, adentrando temas políticos de alta relevância: “Hoje somos uma ilha verde cercada por um deserto de lavouras”.

Aldira Akai Munduruku e Rilcelia Akai Munduruku integram o coletivo audiovisual Munduruku Daje Kapap Eypi, a partir do Médio Tapajós, no Pará, e começou a filmar em 2019, numa ocupação promovida pelos Munduruku para expulsar madeireiros da região. Entre os filmes assinados coletivamente pelo grupo estão Covid-19 na Aldeia Autodemarcação Já!, o mais recente deles. “Nosso coletivo foi muito ameaçado, principalmente pelos garimpeiros, porque a gente vinha colocando a questão do garimpo e da contaminação por mercúrio dentro do nosso território”, afirma Beka Munduruku, de 19 anos. No site da Katahirine, o coletivo  disponibiliza os filmes Mensageiras da Amazônia Energia Solar na Aldeia. Conduzido por câmera segura, esse último mostra os usos práticos das placas solares instaladas no Território Indígena Sawré Muybu. 

Com duração de 17 minutos, o extraordinário Mensageiras da Amazônia faz metalinguagem, mostrando os bastidores do trabalho das próprias cineastas do coletivo Munduruku na produção dos filmes e documentando, ao mesmo tempo, as diversas ameaças que cercam e rondam as terras demarcadas. “Estamos trabalhando no nosso novo documentário, sobre a fiscalização do povo Munduruku diante dos garimpeiros e madeireiros. Esse vídeo que a gente quer fazer é tipo um recado que a gente quer dar”, explica uma das jovens diretoras-protagonistas no filme. Nos depoimentos de indígenas, sobressai o clamor pela autodemarcação de terras, diante da paralisação promovida pelo governo do então ainda presidente Jair Bolsonaro.

“O prefeito de São Luiz do Tapajós sempre negou nossa existência na região”, expõe no filme Beka Munduruku. Quando ela surge na tela de Mensageiras da Amazônia, percebe-se um dos sustentáculos da existência do coletivo e do projeto Katahirine: o prefeito não poderá mais simular a não-existência de Beka e dos Munduruku na região. Na tela, Beka sorri ao contar que perguntou ao pai o que significava autodemarcar território, quando ouviu o termo pela primeira vez, em 2015. As imagens se fundem com o depoimento do cacique do Sawré Muybu, Juarez Saw Munduruku, explicando o conceito. 

Beka Munduruku em ensaio fotográfico “A Força delas, mulheres ancestrais”, de Marizilda Cruppe.

“Todo ano a gente tem que fazer a limpeza para manter o limite limpo”, ensina ele, ao sabor de imagens da juventude Munduruku no trabalho de limpeza dos limites da terra autodemarcada. Em meio à expedição, o grupo encontra e registra visualmente a ação de um madeireiro, que demarca números em árvores a serem derrubadas. 

Em Mensageiras da Amazônia, Beka explica como sua presença numa dessas jornadas de autodemarcação resultou na ideia de transformar aquela luta em material cinematográfico. O filme acontece no ritmo da vida e da luta, e as jovens cineastas filmam a si próprias pilotando com segurança um drone para produzir a compreensão aérea da floresta e do rio Tapajós, tão protagonistas do filme quanto os seres humanos, cães, peixes, papagaios, quatis, araras, lagartas, flores e frutos que desfilam pela tela. 

Para Beka, o objetivo principal da atividade audiovisual coletiva é transformar as mulheres em protagonistas das próprias histórias. “A gente começou o coletivo com 12 homens e mulheres, mas com o tempo os meninos foram saindo, e agora estamos eu e mais duas tias minhas. Hoje somos um coletivo de mulheres”, comemora Beka, citando Aldira e Rilcelia. Ela se orgulha da participação de filmes como Alerta Amazônia na luta que resultou no arquivamento da construção da Usina Hidrelétrica São Luiz do Tapajós, em 2016.

Atualmente com 46 anos, Arlete Juruna, habitante da Terra Indígena Paquiçamba, em Volta Grande do Xingu (PA), exibe no site o média-metragem Entre-Ilhas, em que executa a proeza de ao mesmo tempo pilotar a câmera e dirigir seu barco pelo rio Xingu. Desolador, Entre-Ilhas documenta os rastros da devastação produzida pela construção da hidrelétrica de Belo Monte. 

Outras etnias já representadas no site Katahirine são Tukano, com Larissa Ye’padiho Duarte, de São Gabriel da Cachoeira, estudante de artes visuais na Unicamp; Arara, com Joice Arara Xipaia, do Médio Xingu (Pará); e Tapajó, com Priscila Tapajowara, de Santarém (Pará), integrante do coletivo Mídia Índia.

Idealizado pela cineasta Mari Corrêa, ex-integrante do histórico projeto Vídeo nas Aldeias, o Instituto Catitu está ativo desde 2009 e viabilizou a Rede Katahirine com apoio da Fundação Ford, da Rainforest Foundation Noruega e do Fundo de Direitos Humanos dos Países Baixos.

Segundo Mari Corrêa, outra prioridade da rede é colaborar na luta por igualdade de gênero entre as indígenas. “As mulheres indígenas estão mudando de atitude, estão saindo um pouco da retaguarda e postulando mais protagonismo dentro da sociedade”, afirma a cineasta não-indígena. “Elas vão percebendo que a questão de gênero não é fixa. Dizem: ‘A gente descobriu que pode viajar, não tem que ficar em casa enquanto o homem viajam’. São coisas muito simples, mas que mudam a perspectiva”, diz. Não é incomum que as mulheres dirijam com crianças pequenas no colo ou que os maridos cuidem dos filhos durante as oficinas e outras atividades.

Mulher indígena banha araras em cena de Ooni, de Lily Baniwa (Foto: Divulgação/Rede Katahirini)

Mari sublinha o fato de que a produção indígena atual pode se dirigir para fora dos domínios indígenas, mas é pensada principalmente para dentro. “Os filmes são editados para ser exibidos fora, mas ouço cineastas falarem que o povo de dentro quer assistir tudo, rituais de seis ou oito horas”, narra ela. “Eles maratonam mesmo, como maratona de série, e aí aprendem a cabear, a montar a projeção. Tem uma hora que vou dormir e eles ficam lá vendo um filme atrás do outro. A gente ensina para terem autonomia em tudo.” 

Os próximos passos da Katihirine incluem atrair novos financiadores e “explodir os limites do Brasil” rumo às etnias originárias da América do Sul e da América Latina. “O mapeamento é muito político nesse sentido. Mostra que as cineastas indígenas existem, são em número expressivo e precisam de política cultural”, resume.

Para além dos territórios amazônicos, o projeto Katahirine agrupa realizadoras da Mata Atlântica (das etnias Aymara, Guarani, Kaingang, Maxakali, Mbyá-Guarani, Pataxó, Pataxó-Hãhãhãe, Tupibambá), Cerrado (Avá-Guarani, Balatiponé, Guarani, Guarani-Kaiowa, Ikpeng, Juruna, Kaiabi, Kawaiwete, Manoki, Terena, Xakriabá, Xavante) e da Caatinga (Fulni-Ô, Guajajara, Kariri, Pankararu, Payayá, Tentehar). O projeto almeja crescer substancialmente nos próximos meses, com a adesão de cineastas que não foram inicialmente mapeadas ou localizadas pela equipe para integrar a Rede Katahirine.


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Reportagem Noticiosa

 Sobre a matéria

Pedro Alexandre

 Pedro Alexandre Sanches

Formado pela ECA-USP, Pedro Alexandre Sanches é jornalista paranaense trabalhando em São Paulo desde 1995. Especializado no jornalismo cultural, foi repórter da Folha de São Paulo e repórter e editor de cultura da CartaCapital. É editor-fundador do site de música e cultura Farofafá (www.farofafa.com.br) e atua como colaborador em diversos veículos. Escreveu os livros Tropicalismo – Decadência Bonita do Samba (2000), Como Dois e Dos São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa) (2004) e Álbum (2021).

Fonte: https://amazoniareal.com.br/cineastas-mulheres-indigenas-saem-da-retaguarda-com-a-rede-katahirine/

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