No seu tumultuado semestre na presidência da república, em 1961 Jânio Quadros criou o Parque Indígena do Xingu, considerado a maior e uma das mais famosas terras indígenas do gênero no mundo, com 2,6 milhões de hectares, que se tornaria lendário e assumiria a linguagem literária com o romance “Quarup”, do jornalista Antônio Callado (que esteve no parque), publicado seis anos depois. O projeto precisou de 20 anos para se concretizar, enfrentando resistências de toda ordem.

Ainda mais feroz foi o combate contra a criação de outra terra indígena, milhares de quilômetros a noroeste do Xingu. Mesmo assim, ela foi criada, 60 anos depois. Com 9,6 milhões de hectares, era três vezes maior do que a reserva do Xingu. Ao contrário do que queriam seus inimigos, ela ocupou uma área contínua. Os que tentaram impedi-la de existir, só admitiam que fosse descontínua, um arquipélago fundiário. Seria mais fácil de existir.

Desta vez, contra todas as previsões, a Terra Indígena Yanomami foi homologada pelo presidente Fernando Collor de Mello, aceitando ato assinado pelo ministro da Justiça, a autoridade maior no trato institucional do governo com os indígenas, através da Funai. Foi o coronel da reserva do exército, ex-governador, ex-ministro e ex-senador Jarbas Passarinho, que iniciou sua carreira política depois do golpe militar de 1964.

A história dos indígenas no Brasil é marcada pela violência, desumanidade, incompreensão e também por contradições e paradoxos. Interessa à sociedade envolvente e dominante em episódios. Passado o motivo para um interesse maior, retorna a mesma prática violenta e a mesmo omissão. A sorte dos ocupantes ancestrais do Brasil passa a depender de circunstâncias.

Quem menos quer mal (sem deixar de manter seus preconceitos) aos indígenas defende a sua integração à “civilização” – cuidadosa ou compulsória. Não interessa a conclusão de alguns dos mais importantes antropólogos brasileiros de que o indígena não consegue se integrar a uma sociedade de classes, mas também, ume vez promovida a “aculturação”, não recupera a sua identidade étnica. Vira um pária.

Foi assim que o governo Bolsonaro o considerou e tratou. Foi o que causou o pior dos males aos Yanomami. Não com o deliberado propósito de os exterminar de vez, num genocídio planejado. Mas impor-lhes a presença de garimpeiros, madeireiros, mineradores e quem mais quisesse se instalar na vasta área na fronteira de Roraima e do Amazonas com a Venezuela. O que levaria a um morticínio do mesmo jeito. Bolsonaro anunciou explicitamente e fez o que pôde para executar o que pretendia: acabar com a inviolabilidade de todas as áreas indígenas. Os indígenas teriam o direito de fazer acordo com os exploradores das suas terras, que lhes ofereceriam dinheiro e bens materiais. Mas não de fechar as portas. Teriam que virar “civilizados” de súbito.

O caso Yanomami é de extrema complexidade. Sua população se estende entre o Brasil e a Venezuela. Antecedendo a existência dos dois países, as fronteiras são uma abstração para eles até hoje. A geopolítica por trás dos governos e as histórias fantasiosas sobre seus recursos naturais, principalmente ouro e cassiterita, por ora, lhes são estranhas. Um campo de batalha. Durante a década de 1980, estima-se que 40 mil garimpeiras invadiram a reserva e que 1,5 mil indígenas morreram, inclusive de fome, dadas as condições desfavoráveis em parte do seu território para a produção de alimentos.

O fator ainda mais escandaloso nas últimas semanas foram as inéditas imagens de crianças em estado de extrema desnutrição e doenças. O choque se derivou tanto da condição dessas pessoas como da desinformação da sociedade sobre essa tragédia humanitária. No entanto, não faltaram informações transmitidas pela imprensa, mesmo que episódicas, nem testemunhos dos próprios Yanomami. Só quando o principal responsável por essa tragédia já não estava no país é que os brasileiros se deram conta de que abrigavam uma situação tão chocante e repulsiva.

Uma das vozes mais autorizadas e fortes do povo Yanomami se fez ouvir, a de Davi Kopenawa. Eu o conheci em Paris, em 1990, na sessão sobre a Amazônia do Tribunal Permanente dos Povos, antigo Tribunal Bertrand Russell. Na ocasião, ele apresentou um texto. Passados tantos anos, as queixas que fez são as mesmas. Indicando que o tratamento contra os Yanomami também é o mesmo. Ora mais graves, agora como nunca. Ora menos explícito e agressivo. Ao contrário o que se esperava, a oficialização da reserva, a maior do país, não lhes trouxe a paz, pela qual tanto anseiam para viver como querem.

Para assinalar esse percurso, reproduzo a resposta que Davi Kopenawa Yanomami e Itabira Suruí Paiter deram à questão que lhes foi apresentada durante a sessão do tribunal dedicada à Amazônia brasileira, em Paris, entre 12-16 de outubro de 1990.
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“Os índios querem a sua autonomia: ou seja, garimpeiros, colonos, madeireiros, fazendeiros, mineradoras, gateiros, seringalistas, missionários, antropólogos, funcionários, todos fora da sua terra. Claro que quem apoia o Índio, assessora os índios, defende a saúde e o direito dos Índios, respeita os Índios, têm confiança, estes podem permanecer. Nós iremos até mesmo convidar.

Os índios nunca expulsaram ninguém. Os índios não devem nada a ninguém. Os brancos nos devem muito. Derrubam árvores, envenenam os rios, matam os peixes, espantam a caça, transmitem doença. Nós estamos cansados de ver o branco destruindo tudo. Os Índios sabem preservar sua floresta. Nunca destroem nada. Por isto, os Índios querem conversar, negociar com o Presidente Collor e os brasileiros e os outros povos. O Índio é o primeiro brasileiro. Então: o Collor deve procurar todas as lideranças indígenas das áreas para conversar, para perguntar o nosso pensamento, o de cada aldeia. Porque nós pensamos diferente. Pensamos só o que temos direito. Não queremos nada do branco. Queremos as terras demarcadas, sem invasões e o pleno usufruto do solo, subsolo, nosso peixe, caça, roça, como nosso costume.

Aí, fazemos um acordo, depois que todos os invasores forem retirados, inclusive os garimpeiros e madeireiros do Jucá [Romero Jucá era então o governador de Roraima]. Não queremos: fora. Queremos paz, viver tranquilos, sem briga, sem problemas. Estamos esperando o Collor para conversa. Este é o pensamento de nossos povos, é como diremos os Índios que aqui estamos por escrito. É a palavra de Davi Kopenawa Yanomami e Itabira Paiter Suruí.”


A imagem que abre este artigo mostra grupo de indígenas isolado, nos limites da Terra Indígena Yanomami, no estado de Roraima (Foto:Guilherme Gnipper Trevisan/Funai/Hutukara)

Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com.

Fonte: https://amazoniareal.com.br/paz-para-os-yanomami/

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