Lanchas de transporte escolar ficaram impedidas de circular pelos igarapés secos, dificultando o ensino indígena (Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real).
Aseca que assolou a Amazônia pelo segundo ano seguido era previsível. As queimadas também. O governo do Amazonas sabia disso tudo e preparou materiais didáticos para que os alunos em isolamento continuassem estudando. Mas o que aconteceu nos interiores das aldeias é o retrato de um País que ignora os povos originários e seus direitos. A educação indígena viveu momentos de secura, tal como os rios e igarapés amazônicos. O Enem não foi adiado, e muitos desistiram de participar por falta de incentivo e preparo adequado. Os mais jovens tiveram de se virar sozinhos no aprendizado com apostilas que até os chamam de “índios”.
Por Nicoly Ambrosio e Pedro Tukano
Manaus (AM) – Em novembro, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) foi aplicado sem nenhuma mudança de calendário ou estímulo para os estudantes do Amazonas. O governo federal tinha plena ciência das dificuldades enfrentadas pelos eventos climáticos extremos, que incluíam uma mobilidade precária em meio a rios e igarapés intransitáveis. A Amazônia vivia a segunda estiagem recorde em um período de dois anos, e muitos secundaristas tiveram de se conformar com dois períodos de aulas remotas. Para os gaúchos, que enfrentaram a calamidade das enchentes em abril e maio, o Ministério da Educação estendeu o prazo de inscrição do exame e concedeu isenção de taxas – o que fez as inscrições aumentarem 74%. Também por conta da gravidade da situação no Estado do Sul, o Concurso Público Nacional Unificado foi adiado nacionalmente.
Desde o ano passado, os alunos indígenas vêm solicitando o adiamento do Enem em épocas de seca. Para eles, as realidades indígenas do Amazonas devem ser levadas em conta. Em setembro, o Movimento dos Estudantes Indígenas do Amazonas (Meiam) participou do Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas (Enei), em Brasília, quando criticou a posição do governo federal em ignorar que os estudantes amazonenses estavam enfrentando a crise climática em seus territórios.
“Entendemos que esses processos ignoram a exclusão dos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, perpetuando políticas que nos marginalizam”, disse Izabel Munduruku, coordenadora do Meiam. “Acompanhamos estudantes de Tefé e Benjamin Constant, especialmente os Tikuna, que relatam dificuldades para dar continuidade ao ensino médio e se preparar para o Enem. Esses problemas estão inseridos em uma realidade onde as mudanças climáticas também afetam a garantia de alimentos nas comunidades. Muitos não conseguem estar nas escolas ou continuar os estudos.”
O estudante Adailson Tananta, do povo Tikuna, afirmou que muitos colegas concluintes do nível médio do ensino indígena desistiram de realizar o Enem. A seca atrapalhou, mas o principal problema foram as questões financeiras e a falta de incentivo para quem largava atrás da maioria. A prova nacional em sua região foi aplicada no município de Tabatinga, que fica a cerca de duas horas por lancha (pequena embarcação de motor) da comunidade indígena Belém do Solimões. “A dificuldade mesmo é eles irem daqui da comunidade até Tabatinga. Alguns não tiveram condições e não foram”, disse.
“Aqui onde eu moro, os professores não estão muito interessados em ajudar os alunos a fazerem a prova do Enem. Eu, como aluno, sou testemunha disso. Vários alunos não fizeram a prova por falta de conhecimento. Às vezes, os professores não têm interesse em ensinar os alunos a fazerem uma redação, ensinar português”, acrescentou. “E tem também a falta de interesse do aluno.” (Adailson Tananta).
Menos preparo
Comunidade de Belém do Solimões (Foto cedida por Adailson Tananta).
Em Belém do Solimões, a comunidade foi duramente atingida pela seca. E todos tiveram de enfrentar situações que afetavam não só a preparação de quem ia fazer o Enem, mas o bem-viver do território. As aulas presenciais, por exemplo, continuaram normalmente durante o período da seca. Mas quem vivia em comunidades próximas precisou acordar mais cedo para chegar a tempo na escola por conta do baixo nível do rio. Isso desanimou muitos jovens.
A desigualdade no ensino indígena contribui para a sensação de que os povos originários são ignorados. Em setembro, o movimento de estudantes indígenas escancarou essa situação. “O Enem não leva em conta a diversidade do próprio Brasil. Quando falamos em diversas nacionalidades, é porque somos compostos por diversas nações dentro deste território brasileiro, como as nações Sateré-Mawé, Tukano e Munduruku, entre outras”, lembrou Izabel Munduruku.
No Amazonas, existem 17 línguas oficiais, 16 delas são indígenas, o que reflete uma realidade onde o português não é a primeira língua em diversas regiões. “No entanto, o Enem desconsidera essa especificidade, ignorando que o Amazonas é um Estado complexo”, completou Izabel. A historiadora reforçou que os estudantes indígenas nem sempre têm acesso ao ensino de línguas estrangeiras, como inglês e espanhol, mas são obrigados a realizar provas nesses idiomas. Essa padronização, segundo ela, é colonial, homogênea e hegemônica, não abrangendo a diversidade dos povos do Brasil.
“Para nós, isso representa um dos maiores problemas estruturais do Enem, que, embora se apresente como um exame nacional, desconsidera as populações que compõem o próprio Estado brasileiro”, refletiu Izabel Munduruku. Por essa razão, exemplos de alunos da região Norte que se destacam no Enem são exceção e viram notícia. Em 2023, a estudante amazonense Rilary Manoela Coutinho figurou na lista de 24 alunos da rede pública brasileira que alcançaram a nota máxima na redação do Enem. Por seu desempenho, poderia estar já cursando Engenharia Civil na Universidade Federal do Amazonas, a mais de cinco horas de Itapiranga, sua cidade-natal. Mas sem recursos até mesmo para pagar os 78 reais para ir a Manaus fazer a matrícula, Rilary teve de adiar o sonho da graduação.
Prejuízo generalizado
Os impactos da crise climática no Amazonas vão além do cenário vivenciado nos últimos meses em sala de aula. Elas fazem parte de um sistema excludente estruturalmente. Dados do Censo Escolar de 2021 mostram que das 3.466 escolas indígenas do Brasil, 30% não têm energia e 63% não têm água potável. Biblioteca ou sala de leitura são recursos quase inexistentes. O acesso à internet só está disponível em 10% dos colégios indígenas, e bibliotecas só existem em 13% das unidades. Com a seca, essa realidade se agravou.
Sem acesso pleno à educação e com dificuldades para ingressar na universidade, os jovens indígenas vêem seus sonhos serem empurrados para o segundo plano. Soluções emergenciais, como a distribuição de materiais didáticos impressos, ainda se revelam insuficientes diante da magnitude do problema, que é, ao mesmo tempo, estrutural e atinge todos os níveis.
De acordo com a Secretaria de Estado de Educação e Desporto Escolar (Seduc), a rede estadual de ensino do Amazonas possui 30 escolas indígenas e 458 salas anexas voltadas à educação indígena. No ano letivo de 2024, a rede estadual matriculou mais de 13 mil estudantes indígenas, sendo 8.796 em escolas indígenas e 4.254 em salas anexas.
A estrutura escolar nas comunidades indígenas tem se revelado incapaz de lidar com as exigências impostas pelas mudanças climáticas e pela seca extrema. Um exemplo disso é que muitas escolas só são acessíveis por rios, e a seca torna impossível que os estudantes dêem continuidade ao ano letivo de forma plena. Esses anos atípicos intensificaram uma estrutura já marcada pela desvalorização da educação escolar indígena.
Muitos alunos do ensino indígena do nível médio, se quiserem continuar os estudos, são obrigados a se mudar para as sedes dos municípios. Essa questão, que já é um desafio com ou sem mudanças climáticas, é ampliada ainda mais durante os períodos de seca, aumentando a evasão escolar e a dificuldade de deslocamento das aldeias até as sedes dos municípios.
Primeiros anos
Neste ano, 5,5 mil alunos foram impactados pela seca dos rios no Amazonas. Na Aldeia Santo Antônio, no município de Careiro da Várzea, a Escola Municipal Indígena Antônio Lima ficou dias sem funcionar pela dificuldade de transporte de professores e estudantes pelos rios e lagos da região. Sem aulas, o rendimento escolar foi prejudicado.
“A seca foi tão intensa que a gente teve que passar trabalhos escolares por apostilas para os alunos, mas a gente sabe que isso é muito diferente do aluno estar na sala de aula. Alguns alunos não fazem as atividades e o índice de aprendizado foi muito defasado”, explicou o professor Herton Mura, que atua na unidade de ensino indígena.
No município existem oito escolas indígenas que funcionam da primeira série ao 5º ano do ensino fundamental 1. As unidades estão localizadas nas aldeias Bom Futuro, Boa Vista, Jacaré, Jabuti, Jutaí, Gavião, Sissaíma e Santo Antônio, além de um anexo na aldeia Mura Tukumã, comportando cerca de 180 alunos.
A seca também comprometeu o fornecimento de água potável e alimentos nas comunidades de Careiro da Várzea, dificultando o funcionamento básico das instituições de ensino indígena. “Nas aldeias as pessoas ficaram isoladas e sem água, porque os poços secaram e os alimentos também desapareceram. Na nossa região, a alimentação básica é o peixe, o pescado, mas como o rio secou a gente ficou sem ter onde pescar”, disse Herton.
As aldeias do território ainda sofrem com a seca, apesar da lenta subida dos rios da Amazônia. “Geralmente o rio costumava encher aqui a partir do dia 2 de novembro”, alertava o professor durante a entrevista para a Amazônia Real. Contatado no dia 16 de dezembro, a liderança afirmou que o rio começou a encher, mas de forma lenta.
Calor e falta de água
Estudante da Escola Municipal Indígena São José, que fica na comunidade indígena Assunção, no município de Alvarães, margem esquerda do rio Solimões, Tarcizio Kokama afirmou que a experiência negativa da estiagem para os alunos se agravou com o calor. “O rio ficou tão seco que nasceu uma praia aqui na frente da comunidade”, observou.
Gleison de Almeida Martins Kokama, professor da unidade de ensino indígena, explicou que a onda de calor, principalmente no turno da tarde, deixava os estudantes esgotados fisicamente. A falta de água potável foi outro problema causado pela seca do poço artesiano. Sem água, não tinha como fazer uma merenda de qualidade.
Na região de Alvarães são 11 escolas indígenas e 1 anexo, onde estudam 913 alunos no ano letivo de 2024. “Com as aulas paralisadas, os estudos foram apostilados, o que não foi muito vantajoso para o aprendizado dos alunos”, disse o professor. Sem poder ir à escola, Tarcizio, que está no 9° ano do ensino fundamental, preencheu o tempo livre com pesquisas e estudos independentes em casa. “A paralisação dos transportes que conduziam de um local para o outro no território foi um grande problema para os alunos da minha região.”
Para Izabel Munduruku, que é historiadora, ao falar de educação escolar indígena, são inseridos diversos recortes: desde o primeiro contato com a educação escolar, passando pelos ensinos básico e médio e até o acesso à universidade. Segundo ela, o debate sobre como as mudanças climáticas afetam a educação tem sido ignorado pelas políticas públicas. Contudo, é essencial destacar que não se pode discutir racismo ambiental e mudanças climáticas sem considerar o contexto educacional específico do Amazonas. “O processo de preparo aqui é muito desigual, sobretudo para os povos indígenas isolados em suas comunidades em razão da seca. As problemáticas que a educação escolar indígena enfrenta se intensificam com a crise climática”, disse.
Ensino apostilado
A Seduc informou, em nota enviada à Amazônia Real, que a estiagem severa não impediu os alunos de estudarem. Pelo programa “Aula em Casa”, a comunidade escolar, incluindo a educação escolar indígena, teve à sua disposição conteúdos didáticos pedagógicos para possibilitar a continuidade dos estudos fora do ambiente presencial.
As apostilas de estudo do “Aula em Casa” foram entregues com os kits de alimentos do “Merenda em Casa”, disse a Seduc, com distribuição feita por meio das escolas, orientadas pelas Coordenadorias Regionais de Educação (CREs) de cada município. Os estudantes com acesso à internet também tinham à disposição materiais publicados no site do próprio projeto, por meio do link e pela plataforma Saber Mais.
De acordo com a Seduc, os materiais preparados pelo Centro de Mídias de Educação do Amazonas (Cemeam) têm como foco os docentes e estudantes dos anos iniciais (1º ao 5º ano), finais (6º ao 9º ano), ensino médio, educação de jovens e adultos (EJA), ensino indígena e ensino mediado. A resolução Nº 121, aprovada em agosto de 2024, pelo Conselho Estadual de Educação do Amazonas (CEE), autorizou o regime especial de aulas não presenciais nas escolas estaduais durante a estiagem.
O “Aula em Casa”, conforme está no próprio site, foi criado no contexto da pandemia de Covid-19, mas depois passou a ser empregado nos períodos de estiagem e de seca dos rios amazônicos. A Amazônia Real analisou esse material. Wilson Lima, o governador do Amazonas, abre o “Documento Orientador para o Enfrentamento das Situações de Emergências devido aos Eventos Climáticos Extremos” afirmando que o “Aula em Casa” permite “a continuidade do processo de aprendizagem, sem atrasos e prejuízo a alunos e equipe educacional”.
Aos estudantes, o documento recomenda que eles mantenham uma rotina de estudos, fiquem atentos às instruções remotas dos professores e “encare as situações de emergências resultantes de eventos climáticos extremos como uma oportunidade para aprender sobre questões ambientais, socioeconômicas e a importância da conservação dos recursos naturais”. Mais que irônico, essa recomendação soa ofensiva para quem é, reconhecidamente, defensor da floresta.
O programa “Aula em Casa” oferece ainda uma cartilha para o enfrentamento do calor e materiais de orientação da Defesa Civil sobre a estiagem, a prevenção e combate às queimadas e a qualidade do ar. Parte desse material (apresentações em slides) e vídeos gravados não foi preparado especificamente para o público estudantil.
Já os Guias de Estudo são aulas apostiladas, com muita informação dos conteúdos previstos na Lei de Diretrizes e Bases do Ministério da Educação, que norteia os currículos escolares. A partir de questões de vestibulares passados ou adaptadas pela própria Cemeam em 2022, há abordagens ultrapassadas, como a de usar o termo “índio” para se referir aos indígenas. São trechos como “traçar, como no Romantismo, o perfil do índio brasileiro como protótipo das virtudes nacionais” (para alunos do 3º ano do ensino médio), “ao darem pela falta do índio, saíram todos a procura dele vindo a encontrá-lo já sem vida” (4º ano do fundamental) e “haja um compartilhamento privado e racional das reservas biológicas, com os não índios” (9º ano).
O Guia de Estudo específico para a educação indígena para 2024 traz, em suas referências bibliográficas, obras como “História dos Índios no Brasil” (Cia das Letras, 1992) e o valioso “O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje” (2006), de Gersem Baniwa. Nesta última obra, o educador e líder indígena põe os pingos nos iis: “De pejorativo passou a uma marca identitária capaz de unir povos historicamente distintos e rivais na luta por direitos e interesses comuns. É neste sentido que hoje todos os índios se tratam como parentes”. Se e como esse conteúdo complexo está sendo usado pelos estudantes indígenas e não-indígenas é uma pergunta que fica no ar. (Colaborou Eduardo Nunomura)
Vista da comunidade Assunção, em Alvarães (Foto cedida por Gleison Martins).
Fonte: https://amazoniareal.com.br/especiais/ensino-indigena/
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