Inundações afetam principalmente a população vulnerável, pessoas negras e indígenas, que vive em áreas de risco e nem sempre conta com serviços públicos como saneamento básico e assistência social (Na foto está dona Janaira de Oliveira Silva com seu bebê. Eles perderam tudo. Foto cedida por Juan Vicent Diaz à Amazônia Real)
Rio Branco (AC) – Por causa das chuvas intensas dos últimos dias, o rio Acre transbordou e atingiu o nível de 16,86 metros nesta terça-feira (27), chegando perto de uma das enchentes extremas como a de 1997, quando atingiu a marca histórica de 17,66 metros. A cota de transbordo é de 14 metros e foi ultrapassada na quinta-feira (23). A enchente levou o governo estadual a declarar estado de calamidade pública, por meio de decreto publicado em edição extra do Diário Oficial, na semana passada.
A situação revela o racismo ambiental que atinge a população mais vulnerável. A inundação do rio Acre prejudica diretamente mais de 38 mil pessoas de bairros periféricos e comunidades ribeirinhas na capital. Desse total, quatro mil pessoas precisaram ir para casas de parentes e abrigos públicos na capital. No interior, 9.500 estão desabrigadas, incluindo cidades como Epitaciolândia, Assis Brasil e Brasileia, na fronteira com a Bolívia.
A população do Acre é formada de 894.470 habitantes. Já a capital Rio Branco tem cerca de 400 mil habitantes.
A nova enchente extrema provoca danos econômicos e sociais e leva os governos estadual e federal a desenvolverem planos de contingência e campanhas para amenizar a falta de moradias, alimentos, água mineral, material de higiene pessoal, entre outros produtos. No entanto, os problemas históricos de falta de habitação e assistência social para prevenir os danos causados pela crise climática na Amazônia persistem.
A família formada pelo casal Gean Santos, 48 anos, e Janaína Santos, 46, e dois filhos é um exemplo desses problemas que persistem em Rio Branco. Os quatro moram no bairro Raimundo Melo há mais de 30 anos e convivem com o drama. “A casa ficou quase 60% debaixo d’água. Começamos a suspender (levantar com tábua de madeira) as coisas até onde deu, acreditando que a água não ia passar da porta, mas nos pegou de surpresa. O que vamos tentar salvar é os colchões que não temos como fazer esse investimento agora, perdemos tudo o que tínhamos e nós nunca esperamos que algo acontecesse nessa proporção”, contou Janaína sobre a inundação deste ano.
Em entrevista à Amazônia Real, Gean criticou a ausência do poder público na região. “Na sexta-feira (24) vi o Corpo de Bombeiros aqui para tirar as coisas de uma escola próxima e a prefeitura só apareceu no domingo com sacolões, esse é o apoio que estão dando”, disse.
Enchentes e secas extremas, deslizamentos de terra, entre outras tragédias ambientais, afetam mais as populações que vivem em situação vulnerável, incluindo comunidades negras, tradicionais e povos indígenas. As moradias nas chamadas áreas de risco revelam desigualdades sociais como a falta de residências dignas, saneamento básico e trabalho.
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Esta dimensão pode ser explicada pelo chamado racismo ambiental, como detalha Rita Maria da Silva Passos, especialista em Sociologia Urbana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Esse tipo de racismo se refere “à carga desproporcional dos riscos, dos danos e dos impactos sociais e ambientais que recaem sobre os grupos étnicos mais vulneráveis”, mostrando que nem a destruição do planeta acontece de forma democrática.
O racismo ambiental ocorre de forma recorrente nas cidades amazônicas, segundo a bióloga acreana Gabriela Souza, pesquisadora do assunto há mais de dez anos e especialista em agricultura familiar pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Acre (IFAC). Segundo ela, isso é resultado de uma combinação de fatores históricos e sociais de exploração a recursos naturais, mas inclui principalmente ações de governos, indústrias e instituições que perpetuam desigualdades sociais e econômicas na região.
“No Acre, onde temos apenas duas estações bem definidas, verão e inverno amazônicos, sofremos com duas principais consequências do agronegócio: as secas extremas e as cheias extremas. Em Rio Branco, sentimos na pele, literalmente muito mais, pois somos a cidade mais populosa do Estado, com maior número de construções não planejadas corretamente, com nossas nascentes, igarapés e olhos d’água sendo tampados e soterrados. E o principal, temos a menor porcentagem de floresta e áreas verdes ao redor.”
As chuvas intensas deste ano já atingiram 36 bairros em Rio Branco. Desses, 28 são bairros periféricos ou parcialmente periféricos: Vila Acre; Benfica; Calafate; Portal da Amazônia; Bairro da Paz; Mocinha Magalhães; Cidade do Povo; Belo Jardim; Rosa Linda; Custódio Freire; Distrito Industrial; Santa Inês; Parque das Palmeiras; Geraldo Fleming; Conquista; Mutum; Sapolândia, João Paulo; Ayrton Sena; Areal; Eldorado; Baixa da Colina; Cadeia Velha; Triângulo Novo; 6 de agosto; Cidade Nova; São Francisco e Recanto dos Buritis.
O prefeito de Rio Branco, Tião Bocalom, disponibilizou cerca de R$ 5 milhões para serem usados na compra de cestas básicas, kits de limpeza e colchões e para suprir outras necessidades das vítimas das enchentes deste ano. Nesta segunda-feira, ele anunciou o lançamento do projeto “Recomeçar”, que visa a doação de móveis para as vítimas. Em nota oficial, no entanto, ele informou que o recurso não será disponibilizado imediatamente para as vítimas.
Ações do governo
Diante da enxurrada e da enchente, o governo do Acre começou suas ações na noite do dia 23 de março. Foram liberados 20 abrigos em escolas estaduais e garantida a assistência alimentícia da população desabrigada e desalojada, além da assistência social e atendimento de saúde. Como medida, também foi iniciada uma campanha para a doação de donativos.
No sábado (25), a ministra de Meio Ambiente Marina Silva veio ao seu estado natal acompanhar a situação de calamidade pública. Jefson Dourado, diretor de imprensa do governo, disse à reportagem que, “no momento, a cheia do rio Acre atinge não só a capital, mas também outros municípios, então, essa é a grande preocupação, temos dado o apoio aos municípios”. Ele destacou que equipes da Defesa Civil estão sobrevoando os municípios mais críticos para levar donativos, remédios e toda a assistência necessária. O trabalho conta com a parceria das prefeituras do Estado.
“Infelizmente, devemos aguardar que as águas do rio Acre não subam mais. A previsão para os próximos dois dias é que o volume das águas aumente até os 17,45 cm (o nível), mas em relação às famílias, todas estão recebendo apoio do governo”, explicou Dourado.
“Perdemos tudo”
Rafaela de Albuquerque, 18 anos, moradora no Bairro da Paz junto com os pais e três irmãos, teve a casa tomada pelas águas do rio Acre. Ela conta que um dos irmãos tem paralisia cerebral e precisa de atenção especial. A família estava acostumada com os alagamentos, entretanto foi a primeira vez que se deparou com a água nessa proporção. “Em 2021 a água entrou mas conseguimos recuperar as coisas. Agora, nessa de 2023, perdemos quase tudo, só conseguimos salvar três colchões de solteiro, um deles é do meu irmão especial”.
A casa ficou completamente comprometida e, no momento, a família está abrigada na residência de vizinhos. “Não estamos sendo assistidos e nem recebendo ajuda com nada. Estamos recebendo ajuda apenas de familiares, amigos e da igreja”, relatou a jovem sobre a ausência do poder público.
No dia 23 de março, choveu um acumulado de 172 milímetros em 12 horas, segundo dados da Defesa Civil Municipal. A quantidade não era esperada, apesar de a região estar em pleno inverno amazônico. A previsão é de mais chuvas nos próximos dias.
De acordo com a bióloga Gabriela Souza, os desequilíbrios ambientais são causados por um pequeno grupo, porém quem sente os impactos são os moradores de áreas rurais, periféricas, povos e comunidades tradicionais e indígenas.
“Esse grupo amplo de pessoas infelizmente não tem o poder político e/ou financeiro, e por isso sofre os impactos sem conseguir uma justiça ambiental. Essas pessoas, sentem e sofrem com o aquecimento do planeta, com as enchentes dos rios, com a poluição das águas e solos (não tendo onde plantar, e nem como saber sobre a água), onde todos os resíduos/lixo vão parar. Sofrem a falta de um ambiente puro, limpo e contemplável. E tudo isso acontece pelo racismo que existe no mundo, mais com duas veias mais latentes desse racismo, que é o racismo estrutural e ambiental”, explica.
Violação de direitos
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 225, reconhece o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental do cidadão. É um dever do Estado e da coletividade protegê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Quando este direito é negado, a cidadania, o pertencimento e a qualidade de vida também são negados.
“Esses eventos, no nosso Estado, acontecem principalmente pelo excesso de desmatamento e queimada cometidos pelo agronegócio que interfere diretamente no equilíbrio natural. Na prática, quando acontecem desmatamentos e queimadas, isso interfere no ciclo da água, pois sem floresta não tem água e se não tem água, não tem vida. Os gases estufa, causados pela liberação de carbono na atmosfera, eleva a temperatura do planeta, causando eventos catastróficos no clima. Então, algo que é raro e extremo se torna corriqueiro, a nova realidade”, explica Gabriela Souza.
O saneamento básico no Acre ainda é um desafio em muitas áreas rurais e urbanas. De acordo com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) de 2020, o Estado tem uma cobertura de 56,5% em relação ao serviço de coleta de esgoto e 87,3% em relação ao abastecimento de água. Nas áreas rurais, a situação é ainda mais crítica, com muitas comunidades sem acesso à água potável e sistemas de esgoto adequados. A respeito do saneamento básico do Estado, o Governo do Estado disse que a responsabilidade do saneamento na capital é de responsabilidade apenas da prefeitura e dos demais municípios, do Governo.
O Estado também enfrenta o desmatamento desenfreado que contribui fortemente com as mudanças climáticas. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o Acre perdeu 88 km² de floresta amazônica em fevereiro de 2022, um aumento de 11% em relação ao mesmo mês do ano anterior. Em 2021, o desmatamento no Estado atingiu seu maior nível em 12 anos, com 1.243 km² de floresta desmatada, um aumento de 43% em relação a 2020, de acordo com o Sistema de Alerta de Desmatamento do Imazon.
Vai ser culpa da chuva?
O Acre possui um histórico de enchentes e alagamentos. Algumas das enchentes mais significativas e recentes que afetaram o Estado ocorreram em 2012, 2015 e 2021. Em 2012, por exemplo, a enchente afetou 80 mil pessoas, causando danos materiais e sociais significativos. Em 2015, uma nova enchente afetou 23 mil pessoas, causando danos em diversas cidades do Estado. E em 2021 uma enchente novamente atingiu o Acre, afetando 130 mil pessoas e causando deslizamentos de terra, inundações e danos em infraestruturas.
“Existem estratégias de curto, médio e longo prazo. Precisamos começar pela educação ambiental (para aprender sobre o meio ambiente e saber quando tem empresas cometendo crimes), responsabilização dos verdadeiros responsáveis pelos crimes ambientais, planejamento real e adequado para construções no Estado, políticos preocupados com a pauta ambiental de uma forma séria e profunda. Planos de mitigação de impactos ambientais possíveis, liberar as áreas de várzea (são lugares que ficam alagados no período chuvoso), nascente/olho d’água, igarapés e rios. Planejamento habitacional, também é muito importante”, explica a pesquisadora Gabriela Souza.
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Fonte: https://amazoniareal.com.br/sob-calamidade-da-enchente-acre-expoe-racismo-ambiental/
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