Leia entrevista com a antropóloga, educadora e curadora Sandra Benites, indígena Guarani Ñandeva, para o livro “Povos Indígenas no Brasil 2017-2022”

Tainá Aragão – Jornalista do ISA

Sandra Benites, curadora e pesquisadora Guarani Ñandeva, no lançamento do livro “Povos Indígenas no Brasil 2017/2022” 📷 Claudio Tavares/ISA

* Entrevista dada ao livro “Povos Indígenas no Brasil 2017-2022′

Sandra Benites, primeira curadora indígena do Museu de Arte de São Paulo (Masp), nos faz um convite: acordar a memória através da arte. É assim que ela enxerga a importância do corpo indígena nesse espaço de disputa do campo simbólico. Da mesma forma, foi assim que ela apreendeu a ocupar seu espaço na curadoria e tenta imaginar a arte para além da sua obra, mas com o sentido coletivo da sustentação da batalha contracolonial.

Sandra é indígena Guarani Ñandeva, nascida na aldeia Porto Lindo/Jacare’y, no Mato Grosso do Sul, além de antropóloga, educadora e curadora. Atualmente compõe o corpo curatorial do Museu das Culturas Indígenas, em São Paulo (SP).

Como começou a sua carreira de curadoria na arte?

Eu sou professora. A minha luta e a minha curadoria começaram antes, a partir da minha infância, da minha luta como mulher, enquanto mãe e também enquanto indígena. Tudo isso faz parte da minha formação curatorial. Eu acho que muitas vezes essas questões não são levadas em consideração nesses espaços curatoriais.

A minha  entrada como curadora mesmo começou em 2017. Eu fui convidada para fazer parte  da equipe curatorial da exposição “Dja Guata Porã | Rio de Janeiro indígena”, para fazer um projeto dessa exposição sobre indígenas, muito focado na visão dos indígenas sobre a própria história do Rio de Janeiro.

Para isso, tivemos que nos escutar primeiramente, escutar, entre nós curadores, e pensar como é que a gente ia apresentar o projeto para os parentes do Rio de Janeiro. Nos juntamos à equipe e fomos visitar duas vezes as aldeias – e também chamar os parentes urbanos para fazer reunião.

Assista ao vídeo da exposição “Dja Guata Porã | Rio de Janeiro indígena”:

Então, tudo partiu de um processo de encontro, de conversa. Eu gosto de falar a partir desse ponto de conversa. Nessa primeira experiência, apareceram muitas coisas. A primeira questão que apareceu desse processo histórico, [foi] a violência que toma vários corpos. Digamos: o processo que foi capturando os corpos de nós indígenas mesmo.

Esse entendimento influencia vários aspectos em relação às informações que são passadas sobre a gente e os espaços onde a gente pode, de fato, colocar o nosso campo de vista. A verdade é que ainda somos tratados com distância por várias instituições e pela própria comunidade [sociedade].

Fui até os Puri [indígenas de São Paulo] e com eles entendi que deveria trabalhar aspectos da memória, que é importante para todos nós indígenas. Os parentes falam em “acordar memórias”. Quando nós começamos a refletir sobre alguns silenciamentos, apagamentos da fala, das nossas vozes, dos nossos ancestrais, eles falaram que a gente precisa sempre acordar a memória.

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Aí eu fui entender o papel que a arte tem para acordar a memória: é uma forma da gente resistir, é o nosso jeito de cada dia. Como eu sou Guarani, acordar a memória para a gente é sempre acordar pela memória – e a gente entende aquela memória como patrimônio, que são os nossos saberes, nossa forma de não perder as coisas que nos fazem.

Veja post sobre o retorno do manto Tupinambá, que cita Sandra Benites:

Esse é um aspecto que comecei a discutir enquanto curadora. Nossa memória continua nos mantendo e nos movimentando. Outra parte que a gente não pode esquecer é que essa questão é uma forma de entendermos o processo da colonização, que fez com que a gente se anulasse em várias formas de ser. Isso faz parte do modo de ser Guarani. Isso ficou muito forte pra mim: a questão da ocupação, de retomar os seus e nossos territórios ancestrais. Esse impedimento é da própria colonização, desse sistema colonial que nos impede de ocupar o nosso lugar de origem. É o lugar para o qual a gente tem que retornar, inclusive para a arte.

Em 2020, você se tornou a curadora adjunta do Masp e foi a primeira mulher indígena a ocupar esse espaço, que é um dos mais importantes da arte no Brasil. A partir dessa experiência, você considera que os espaços realmente estão se abrindo para os povos indígenas, para os artistas indígenas, ou é mais um caminho de espetáculo da diferença?

Quando eu entrei [no Masp], logo já começou a pandemia e fechou tudo. Na verdade, a exposição [que] eu fui chamada para fazer a curadoria, era sobre história indígena brasileira que ia acontecer em 2021. Só que como veio a pandemia, ela foi adiada para 2023.

Eu acho que fiquei isolada, de uma certa forma – eu entrei mas eu fiquei isolada. E eu achava que eu fiquei isolada por motivo da pandemia, mas aí eu vi que realmente não tinha muita preocupação em me acolher. Por isso, eu acho que, para mim, foi um lugar só para dizer que, para mostrar a minha competência, tinha que ser da forma que eles querem e não da forma que eu sou enquanto indígena. Por isso,  eu acabei pedindo pra sair. Até porque, quando nós começamos a fazer a exposição “Histórias Brasileiras”, fomos chamadas para fazer parte do núcleo da “Retomadas”, que eu e a Clarissa [Diniz] dirigimos. Nós começamos a fazer o trabalho e veio o veto das fotografias do Movimento Sem Terra (MST) e isso me frustrou ainda mais.

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Na verdade eu me coloquei dez vezes, [expliquei] como é o meu jeito de trabalhar. E aí, quando fui cobrar, me coloquei enquanto indígena, também nesse lugar que não é só [de] produzir e [de] estar ali só para atender demanda, [mas] eu não fui escutada. Eu fiquei muito chocada com isso e fiquei muito mal, porque me senti violentada, silenciada, de várias formas.

Quando eu entrei, me perguntaram o que é que eu iria mudar [no Masp]. Aí eu falei que não gostaria de mudar nada, mas faria o possível para me sentir como soma, [como] parte. Quando a gente soma, a gente amplia a coisa, né? E como eu não me sentia confortável para poder ampliar, eu saí pelo mesmo motivo que eu entrei: para ampliar.

Você considera que a arte contemporânea, em si, está preparada para receber essas outras narrativas e o corpo indígena?

Já existem muitos parentes fazendo isso, não somente como artistas mas como intelectuais, como acadêmicos, como lideranças e vários outros. A arte contemporânea aparece como resultado em uma obra, mas é muito mais que isso:  artes contemporâneas existem dentro da comunidade e fora da comunidade.

O artista, nesse caso, faz a ponte. Nem todos os artistas que estão ali têm resistência, mas estão resistindo mulheres, homens, os mais velhos. Eles estão ali resistindo. Tem muita gente que vai, mas, enquanto isso, tem muita gente que fica também nas suas aldeias resistindo. Principalmente as mulheres, as mães, que estão ali praticando suas rezas para aqueles que estão lá fora.

O que é arte contemporânea para nós? É muito mais do que pode ser visto, porque tem coisas que não são para serem vistas, não são para serem faladas e isso é importante só para nós. Então, como é que a gente nomeia isso? Essa é uma outra questão, que eu chamo de memória ancestral e que também é um patrimônio para gente, por exemplo, os saberes das parteiras. Elas têm sua sabedoria para fazer parto, isso é dela e não é lugar em nenhum outro lugar assim. Isso também é arte contemporânea.

Não dá para apenas só chamar o artista que está na galeria, no museu ou independente do espaço. Porque, com isso, a gente pode reproduzir essa visão colonial e silencia também a outra parte da versão. A obra é muito maior do que aquilo que está ali, né? Vamos dizer… o objeto, a pintura, sei lá, o que aparece ali, é muito maior. Tem muita gente segurando a arte.

Quais são os outros espaços para além do museu que poderiam comportar a arte indígena?

Eu acho que esse espaço que eles estão reivindicando [da arte fora do museu] é importante, porque tem essa ideia de que o museu só recebe. Mas o museu também é a forma da cidade preservar o acervo, o conhecimento; essa ideia de ficar fixo para conservar é limitadora, que para ser preservado é importante manter na cidade.

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Da esquerda à direita: Sandra Benites, Watatakalu Yawalapiti, Vanda Witoto e Txai Suruí, no lançamento do livro “Povos Indígenas no Brasil 2017/2022” 📷 Claudio Tavares/ISA

O que é importante para a gente, indígena, talvez não vai caber dentro do Museu. Por exemplo a dança; isso não vai caber no museu. Quando eu fui para o Masp, eu tive essa sensação também. Eu lembro de muitos parentes falarem assim: “Olha, como é que a gente vai fazer fogueira [aqui]?”. Por exemplo, quando  queremos fazer uma roda de conversa só nós indígenas [Guarani], utilizamos a fogueira. Será que o museu deixa a gente fazer fogueira? Uma roda de conversa e em torno da fogueira? Não, não tem estrutura para isso. Então o que é que o museu pode fazer? A gente pode questionar isso. O museu pode se ampliar e se estender a partir dessa demanda. E eu acho que esse é o desafio: pensar nesses espaços [em] que caibam as necessidades reais dos indígenas.

Então a arte indígena não é essa coisa delimitada mas ao mesmo tempo precisa de uma demarcação? Qual é a importância política dessa demarcação?

A importância é de dizer que estamos ali também para disputar de igual para igual, com os artistas jurua [não indígenas] que têm esse conhecimento, que têm nome. Acho que os jovens artistas indígenas começaram a atravessar essas fronteiras com mais força. Na verdade, [essa fronteira] não foi colocada por nós; as fronteiras do mundo da arte também não foram colocadas por nós indígenas, mas pelo próprio pensamento ocidental de entender que a arte é dessa forma, de uma forma.

A gente também entende que nós temos a nossa essência enquanto indígenas, essência também na arte. Mas também temos consciência de que essa não é uma forma importante para a gente, mas, de uma forma muito irônica, a gente precisa estar dialogando, estar no mesmo lugar, até para poder discutir essas questões.

Você entende que a arte indígena pode ser uma ferramenta possível para fazer com que esse país acorde a sua memória e desperte para outros imaginários e realidades possíveis?

Para pensar o futuro, a gente precisa fazer como se fosse uma peneirada da memória, para que a gente siga com aquilo que é importante para gente e, claro, que a gente também não deixe o que foi ruim. Pois isso serve para a gente criar outros caminhos. Não é que a gente tem que deixar para trás, tem que esquecer tudo, não é isso. Na verdade, a gente precisa, a partir dela [memória], criar outros caminhos para o futuro e não renegar, não repreender o nosso sentimento.

A sociedade brasileira tem muito isso: [ela] se constituiu, ela se transformou, ela nasceu já com essa violência, com essa distorção das coisas. Nós somos isso e a gente precisa aceitar que nós somos diversos, que o Brasil foi de fato invadido e roubado, deturpado  e violentado.

O que é preciso, hoje, é entrar em acordo com a nossa memória. Como é que a gente pode caminhar dentro dessa nossa diversidade? Os artistas indígenas estão fazendo a sua parte.

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Entrevista realizada por Tainá Aragão, jornalista do ISA, em 2022, via plataforma de viodeconferência

Fonte: https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/arte-para-fazer-acordar-memoria

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