Ailton Krenak em seu livro recente “O amanhã não está à venda” faz um alerta: “Quem está apenas adiando compromissos, como se tudo fosse voltar ao normal, está vivendo no passado. O futuro é aqui e agora, pode não haver ano que vem”.

A presença pandêmica do novo coronavírus impeliu nossa escala de prioridades a entrar em perspectiva. Nunca se falou tanto em “humanidade”.

“Quanto vale e vida?”, perguntou certa vez Dona Graça Juruna da aldeia Mïratu, Terra Indígena Paquiçamba (PA), a representantes da Norte Energia que lhe apresentavam projetos mal fadados de mitigação em decorrência dos impactos de Belo Monte, o roubo das águas do Rio Xingu.

Estamos numa brecha, numa dobra, como nos diria Deleuze. As dimensões e as priorizações de escalas estão sendo revistas com essa pandemia. Intrusão de Gaia? Pergunto à Isabelle Stengers.

E se nessa brecha, nós parássemos e passássemos a ouvir, conseguir ouvir e entender o que os povos indígenas como os Mẽbengôkre-Xikrin e os Juruna Yudjá da Volta Grande do Xingu têm a dizer? E se passássemos a considerar seus regimes de existência como formas que nos persuadem?

Eu imagino a seguinte cena: através dos ruídos do rádio amador, instrumento fundamental para comunicação dos povos indígenas, a Terra, planeta, diz a nós, humanidade: “Vocês precisam aprender a ouvir para entender”.

Essa é uma formulação típica da língua mẽbengôkre, falada por povos que assim se denominam e compostos por dois grupos também conhecidos como Kayapó e Xikrin. A expressão que corriqueiramente é falada nas conversas de rádio é “Ga má?”, que em português seria “Você foi capaz de conseguir entender? Seu ouvido conseguiu ouvir para entender?”. Ao que se pode responder afirmativamente: “Arup ba kumá”, expressão traduzida como “Sim, eu fui capaz de entender o que ouvi no meu ouvido”.
A Terra, planeta, está perguntando-nos se somos capazes de conseguir entender o que ela nos diz. É uma chamada de atenção e um grito de urgência.

Com esse grito ressoando nos amplificadores da questão de permanência da humanidade como espécie, organizo o exercício de convocar questões e provocar respostas sobre o mundo, esse futuro de agora.

Para composição de meu exercício, recorro então a partes de meu material de trabalho etnográfico para forjar um diálogo imaginado que, apesar disso, existe. Inspiro-me no que fez o filósofo francês François Julien, no livro chamado Fundar a Moral. Para fazer uma potente crítica ao modo de produção predatória e capitalista do conhecimento ele forja um diálogo entre Confúcio e a filosofia ocidental.

Pergunto. E se superássemos a dicotomia natureza e cultura que fundamenta nossas práticas de exploração econômica e transforma todas as formas de vida, existência e paisagem em recurso a ser confiscado, vendido, apropriado e transformado em lucro para os bolsos dos homens, que se consideram os donos do relógio da velocidade do mundo?

Em 2020, os caciques Mẽbengôkre-Xikrin reunidos com seus guerreiros na aldeia Krimex solicitaram que eu registrasse suas declarações a respeito das invasões, desmatamento e queimada de suas terras, intensificadas desde 2018, com a eleição de Bolsonaro. Os Mẽbengôkre-Xikrin empenhavam-se, como fizeram tantas outras vezes, em “mostrar seu pensamento” para os brancos. Os guerreiros índios com suas bordunas, exibindo suas pinturas corporais e adornos cerimoniais entoaram seu canto-dança de guerra. Bepydjy, avô de muitas crianças anunciou:

Nossa terra só é essa
Não queremos ver a nossa floresta derrubada
Nossa terra é uma só
Antigamente quando eu ainda não era adulto
Eu via essa terra e eu via seu pensamento bom e forte
Eu comia os animais, jabutis que eu caçava
Era isso que eu comia com meus parentes
Eu gostava muito disso
Eu fazia os braceletes para as festas
Os enfeites
Mas agora chegou o dia de hoje
Esse dia chegou, não é mesmo?
Nós pessoas humanas só temos essa terra
Essa é nossa terra verdadeira
Essa é nossa terra primeiro, nossa primeira terra
Precisamos conseguir ficar aqui onde estamos
Vamos manter a floresta assim com seus jabutis vivos
Eu vi essa terra boa e bonita
Eu matei porcões
Eu pintei meu rosto e meu corpo de preto
Eu gosto da floresta
Não mexa nas terras dos Mẽbengôkre
Não roubem nossa madeira para vendê-las
Eu gosto da floresta
Eu sou feliz na floresta
Eu já estou adulto
Eu já sou avô
Nós falamos uma fala só
Nós falamos a mesma fala que falam os nossos velhos
Nós falamos a mesma fala que falam os chefes antigos
Nossa terra é única
Nossa fala é uma só
Nós somos o seu verdadeiro dono
Não são duas
Nossa terra é única

Minha resposta a essa convocação para defesa dos territórios indígenas e ribeirinhos é realizar uma ampliação do alerta e fazer com que esse reclame se espalhe e possa influenciar nas ações de fiscalização desses territórios, cujas instituições responsáveis sofrem sabidamente desmantelos governamentais.

A solução não é complicada, ao contrário. Trata-se de justiça epistêmica frente ao conhecimento de povos que estão conectados com os rios, as matas, as chuvas, os ventos, as roças. Trata-se de considerar com seriedade as preocupações juruna com o fim do sossego dos peixes depois que o Xingu passou a ser controlado por máquinas para o roubo de suas águas. De levar às últimas consequências relações de conexão e pertencimento: “o Xingu é nosso pai e nossa mãe, ele pulsa em nós”, “nós temos canoas no lugar dos pés”.

Precisamos, se quisermos continuar existindo, aprender a respeitar a terra-planeta, essa que nos é única. Para os Mẽbengôkre-Xikrin essa ideia passa pelo conceito pi’am e implica numa ação de envergonhar-se diante de. Assim como os meninos envergonham-se diante de seus avôs e tios maternos.

É hora de ouvirmos o chamado da terra no rádio amador, e nos envergonhar, mudar o rumo de nossas ações da predação capitalista e egoísta. Gamá? Fomos capazes de entender o que nos está sendo dito?

 

 

 

Fonte: https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-xingu/nossa-terra-e-uma-so

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