Os povos indígenas têm um papel importante como guardiões da floresta, evitando as emissões oriundas do desmatamento e da degradação florestal. Terras indígenas na Amazônia brasileira têm menos desmatamento que terras não indígenas, incluindo várias categorias de áreas protegidas para a biodiversidade (por exemplo, [1, 2]). No entanto, essa proteção não é automática e não pode simplesmente ser presumida a continuar como um serviço “gratuito” para a sociedade em geral [3].
O combate ao aquecimento global é do interesse dos povos indígenas porque as mudanças climáticas ameaçam a própria existência das florestas, junto com os meios de subsistência e as culturas dos povos indígenas. Mudanças climáticas descontroladas podem destruir a floresta amazônica por meio de secas e incêndios florestais (por exemplo, [4]). Em sua participação na COP-26, os povos indígenas terão grande autoridade moral para insistir que os países do mundo tomem ações suficientes para manter o aumento da temperatura global dentro do limite de 1,5 ºC que é o objetivo do Acordo de Paris e que é necessário para evitar o sério risco não só de cruzar pontos de inflexão para o clima global, mas também para grandes secas e incêndios florestais na Amazônia.
Os povos indígenas também podem insistir que quaisquer fundos destinados ao Brasil para combater o aquecimento global sejam usados para proteger a floresta amazônica e não para subsidiar fazendeiros amazônicos para replantar árvores nas faixas ao longo dos cursos d’água exigidas pelo atual código florestal, ou para subsidiar a modificação das atividades em áreas já desmatadas, como a adoção de métodos de plantio direto para a soja. Sendo que a quantidade de dinheiro “verde” é sempre limitada, cada real gasto no plantio de árvores representa um real a menos para evitar o desmatamento e a degradação florestal. Além do benefício muito maior para o clima, investir na manutenção da floresta também mantém os povos da floresta, a biodiversidade e a função da floresta na reciclagem de água que é vital para manter o transporte do vapor de água pelos “rios voadores” – os ventos que transportam água da Amazônia para São Paulo e outras partes do sudeste e sul do Brasil [5]. Essas funções não são fornecidas por outras opções de mitigação do aquecimento global.
Encontrar formas de fazer o pagamento por serviços ambientais como alternativa à destruição é um grande desafio. Isso não pode ser feito em um formato de “refém”, efetivamente ameaçando cortar a floresta a menos que um resgate seja pago. Os povos indígenas não recorreram a este tipo de ameaça, ao contrário de alguns políticos brasileiros. Os povos indígenas devem deixar claro que não querem dinheiro, mas sim a proteção de seus direitos às suas terras tradicionais. Em contraste com as políticas atuais do governo brasileiro, as autoridades governamentais devem demarcar ainda mais terras indígenas e proteger todas essas terras no país. Os invasores não indígenas, um grupo que tem crescido muito em número e na ousadia de suas atividades sob a atual governo no Brasil, devem ser removidos e punidos.
Existem várias maneiras pelas quais os povos indígenas podem contribuir para o combate às mudanças climáticas. Eles poderiam deter a extração de madeira em suas terras, atividade que, muito mais do o desmatamento, está cada vez mais presente nessas áreas. A extração de madeira aumenta muito o risco de incêndios florestais durante secas severas e muitas vezes é o início de um círculo vicioso de incêndios florestais sucessivos e perda de biomassa [6, 7]. Os povos indígenas também podem interromper qualquer desmatamento para pastagem em suas terras, uma atividade que não só destrói a floresta diretamente mas também serve como fonte de ignição para incêndios florestais em terras indígenas (por exemplo, [8]). Os indígenas também podem se comprometer a não permitir o uso de suas terras por empresas ou não indígenas, mesmo que o Congresso Nacional aprove o projeto de lei (PL 191/2020) que o presidente Jair Bolsonaro submeteu para abrir terras indígenas a esses atores [9-11].
Um desafio importante é definir como o dinheiro pode ser usado por grupos indígenas de forma que o dinheiro, ou a perspectiva de dinheiro, não tenha o efeito de fragmentar os grupos entre líderes ou clãs concorrentes, como já aconteceu nos casos em que dinheiro ou benefícios materiais apareceram (por exemplo, [12]). Os próprios grupos também precisam encontrar maneiras de evitar a espiral interminável de crescentes ambições materiais.
O desejo do mundo de ajudar os povos indígenas na manutenção de suas florestas não deve servir de desculpa para o governo brasileiro simplesmente captar os recursos como complemento ao orçamento nacional, como sugere a infame apresentação em Powerpoint do então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, quando se apresentou como do Brasil posição oficial um desenho de um cachorro (representando o Brasil) olhando avidamente para uma fileira de frangos assando em um rotissário de beira de rua (representando créditos de carbono) [13].
Apesar de todos esses desafios, o princípio do pagamento por serviços ambientais é válido, e o serviço prestado pela floresta amazônica para ajudar a evitar uma catástrofe global por mudanças climáticas é substancial. Encontrar soluções para esses desafios deve ser uma prioridade tanto para os governos mundiais reunidos na COP-26 quanto para os povos indígenas da Amazônia.
A imagem que ilustra este artigo mostra Indígenas Kanamari na TI Vale do Javari no Amazonas (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Notas
[1] Nepstad, D.C., S. Schwartzman, B. Bamberger, M. Santilli, D. Ray, P. Schlesinger, P. Lefebvre, A. Alencar, E. Prinz, G. Fiske & A. Rolla. 2006. Inhibition of Amazon deforestation and fire by parks and indigenous lands . Conservation Biology 20: 65–73.
[2] Nogueira E.M., A.M. Yanai, S.S. Vasconcelos. P.M.L.A. Graça & P.M. Fearnside. 2018. Carbon stocks and losses to deforestation in protected areas in Brazilian Amazonia. Regional Environmental Change 18(1): 261-270.
[3] Fearnside, P.M. 2005. Indigenous peoples as providers of environmental services in Amazonia: Warning signs from Mato Grosso . p. 187-198. In: A. Hall (ed.) Global Impact, Local Action: New Environmental Policy in Latin America , University of London, School of Advanced Studies, Institute for the Study of the Americas, London, U.K. 321 p.
[4] Lovejoy T.E. & C. Nobre. 2018. Amazon tipping point . Science Advances 4: art. eaat2340.
[5] Fearnside, P.M. 2015. Rios voadores e a água de São Paulo . Amazônia Real http://philip.inpa.gov.br/publ_livres/2015/Rios_voadores-Série_completa.pdf
[6] Barni, P.E., A.C.M. Rego, F.C.F. Silva, R.A.S. Lopes. H.A.M. Xaud, M.R. Xaud, R.I. Barbosa & P.M. Fearnside. 2021. A extração de madeira da floresta amazônica aumentou a severidade e a propagação dos incêndios durante o El Niño de 2015-2016. Tradução de: Logging Amazon forest increased the severity and spread of fires during the 2015-2016 El Niño. Forest Ecology and Management 500: art. 119652.
[7] Berenguer, E., J. Ferreira , T.A. Gardner, L.E.O.C. Aragão, P.B. de Camargo, C.E. Cerri, M. Durigan, R.C. de Oliveira Jr., I.C.G. Vieira & J. Barlow. 2014. A large-scale field assessment of carbon stocks in human-modified tropical forests . Global Change Biology 20(12): 3713–3726.
[8] Graça,P.M.L.A., C.S.M.N. Vitel & P.M. Fearnside. 2012. Detecção de cicatrizes de incêndios florestais utilizando a técnica de análise por vetor de mudança na Terra Indígena Sete de Setembro – Rondonia . Ambiência 8: 511-521.
[9] Câmara dos Deputados. 2020. PL 191/2020.
[10] Rocha, J.2020. Bolsonaro sends Congress bill to open indigenous lands to mining, fossil fuels . Mongabay, 07 de fevereiro de 2020.
[11] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2021. Brazilian government violates Indigenous rights: What could induce a change? Die Erde 152(3): 200-211.
[12] Fearnside, P.M. 2017. Belo Monte – Atores e argumentos: 8 – Grupos indígenas . Amazônia Real , 17 de outubro de 2017.
[13] Dias, M. 2021. Em reunião com EUA, Salles mostra Brasil como cachorro de olho em frango de padaria . Folha de São Paulo , 13 de abril de 2021.
Comentários