Estou em período de quarentena, fazendo prevenção da contaminação do novo coronavírus, que provoca a doença Covid-19. Pego um dos livros mais significativos que li nos últimos tempos sobre cultura ancestral de um povo da Amazônia: “A queda do Céu: palavras de um xamã yanomami”, de autoria de Davi Kopenawa e do antropólogo francês Bruce Albert. O livro foi publicado na França, em 2010, e no Brasil em 2015, pela Companhia das Letras. Chegou às minhas mãos em 2019: tem 729 páginas, 24 capítulos, postcriptum e anexos.
Nas palavras de Eduardo Viveiros de Castro, que prefaciou o livro, trata-se de uma narrativa de vários gêneros: “mitos e narrativas de sonhos, visão e profecias xamânicas, falas reportadas e exortações políticas, etnografia e antropologia simétrica” (p. 50-1). É uma história pessoal e também aborda o destino coletivo de um povo.
Durante a leitura, senti que era um livro importante para estudo, mas na ocasião não me foi possível, devido à grande quantidade de páginas. Mas a leitura do livro como um todo, tornou possível saber como pensa um xamã da floresta amazônica e como ele enxerga o mundo dos indígenas e dos brancos, e também que conselhos dá para a humanidade. Na minha visão, é um tratado para refletirmos sobre a importância da floresta e dos povos que nela vivem e sobre a importância do xamã e seus espíritos, na manutenção do equilíbrio da vida do planeta e na saúde das pessoas.
Abro aleatoriamente o livro como faço com meu oráculo. A palavra que me surge, de imediato, é epidemia. Senti como sendo um apelo para eu escrever sobre o tema. Li toda a página, mas para compreendê-la melhor tive que me remeter a outros trechos do livro para entender mais sobre a epidemia e as experiências do xamã Davi Kopenawa sobre as causas e o processo de cura.
O texto que se segue não é uma resenha nem um estudo aprofundado, como eu gostaria de produzir. Extraí alguns dados e trechos do livro, que me ajudaram a relacionar o que o xamã disse sobre as vivências relacionadas à epidemia, procurando contextualizar o leitor na realidade de seu grupo indígena, que mais uma vez se sente ameaçada pela pandemia. Fiz questão de grifar algumas palavras associadas com o momento que vivemos da Covid-19, para chamar a atenção no momento da reflexão, durante a leitura do texto. Irei publicar em minha coluna uma série de quatro artigos a partir de hoje, relacionados a esse tema.
A invasão dos brancos, as epidemias e mortes contínuas
Os indígenas Yanomami vivem na Amazônia brasileira e venezuelana. No país, o território de 9,6 milhões de hectares e abrange parte noroeste do estado de Roraima e a outra ao norte Amazonas. Eles estão organizados em sociedades de caçadores-coletores e agricultores de coivara (que alternam o plantio no terreno). De acordo com o Instituto Socioambiental (ISA), a população Yanomami era de 26.780 pessoas no Brasil, em 2019, segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Na Venezuela, são 11.341 indígenas dessa etnia.
Os primeiros contatos dos Yanomami com os brancos aconteceram no início do século XX, com a chegada de coletores de produtos da floresta (balateiros e piaçabeiros), caçadores, assim como de viajantes estrangeiros e militares que faziam a demarcação de fronteiras. Foi na década de 1940 que chegaram as primeiras missões católicas e evangélicas e também os agentes do Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Em 1963, quando Davi estava com quatro anos, os missionários se estabeleceram no local onde o menino vivia com a família.
Na chegada, os forasteiros exibiam objetos manufaturados e diziam boas palavras: “Vamos ficar amigos! Vejam, estamos dando uma grande quantidade de nossos bens de presente a vocês! Não estamos mentindo!” (p. 245). No livro, Davi reflete sobre as consequências do comportamento de seus ancestrais em aceitar aqueles presentes, sem imaginar as consequências: “Aliás, é sempre assim que os brancos começam a falar conosco! Depois, logo atrás deles, chegam os seres de epidemia xawarari e então começamos a morrer um atrás do outro. Nossos antigos ainda não sabiam nada desse perigo. Queriam apenas trocar facões, machados, roupas, arroz, sal e açúcar. […] Assim que conseguiram os preciosos objetos e alimentos que tanto desejavam, ficaram doentes e depois começaram a morrer em série, um por um” (p. 245).
A primeira experiência de Davi com a epidemia foi de sarampo, trazida à comunidade pela filha de um pastor. A doença matou o pai de Davi, que ainda era menino, assim como muitos de seus familiares. “Foi assim que desapareceram quase todos os meus maiores, só por querer fazer amizade com os brancos. Depois da morte deles, fiquei só, com minha raiva. Ela nunca mais me deixou desde então. É ela que me dá força de lutar contra os forasteiros que só pensam em queimar as árvores da floresta e sujar os nossos rios, como um bando de queixadas” (p.245).
Na década de 70, em 1973, com a abertura da estrada Perimetral Norte, pelo governo militar, muitos trabalhadores de outros lugares do país chegaram à região. Em 1976, quando Davi estava com 20 anos, foi contratado para trabalhar como intérprete na Fundação Nacional do Índio (Funai), ocasião em que deu continuidade ao aprendizado da língua portuguesa e dos costumes dos brancos, que havia iniciado na infância, no convívio com missionários que também lhe deram o nome de Davi. Foi nesse período na Funai que o indígena conheceu o antropólogo Bruce Albert, vindo da França, que estava estudando os Yanomami há algum tempo. Bruce se tornou um grande parceiro nas lutas pelos direitos desse povo e pela homologação da Terra Indígena Yanomami, anos depois.
No trabalho da Funai, Davi contraiu tuberculose e foi hospitalizado. Colocaram ele no mesmo quarto em que dormia um branco com a doença, que se recusava a se tratar, mas não deram ao indígena qualquer recomendação para se prevenir da doença: “Comíamos no mesmo prato, na mesma panela. Compartilhávamos os mesmos pratos e canecas. Às vezes, ele me dava seu resto de café” (p. 287). O rapaz morreu e Davi, doente, foi levado para se tratar num hospital de Manaus, onde ficou internado por um ano. A vontade de ser como branco desapareceu de sua mente e, após ser curado, voltou para sua terra natal, numa época em que o governo militar propunha a emancipação dos indígenas.
Logo depois, em 1980, Davi casou-se com a filha de um grande xamã e foi viver na comunidade de Watoriki, onde a família da jovem vivia. No final desse ano, depois da invasão da terra indígena por mais de 40.000 garimpeiros, 1.000 indígenas Yanomami foram exterminados por atos de violência e também doenças (p. 46). Mais uma vez Davi sofria com a perda de mais parentes, retornando as recordações das perdas vivenciadas na infância.
Em 1987 começou a corrida do ouro nas terras Yanomami. Davi, com outras lideranças indígenas de todo o país e parceiros ambientalistas, como Bruce, conseguiram assegurar o reconhecimento dos direitos originários dos povos indígenas na Constituição Federal de 1988. Mas ainda faltava o apoio governamental para a expulsão dos invasores dos territórios indígenas. Foi somente em 1990 que a Polícia Federal interveio no território Yanomami, retirando os garimpeiros, que deixaram rastros de mortes e destruição durante os anos em que estiveram ali. Em 1992, a partir de campanhas feitas com Davi e Bruce em grandes cidades do país, assim como na Europa e Estados Unidos, foi conquistada, finalmente, a homologação do Território Indígena Yanomami (TIY), durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, ECO-02, em reconhecimento à relevância da biodiversidade daquele território (p. 47)
Apesar das conquistas dos direitos dos indígenas, até hoje os garimpeiros, madeireiros e fazendeiros continuam invadindo as terras Yanomami. São motivados pela falta de fiscalização e de ação do governo federal para a expulsão dos invasores. Assim, as comunidades Yanomami e de outros povos indígenas continuam sofrendo ameaças de invasão, epidemias e morte, com as constantes promessas do presidente Bolsonaro e de seus apoiadores no Congresso Nacional, de tornar as terras indígenas “produtivas”, com a abertura para a extração de minérios por grandes mineradoras, exploração da agricultura e criação de gado por grandes fazendeiros. Com isso, criam uma constante ameaça aos direitos assegurados pelos indígenas na Constituição Federal, negando anos de muito sofrimento, mortes e lutas pela autodeterminação dos povos tradicionais do país.
Em relação à constante ameaça aos direitos dos indígenas, assegurados pela carta magna do país, Gustavo Proença, pesquisador em Direitos Humanos, retoma os capítulos específicos da Constituição de 1988 (Título VII, Da Ordem Social, Capítulo VIII, Dos Índios), e ressalta que “enquanto o Estatuto do Índio (Lei 6.001), promulgado em 1973 [durante o governo militar], previa prioritariamente que as populações deveriam ser ‘integradas’ ao restante da sociedade, a Constituição [de 1988] passou a garantir o respeito e a proteção à cultura das populações originárias”.
Ele destaca que “o Constituinte de 1988 entende que a população indígena deve ser protegida e ter reconhecidos sua cultura, seu modo de vida, de produção, de reprodução da vida social e sua maneira de ver o mundo”. Nesse sentido, reforça os direitos dos povos indígenas serem respeitados na sua forma de organização social, nos seus costumes, línguas, tradições e crenças.
Referência: KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
A fotografia que abre este artigo é de uma mulher Yanomami preparando o biju (Foto cedida por Rosa Gauditano/Studio R)
Elvira Eliza França é mestre em Educação pela UNICAMP, pós-graduanda em Neurociência e Comportamento pela PUC (RS), especialista em Programação Neurolinguística pelo NLP Comprehensive dos EUA e graduada em Comunicação Social pela Universidade de Mogi das Cruzes (SP). É autora dos livros: “Crenças que promovem a saúde: mapas da intuição e da linguagem de curas não-convencionais em Manaus, Amazonas” editado pela Valer e Secretaria de Cultura e Turismo do Amazonas (2002); “Corporeidade, linguagem e consciência: escrita para a transformação interior” (1995), “Dimensões interiores da escrita: a voz da criança interior” (1993), “Do silêncio à palavra: uma proposta para o ensino da filosofia da educação” (1988) e “Filosofia da educacão: posse da palavra” (1984), publicados pela Editora Unijuí (RS).
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