É importante responder aos pontos levantados pelo Hermani Vieira, da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), no seu comentário sobre meu texto de 12 de março de 2020 “Os riscos do projeto de gás e petróleo na ‘Área Sedimentar do Solimões’” [1], publicado pela agência Amazônia Real. Como mencionado no comentário, uma crítica mais extensa preparada pela EPE vai ser publicada no site de Mongabay. Isto deve sair na próxima semana, em Inglês e Português, junto com a minha resposta. A leitura é altamente recomendada (Mongabay). A seguir considero os seis pontos numerados levantados no atual comentário de Hermani Vieira. (Leia o cometário)

1.) O comentário explica a responsabilidade da EPE para contribuir para o planejamento energético do País e enfatiza que o EAAS Solimões [2] não é um EIA e que não é um projeto nem autoriza nem implanta poços. É claro que não chegou a essas fases ainda, mas o EAAS Solimões, sim, faz parte do processo burocrático que leva justamente a essas ações futuras e aos seus impactos associados. Estes impactos não são limitados à infraestrutura implantada diretamente pelas empresas petrolíferas, mas resultariam de toda uma cadeia de eventos prováveis envolvendo também outros atores [3, 4]. As atividades sendo facilitadas pelo EAAS Solimões contribuiriam para a abertura para entrada de grileiros, sem-terras, madeireiras e outros, na enorme região localizada entre o rio Purus e a fronteira peruana.

Esta região é o último grande bloco de floresta intacta na Amazônia brasileira, e é essencial para suprir serviços ambientais que hoje são tratados como se fossem eternamente garantidos. Entre esses é a reciclagem de água pela floresta, que abastece chuvas no sudeste brasileiro, especialmente no curto período no ano quando enchem os reservatórios hidrelétricos nas bacias dos rios Paraná e São Francisco [5]. Manter a capacidade de geração das hidrelétricas já existentes no País faz parte das atribuições diretas da EPE. Certamente não há uma prioridade maior para os que planejam os rumos de desenvolvimento no Brasil do que tomar todas as precauções para manter este bloco de floresta intacto. A EPE, como agência que compartilha a responsabilidade para traçar o caminho de desenvolvimento no Brasil, seria omissa em não considerar as consequências de facilitar um projeto de petróleo e gás que implica em riscos desta magnitude.

2.) O comentário enfatiza que, no mapa que reproduzi do documento EAAS Solimões, as linhas verdes que aparecem no mapa são apenas locais de prospecções já realizada por técnicas sísmicas e não (ainda) por perfuração de poços exploratórios. Porém, o mapa demonstra justamente a enorme extensão da iniciativa, fato que não é alterado pelo plano das empresas perfurarem poços apenas nos locais mais promissores ao longo das linhas verdes indicadas no mapa. Os acontecimentos também não terminam no final dos “próximos 20 anos” durante os quais o comentário diz que teriam poucos poços.

3.) O comentário diz que há pouco risco de derramamentos de petróleo, inclusive por “existirem medidas regulatórias para evitar e lidar com eventuais acidentes”. Infelizmente, essas medidas regulatórias não oferecem tanta garantia contra acidentes, como ficou claro com os desastres de Mariana [6] e Brumadinho [7]. Além disso, o atual governo brasileiro tem realizado um desmonte marcante dos órgãos reguladores e fiscalizadores [8, 9].

4.) Com relação aos povos indígenas e tradicionais, o fato da área onde empresas de petróleo e gás estão querendo permissão para explorar nos territórios de povos isolados se localiza adjacente da “bacia efetiva Solimões” tratada no EAAS Solimões não altera a gravidade do quadro. As empresas interessadas na bacia efetiva Solimões incluem a companhia estatal russa Rosneft, que é alvo de uma longíssima série de acusações, inclusive um relatório do Greenpeace Rússia em 2018 que indica a empresa como responsável por mais de 10 mil derramamentos de petróleo por ano no mundo (ver [10]). Não é provável que empresas como Rosneft respeitassem os direitos indígenas mais que o mínimo absoluto efetivamente exigido pelo governo brasileiro. Também não é provável que o governo fizesse cumprir as garantias contidas na legislação brasileira, como é demonstrado pela atual falta de consulta de povos indígenas impactados pela rodovia BR-319 [11]. O atual governo brasileiro está empenhado em um esforço abertamente declarado para reduzir as proteções de povos indígenas [12, 13] e para abrir áreas indígenas à entrada de diversos tipos de exploração, inclusive petróleo e gás [14, 15].

5.) O comentário argumenta que a minha preocupação com a “eventual abertura de estradas para transportar produção e, como consequência, promover um crescimento acentuado do desmatamento na região” seja infundada porque “não seria técnica ou financeiramente viável transportar petróleo ou gás natural” por estradas. No entanto, meu texto não alega que sejam as próprias empresas de petróleo e gás que construiriam as estradas, nem que o uso das estradas seria para transportar “a produção [de petróleo e gás]”. As estradas são mais prováveis de serem feitas pelo governo, embora podendo responder a um lobby que incluiria as empresas, e a vantagem para as empresas seria de baratear o transporte de material e pessoal hoje feito por transporte aéreo bastante caro no “modelo plataforma”, como se as bases de exploração fossem plataformas petrolíferas no mar. Caso que estradas forem construídas, o desmatamento seria feito por outros atores que não fazem parte dos cenários imaginados no EAAS Solimões.

6.) O comentário de Hermani Vieira termina enfatizando que “as instituições governamentais envolvidas com o EAAS Solimões estão constantemente preocupadas com impactos sociais e ambientais associados com as atividades petrolíferas e em como evitá-los e mitigá-los”. É claro que é bom que as instituições tenham essas preocupações. No entanto, como a frase implica, esta preocupação é limitada a evitar ou mitigar impactos presumindo que a iniciativa de exploração de petróleo e gás tratada no EAAS Solimões de fato aconteça. O que falta é considerar a questão de se essa iniciativa deve acontecer ou não. Responder a essa questão envolve considerar não só impactos “associados com as atividades petrolíferas”, que os autores do EAAS Solimões evidentemente definam de forma extremamente limitada, mas também considerar os impactos maiores que se seguem quando novas fronteiras são abertas na Amazônia.

O risco de perda da floresta justamente no local da inciativa de petróleo e gás remate diretamente à finalidade da EPE de contribuir para guiar a política energética no País. Isto é devido às consequências para o espinho dorsal do sistema elétrico brasileiro, que é baseado em hidrelétricas como Itaipu e outras nas bacias dependentes da água transportada da parte da Amazônia em questão por “rios voadores”. O papel de fornecer o vapor d’água que é transportada por estes ventos é crítico para abastecer água à cidade de São Paulo. Isto, entre outras funções da floresta em questão, deve levar qualquer pessoa a pensar duas vezes sobre a sabedoria da iniciativa facilitada pelo EAAS Solimões.

Notas

[1]. Fearnside, P.M. 2020. Os riscos do projeto de gás e petróleo “Área Sedimentar do Solimões”. Amazônia Real12 de março de 2020.

[2]. Consórcio PIATAM/COPPETEC & EPE. 2019. Estudo Ambiental de Área Sedimentar na Bacia Terrestre do Solimões: EAAS Preliminar Relatório Técnico destinado à Consulta Pública. Consórcio PIATAM/COPPETEC, Manaus, AM & Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Rio de Janeiro, RJ. 497 p.

[3]. Fearnside, P.M. 2008. The roles and movements of actors in the deforestation of Brazilian Amazonia. Ecology and Society 13(1): art. 23.

[4]. Fearnside, P.M. & P.M.L.A. Graça. 2009. BR-319: A rodovia Manaus-Porto Velho e o impacto potencial de conectar o arco de desmatamento à Amazônia centralNovos Cadernos NAEA 12(1): 19-50.

[5]. Fearnside, P.M. 2015. Rios voadores e a água de São Paulo [Amazônia Real Série completa].

[6]. Fernandes, G.W., F.F. Goulart, B.D. Ranieri, M.S. Coelho, K. Dales, N. Boesche, M. Bustamante, F.A. Carvalho, D.C. Carvalho, R. Dirzo, S. Fernandes, P.M. Galetti Jr., V.E.G. Millan, C. Mielke, J.L. Ramirez, A. Neves, C. Rogass, S.P. Ribeiro, A. Scariot & B. Soares-Filho. 2016. Deep into the mud: ecological and socio-economic impacts of the dam breach in Mariana, Brazil. Natureza & Conservação 14: 35-45.

[7]. Darlington, S., J. Glanz, M. Andreoni, M. Bloch, S. Peçanha, A. Singhvi & T. Griggs. 2019. A tidal wave of mud. The New York Times, 9 February 2019.

[8]. Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2019. Brazil’s new president and “ruralists” threaten Amazonia’s environment, traditional peoples and the global climate. Environmental Conservation 46(4): 261-263.

[9]. Fearnside, P.M. 2019. Desmonte da legislação ambiental brasileira. p. 317-381.In: J.S. Weiss (ed.) Movimentos Socioambientais: Lutas – Avanços – Conquistas – Retrocessos – Esperanças. Xapuri Socioambiental, Formosa, Goiás. 442 p. https://doi.org/10.37682/xapbk.msoc-ed1-010

[10]. Wikipedia. 2020. Rosneft.

[11]. Ferrante, L.; M. Gomes & P.M. Fearnside. 2020. Amazonian indigenous peoples are threatened by Brazil’s Highway BR-319. Land Use Policy 94: art. 104598.

[12]. Gullino, D. & G. Shinohara. 2019. Bolsonaro diz que reservas indígenas buscam’ inviabilizar’ Brasil. O Globo, 27 de agosto de 2019. (https://oglobo.globo.com/sociedade/bolsonaro-diz-que-reservas-indigenas-buscam-inviabilizar-brasil-23908043)

[13]. Valente, R. 2019. Grupo do governo quer rever consulta a índios sobre grandes obrasFolha de São Paulo, 04 de outubro de 2019.

[14]. Ventura, M. 2020. Projeto do governo libera exploração econômica ampla em terras indígenas. O Globo, 11 de janeiro de 2020.

[15]. Senado Notícias. 2020. Chega ao Congresso projeto que permite mineração em terras indígenas.

 

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/petroleo-e-gas-no-solimoes-resposta-a-hermani-vieira-da-epe/

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