A antropóloga Beatriz Matos, que assumiu a diretoria do Departamento de Proteção Territorial e de Povos Isolados e de Recente Contato do Ministério dos Povos Indígenas, em Brasília – Pedro Ladeira/Folhapress

Antropóloga, viúva de Bruno Pereira, diz que a condição de bases de proteção é precária

Rosiene Carvalho

MANAUS

Amazônia brasileira é território de pelo menos 28 povos indígenas em situação de isolamento e de recente contato, e há registros de outros 86 grupos no país. Nos últimos quatro anos, a diversidade humana e cultural que os indígenas isolados representam foi posta em risco pelo Estado, com a desestruturação da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).

Para a antropóloga Beatriz Matos, diretora de Proteção Territorial e de Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato no MPI (Ministério dos Povos Indígenas), não há defesa da vida desses indígenas —cujos direitos estão previstos na Constituição e em convenções internacionais— sem condições de trabalho nas bases de proteção.

“Quando [os indígenas] expressam uma recusa ao contato, não necessariamente verbal, a gente entende que é uma escolha”, diz. “O que os faz vulneráveis é a ocupação violenta do território, que é deles ancestralmente. Estão lá muito antes de o Brasil existir.”

Nesta quarta-feira (19) é celebrado o Dia dos Povos Indígenas.

Na função desde o final de fevereiro, Matos representa a volta da política para os isolados a um parâmetro técnico. A nomeação do indigenista Leonardo Lenin à CGIIRC (Coordenação-Geral de Índios Isolados e Recém Contatados), na Funai, acompanha os esforços. Na gestão anterior, o setor chegou a ser alvo de investigação por favorecimento de grilagem de terras.

Matos, que foi uma das fundadoras do OPI (Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados), integra grupo que denunciou na Justiça brasileira e fora do país como a própria Funai —antes considerada referência na área— colocou em risco a vida indígena durante a gestão Bolsonaro (PL).

O marido de Matos, o indigenista Bruno Pereira, também ajudou a criar a organização. Bruno foi brutalmente assassinado no Vale do Javari, no Amazonas, território com o maior registro de povos em isolamento voluntário do mundo, em junho de 2022, junto ao jornalista britânico Dom Phillips.

Em março, o desfecho do processo que trata das mortes de Bruno e Dom foi atrasado por falta de internet para realizar audiências nas penitenciárias onde estão réus. Em janeiro, já havia ocorrido atraso por falta de salas para depoimentos.

“Cada adiamento é uma dor. As pessoas ali [no Javari] continuam ameaçadas”, destaca.

Como a senhora começou a trabalhar na pauta de indígenas isolados e de recente contato? Trabalho no Vale do Javari desde 2004. A partir de 2020, eu e outros colegas fundamos o OPI, que monitorou políticas públicas no desmonte do governo passado. Fundamos essa organização para forçar certas ações, para que a política não fosse completamente destruída.

Segundo dados do OPI e da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), há 114 registros de isolados no país, 28 confirmados e 86 em pesquisa… Esses números continuam sendo os oficiais. No governo passado, além do desmonte, teve um certo apagão de dados. Estamos na fase de entender a situação de cada registro de isolados, inclusive os que estão fora de terras protegidas. A CGiirc, da Funai, está fazendo esse levantamento.

Quais são as principais vulnerabilidades dos isolados? A condição física das bases de proteção é precária. Há problema seríssimo de recursos humanos, várias com colaboradores temporários. Isso impacta diretamente na vulnerabilidade dos isolados, que dependem muito da Funai.

Entre os yanomamis, há povos isolados e parte deles de recente contato. Aquela situação é fruto do sucateamento. Assumimos esse departamento no MPI preocupados com o órgão indigenista. Sem condição nas bases, é impossível ação efetiva de proteção aos direitos desses povos.

Há pessoas, por desconhecimento, que associam a crise dos yanomamis à passividade. Como avalia o desconhecimento sobre a cultura dos indígenas e, em especial, dos isolados? Qualquer atribuição, numa crise humanitária, às características dos yanomamis é racista. Não se pode atribuir essa condição à livre escolha.

Quando expressam uma recusa ao contato, não necessariamente verbal, a gente entende que é uma escolha. Não com um líder e microfone, mas é uma expressão política. Precisa ser respeitada como tal.

Atribuir a condição à característica do povo chega a ser perverso. O que os faz vulneráveis é a ocupação violenta do território, que é deles ancestralmente. Estão lá muito antes de o Brasil existir. Temos de combater as invasões para que possam viver da maneira que eles entendem ser a melhor.

A política do não contato, em que pese o governo Bolsonaro, é considerada de vanguarda no mundo. O que precisa avançar nesse campo? A forma de contratação dos que atuam com isolados? A Funai já fez contratações específicas e cursos de formação de indigenismo. Em 2010, quando o Bruno Pereira entrou, eram preparados.

Cada terra indígena, cada povo tem suas características. Há vários universos na política de isolados. Precisamos melhorar as condições trabalhistas dos funcionários, muitas vezes expostos a perigos. A Funai não tem plano de carreira e uma série de benefícios que outros servidores públicos têm.

Contratar indígenas para as frentes de proteção a isolados é uma alternativa? A formação de quadros locais passa pelos indígenas interessados em trabalhar com a pauta e a Funai. O MPI entra nesse contexto. Quem vai construir essas políticas ou reconstruir são indígenas. O MPI vai trabalhar muito para cumprir aquilo que se espera dele.

A senhora citou contratos temporários. Se refere aos criados por decisão do STF durante a pandemia para barreira sanitária e que funcionam como reforço na proteção dos territórios? Exatamente. Precisamos de quadros permanentes e estáveis. Os contratos temporários do contexto da ADPF [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709, de 2020] terminam quando terminar a situação de emergência da pandemia.

Como lidar com as necessidades urgentes dos territórios diante do orçamento atual? O crédito extraordinário [concedido pelo governo por meio de medida provisória, com R$ 146,7 milhões para o Ministério dos Povos Indígenas] é uma maneira de dar o “start”. Mas não adianta se a questão estrutural não for resolvida.

A gente vai planejar o orçamento do ano que vem, e estamos vendo com a Casa Civil para que isso esteja na pauta de outros ministérios, por exemplo, de Gestão e Inovação. Outra questão são os fundos, o Amazônia, o financiamento do BNDES.

O governo atual e sua base de apoio são compostos por pessoas que atuaram e votaram contra os direitos indígenas. Como é fazer parte do governo e lidar com essa realidade? Temos uma situação infinitamente mais favorável que no governo passado e a gente aceitou esse desafio acreditando nisso: participar da política pública, acreditando que a gente tem espaço.

Claro que há forças contraditórias no próprio governo. Também é um trabalho didático. Tendo indígenas nos fóruns mais centrais, como uma ministra, vão ouvir realidades que normalmente não ouviriam.

Claro que isso não vai fazer todo mundo se convencer que a pauta é fundamental. Por outro lado, no Brasil e no mundo, há um conhecimento cada vez mais claro e científico de que a pauta indígena é prioritária. É um trabalho de articulação, convencimento e, às vezes, de embate —de combate pelo que a gente acredita.

Quando serão retomadas as ações para povos isolados na forma ideal? É uma das coisas que estão sendo discutidas, mas, diria, imediatamente. No monitoramento remoto, você não faz o contato, mas realiza expedições ou usa satélites para entender onde estão andando, se a população cresceu, diminuiu.

Há referência de isolados que precisa ser confirmada para que não ocorram mortes sem que a gente nem saiba. Ao longo da década de 70, populações inteiras foram mortas por impactos de grandes projetos. Não se tem nem notícia de que povos eram.

O que se perdeu com os korubos? Eles foram contatados por uma expedição liderada por Bruno Pereira, no início do governo Bolsonaro, e depois aconteceu tudo o que aconteceu com a política indígena e com Bruno… Exato. Ele foi exonerado do cargo [na CGIIRC, em outubro de 2019] etc. Foram feitas ações, como consequência das ADPFs, para garantir o mínimo, e funcionários da Funai vão lá esporadicamente. Como falei, tem um apagão de dados.

Acabou de ocorrer a assembleia dos povos do Vale do Javari, promovida pela Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari). Ela teve a participação dos korubos de recente contato, então a gente vai ter notícias.

Como foi voltar ao Vale do Javari em fevereiro, pela primeira vez desde o assassinato do Bruno? E qual a sua opinião sobre os adiamentos no julgamento do assassinato dele e de Dom Phillips? Foi importante ir com a ministra Sônia Guajajara [Povos Indígenas] e a presidente da Funai, Joenia Wapichana, para sinalizar que o Estado fará esforços para que aquilo não se repita.

Pessoalmente, foi emocionante. A gente não tinha chorado junto. Toda pessoa que se aproximava era um choro novo. É quando você encontra alguém que, como você, perdeu um ente querido. Esse amor em comum pela mesma pessoa. Foi muito forte.

Em relação às audiências, é lamentável que não tenham ocorrido por falta de internet. É a estrutura mínima. São adiamentos na resolução. É horrível. Poxa, vamos fazer uma audiência que tenha internet funcionando, gente.

O Starlink [sistema de internet por satélite da empresa SpaceX] é um investimento relativamente barato. Pois é. Não consigo nem entender. Não tem internet? Faça presencial. Por que não? É questão de segurança? Faz escolta. Não sei avaliar, falo como família. Cada adiamento é uma dor. As pessoas ali continuam ameaçadas.


RAIO-X

Beatriz Matos, 44

Fez mestrado, doutorado e pós-doutorado em antropologia social com estudos relacionados aos povos indígenas do Vale do Javari. É professora do programa de pós-graduação em antropologia da Universidade Federal do Pará e membro-fundadora da OPI (Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados). Desde fevereiro, é diretora do Departamento de Proteção Territorial e de Povos Isolados e de Recente Contato no Ministério dos Povos Indígenas.

O projeto Planeta em Transe é apoiado pela Open Society Foundatio

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2023/04/indigenas-isolados-vivem-em-risco-sem-fortalecimento-da-funai-diz-beatriz-matos-nova-diretora-da-area.shtml

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