Cercadas pela cidade, aldeias guarani reivindicam ampliação do território em meio à assimilação de costumes do entorno
SÃO PAULO
Em salas de aula improvisadas no galpão de um centro cultural na terra indígena Jaraguá, no noroeste da cidade de São Paulo, adolescentes guarani em seus 13 e 14 anos estão encostados nas paredes de madeirite enquanto olham para seus celulares, passando os dedos sobre o que aparece nas telas.
A cena se repete nas casas ao redor, com jovens sentados nas soleiras das portas e smartphones na mão. São 15h de uma segunda-feira, muitas famílias e amigos estão reunidos em frente às construções de madeira e alvenaria em conversas descontraídas. Em rádios de pilha, o som que toca é forró e sertanejo.
Dali a algumas horas, por volta das 19h, todos os moradores vão se reunir em casas de reza para uma cerimônia diária. Além de rezar, cantar e dançar segundo tradições indígenas, ali eles também discutem questões políticas e culturais que afetam a vida de todos: a construção de uma nova escola, a alimentação das crianças, o direito à terra.
Para a comunidade, não há contradição entre assimilar elementos da vida moderna e manter os rituais guarani. Eles fazem questão de afirmar sua identidade, para que sobreviva às mudanças dentro e fora das aldeias.
Três gerações de descendentes da cacique Jandira, que fundou a aldeia no Jaraguá: Ara Dju, 26, Eunice, 67, e Artur, de um ano – Rubens Cavallari/Folhapress
“Com o crescimento da cidade para cada vez mais perto de nós, com prédios, estabelecimentos comerciais, postos de gasolina, tentam usar isso como justificativa para dizer que nós não somos mais vistos como indígenas”, conta a líder local Ara Dju Arapoty, 26, que recusa esse argumento. “Não deixamos esquecer que aqui é área indígena.”
Ara Dju é descendente direta do casal indígena que fundou uma das aldeias que deu origem ao território. Joaquim Augusto Martim e Jandira Augusto Venâncio —que eram Kuaray e Kerexu em seus nomes guarani— chegaram no sopé do morro por volta de 1966 e ali viveram com seus oito filhos.
Nos últimos 20 anos, a população indígena aumentou seis vezes. Hoje há aproximadamente 780 pessoas vivendo ali, em mais de 350 famílias, segundo a líder.
Os indígenas do Jaraguá sobrevivem com várias formas de renda, seja com empregos formais, venda de artesanato ou visitas turísticas. Dentro do território há uma escola, um posto de saúde, um centro de educação e cultura indígena e um centro de convivência, que juntos empregam dezenas de pessoas.
São enfermeiros, professores, pedagogos, coordenadores e outros profissionais que contam com salários pagos pela prefeitura e pelo governo estadual. Além disso, o próprio bairro que cresceu no entorno das aldeias se beneficia da mão de obra guarani. Oficinais mecânicas e comércios, por exemplo, têm funcionários que vivem na terra indígena.
Os salários, assim como a renda do turismo e do comércio indígena, são importantes pois a comunidade não é autossuficiente. A comida vem principalmente dos supermercados e, em alguns casos, de doações.
A maior parte das aldeias não têm roças suficientes para abastecer as famílias. Apenas aquelas que estão no interior da mata têm hortas que vingaram.
Em alguns casos, inclusive, falta quem cuide das plantações, que demandam trabalho árduo. Quando quem está responsável pela roça consegue um emprego fixo, por exemplo, é difícil encontrar um substituto.
https://arte.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/06/15/terra-indigena-jaragua/?initialWidth=630&childId=infographic-1&parentTitle=Menor%20terra%20ind%C3%ADgena%20do%20pa%C3%ADs%20fica%20em%20S%C3%A3o%20Paulo%20-%2001%2F07%2F2023%20-%20Cotidiano%20-%20Folha&parentUrl=https%3A%2F%2Fwww1.folha.uol.com.br%2Fcotidiano%2F2023%2F07%2Fmenor-terra-indigena-do-pais-fica-em-sao-paulo-e-abriga-de-enfermeiros-a-mecanicos.shtml
Como estão em uma área de preservação ambiental, não é permitido caçar.
MARCO TEMPORAL
Nos últimos meses, um tema recorrente nos debates diários das casas de reza é sobre o marco temporal, aprovada na Câmara dos Deputados e objeto de julgamento no STF (Supremo Tribunal Federal).
Segundo a tese, os povos indígenas só teriam direito a territórios que estivessem ocupando em 5 de outubro de 1988, data em que a Constituição foi promulgada.
Um protesto dos indígenas no fim de maio contra o projeto de lei foi reprimido com bombas de gás lacrimogênio e balas de borracha, após as cinco faixas da rodovia dos Bandeirantes terem sido bloqueadas.
Há sete aldeias espalhadas pela região, mas apenas uma delas está em território que já foi homologado, ou seja, passou pela etapa final de demarcação. Essa porção de terra tem 1,7 hectare, o que dá ao Jaraguá a posição de menor terra indígena do país.
A comunidade defende a demarcação de uma área bem maior que circunda o pico, de 523 hectares. Um estudo antropológico da Funai já descreveu a ocupação tradicional na porção maior do território, inclusive por um indígena que chegou na região mais de uma década antes de Kuaray e Kerexu.
Os guaranis temem que a tese do marco temporal prejudique o reconhecimento dessa área. O Ministério da Justiça chegou a declarar a posse permanente em 2015, embora o documento tenha sido revogado dois anos depois, após a troca do governo de Dilma Rousseff (PT) para o de Michel Temer (MDB). Para encerrar qualquer controvérsia, o Executivo federal precisaria reservar e homologar a demarcação.
“Se fosse aprovada, a tese do marco temporal as comunidades continuariam com bons argumentos para sustentar a validade jurídica da demarcação da TI [terra indígena] Jaraguá, e seus opositores continuariam com argumentos no sentido contrário. O STF precisa declarar de maneira clara a inconstitucionalidade”, diz a advogada Gabriela Pires, assessora jurídica da Comissão Guarani Yvyrupa.
Os adolescentes guaranis estão entre os mais afetados pelo choque entre as aldeias e a cidade que cresce ao seu redor. No ano passado, a comunidade do Jaraguá convocou líderes espirituais de outras terras indígenas para aconselhar jovens que enfrentam depressão e problemas de adaptação.
Os estudantes guaranis muitas vezes têm que ir para escolas fora da terra indígena para completar o ensino básico. Não há vagas nem professores suficientes para todas as crianças e jovens, que só aprendem português a partir dos cinco anos. Há diversos relatos de discriminação contra esses alunos.
Eunice Augusto Martim, 67, que é filha de Kuaray e Kerexu e chegou com eles no Jaraguá quando tinha apenas 9 anos, viu a região se transformar como poucos. Ela pensa que a solução para os conflitos fundiários é simples.
“A gente só quer essa parte aqui onde está a comunidade indígena mesmo, onde tem a mata para preservar”, diz Eunice. “A gente não quer o Brasil todo. Eu mesmo não quero o Ibirapuera. Para quê eu ia querer a avenida Paulista? E se for reivindicar isso tudo, ele é nosso, mas a gente não quer.”
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