Eram 15h30 de 5 de novembro de 2015, quando o Rio Doce começou a morrer. Naquela hora, a barragem do Fundão, em Mariana, se rompeu, levando mais de 62 milhões de metros cúbicos para a bacia hidrográfica. O maior desastre ambiental do País, e o maior do mundo envolvendo uma barragem de rejeitos, é um crime que perdurará por anos. Ambientalistas estimam que daqui a um século ainda se sentirá os efeitos da tragédia. Para a comunidade, os últimos cinco anos foram de luta, resistência, impunidade e injustiça. E é em torno dessa realidade que a fotógrafa Isis Medeiros registrou mais de 8 mil imagens, 71 delas selecionadas para o livro “15:30”, da editora Tona, que será lançado nesta segunda-feira (30).
O livro “15:30” é a forma que fotógrafa encontrou para denunciar questões que a perturbavam desde o rompimento da barragem, controlada pela Samarco Mineração, um empreendimento da brasileira Vale e da anglo-australiana BHP Billiton. “Não foi fácil editar todo esse material. É bem grande e diverso. Vai desde as primeiras reuniões de atingidos pela barragem em Mariana, passando por retratos, visitas a comunidades, plenárias, manifestações, marchas e encontros até as últimas imagens das ruínas de Bento Rodrigues, quatro anos após o crime”, conta Isis Medeiros.
A Tona, nova editora de Belo Horizonte, inicia sua jornada com foco em livros de fotografia contemporâneos. Às 19 horas desta segunda-feira (30), Isis Medeiros vai conduzir uma live, no canal do YouTube da editora, com Ailton Krenak, a fotógrafa e documentarista Nair Benedicto e a ativista Simone Silva, do grupo de atingidas da Bacia do Rio Doce.
Isis Medeiros conta que a cobertura do crime ambiental de Mariana mudou toda sua perspectiva como fotógrafa. “ Qual a melhor forma de contar sobre sofrimento, dor e indignação, através das imagens?” São escolhas complexas, revisitar esse trabalho foi uma tarefa difícil”, questiona ela. Foi por meio do contato com os atingidos pela tragédia que a mineira decidiu se tornar fotojornalista e desenvolver um trabalho de denúncia com relação à atividade da mineração em Minas Gerais. “Estar diante desse crime me fez sentir mais humana. Isso interferiu diretamente no meu fazer fotográfico, na minha abordagem e na aproximação das pessoas.”
Explosão de mina em Mariana (Foto de Isis Medeiros)
O escritor, pensador e líder indígena Ailton Krenak fez o prefácio de “15:30”. Para ele, a virtude do livro é justamente por causa da espera de cinco anos, permitindo dar tempo para o desenrolar da história. Seria esperado que algo fosse feito para reduzir os danos, mas as imagens de Isis são um testemunho de que nada foi feito. “Estou aqui a 300 metros do rio Doce e até hoje eu e milhares de pessoas não podemos utilizar esta água, que para o meio povo é sagrada”, diz Krenak.
A agência Amazônia Real ouviu Ailton Krenak que correlaciona o acidente em Minas com o que de resto continua ocorrendo em outras partes do Brasil. E especificamente do Brasil, porque é aqui que as empresas têm os caminhos desimpedidos. “Eles não fazem isso na Alemanha, eles vêm aqui, porque na periferia do mundo têm coragem de praticar essa violência desigual, que é o que acaba por caracterizar o racismo ambiental. Pois são corporações que atuam não somente aqui em Minas, mas também na Amazônia, como a Vale, Belo Sun, a Norsk, entre outras. Tirando não só as riquezas naturais, mas também o direto de populações se manifestarem. Teremos que voltar para o jus esperneandi, o direito romano de espernear. Já que elas (corporações) não têm esse compromisso com as populações e o futuro”, questiona Krenak.
As barragens na Amazônia, sejam para contenção de rejeitos minerais, sejam para represar os rios para geração de energia nas hidrelétricas como Belo Monte, são uma grande ameaça para as populações tradicionais na Amazônia, segundo Krenak, e que os povos da floresta têm que ficar atentos e lutar contra esse plano em defesa de seus territórios. “Veja o caso dos Xikrins, ouvi relatos que estão descendo pelo Rio Cateté, dejetos de mineração, uma contaminação muito grande”, alerta Krenak. Para o líder indígena, os garimpeiros que atuam na Amazônia não tão são diferentes das corporações. Impulsionados pelo discurso do atual desgoverno de Bolsonaro, perpetram várias violações de direitos, cometendo, não só crimes ambientais, mas danos na natureza e comprometendo a vida dos animais e dos seres que habitam as florestas. E ele vê essa situação com um projeto do governo federal para com a Amazônia.
Ailton Krenak e os rejeito de minério no rio Watu (Foto: Ruy Teixeira)
O crime ambiental cometido em Minas é uma ameaça permanente para várias comunidades da Amazônia. Só no estado do Pará, há 21 barragens abandonadas e em situação de risco de rompimento, que foram relacionadas em um relatório da Agência Nacional de Mineração. Dentre elas, duas barragens da Vale estão entre as dez mais perigosas do Brasil e a empresa, dona da Samarco, tem negligenciado o risco que as estruturas apresentam nos últimos anos, apesar das notificações do Ministério Público Federal.
A Vale é controladora também da barragem da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho. Em 25 de janeiro de 2019, o rompimento da barragem levou à morte de 259 pessoas e o desaparecimento de outras 11. A fotodocumentarista, em conversa com a Amazônia Real por telefone direto do litoral baiano, afirmou que ainda tem planos de lançar um livro sobre Brumadinho, onde fez uma documentação diferente de Mariana, já com mais experiência e outro foco. Em Mariana, foi um estágio que a preparou para uma situação muito pior que foi em Brumadinho.
A fotógrafa ainda tem planos de passar uma temporada viajando pelo Brasil, inclusive pela Amazônia. Ela já chegou a documentar a população ribeirinha em Iranduba, próximo de Manaus. Isis vê muito a documentação da Amazônia com foco no desmatamento e queimadas, mas sem a abordagem das narrativas que mostrem como essas populações são afetadas. Ela também faz documentação de mulheres indígenas, cobrindo a marcha das mulheres indígenas e o Acampamentos Terra Livre nos últimos anos Brasília.
A fotografia e as barragens
Rastros da tragédia de Mariana (Foto de Isis Medeiros)
No campo da fotografia, já há trabalhos consistentes na documentação dos atingidos por barragens e nos efeitos do impacto ambiental e sobre as populações. Alguns nomes se destacam, como Lalo de Almeida, pela Folha de São Paulo; Cícero Pedrosa Neto, pela Amazônia Real; do canadense Aaron Vincent Elkaim, bolsista da Alexia Foundation; outro canadense o cineasta Todd Southgate, com seus documentários; o fotojornalista Lilo Clareto em parceria com Eliane Brum para El País; o da amazonense Juliana Pesqueira, em Teles Pires pela Proteja Amazônia; o da mineira-paraense Paula Sampaio com seu trabalho autoral sobre o impacto das repressas das usinas hidrelétricas; o da mineira Marilene Ribeiro, recentemente contemplada com o Prêmio Descubrimientos do PhotoEspaña 2020, com seu ensaio “Água Morta”, sobre Belo Monte. Além dos importantes trabalhos de Edgar Kanaykõ do povo Xakriabá, também em Minas e do coletivo Mídia Índia.
Há uma nova geração de fotógrafas mineiras que abordam o tema da mineração e dos crimes ambientais, com destaque para o trabalho “Veias Coloniais”, de Julia Pontés. Ísis Medeiros se insere nessa galeria de novos olhares fotográficos.
Escolas também atingidas pelo rompimento (Foto de Isis Medeiros)
A imagem que abre este artigo é de autoria de Isis Medeiros e mostra o leito do rio Doce, atingido pelo rompimento da barragem de rejeito de minérios da Samarco.
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