No depoimentos à Justiça Federal, Amarildo da Costa Oliveira (“Pelado”), acompanhado do irmão Oseney e Jefferson da Silva Lima, alegou que atirou contra o indigenista e o jornalista por legítima defesa, tese confrontada pela denúncia, que apontou para um crime de emboscado e mando. Na fotografia Amarildo sorrir em depoimento ao juiz Fabiano Verli (Foto: Reprodução/ Rede Amazônica).


Belém (PA) – Os réus pelos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips falaram pela primeira vez à Justiça Federal e deverão ser encaminhados a um júri popular. Amarildo da Costa Oliveira, mais conhecido como “Pelado” e Jefferson da Silva Lima, “Pelado da Dinha”, alegaram que cometeram o crime por legítima defesa. Nesta nova versão, contudo, disseram que o indigenista brasileiro foi o primeiro a atirar na direção deles, e que apenas reagiram ao ataque que resultou na morte também do jornalista inglês. Com o fim das audiências de instrução, nesta segunda-feira (8), está correndo o prazo de dois dias para que acusação e defesa enviem as alegações finais por escrito para o juiz Fabiano Verli.

“Devem ir a júri popular Amarildo, que confessou inclusive que atirou, e o irmão dele que também estava na lancha. Enquanto o outro, pode-se recorrer dele pela impronúncia, ou despronúncia, caso o juiz assim proceda”, afirmou um dos advogados da defesa, Américo Leal, que em entrevista à Amazônia Real confundiu Jefferson da Silva Lima com Oseney da Costa Oliveira. Na audiência de instrução, na qual defenderam ter agido em legítima defesa, “Pelado” e Jefferson inocentaram Oseney da participação do crime.

Os esperados depoimentos dos três ocorreram na segunda-feira, após quatro adiamentos, sobretudo por questões de deficiência tecnológica, que fizeram com que esse processo se arrastasse por meses. A audiência de instrução ocorreu na sede da Justiça Federal em Tabatinga (AM). “Pelado”, preso em Catanduvas (PR), Jefferson e Oseney, cumprindo prisão em Campo Grande (MS), falaram por videoconferência.

“Nunca passou pela minha cabeça vontade de matar ninguém. Jamais passou isso. Hoje eu me arrependo”, disse “Pelado”, que já tinha admitido culpa à Polícia Federal. No depoimento que durou cerca de 1h30, o pescador afirmou que já havia sido ameaçado pelo indigenista em duas ocasiões anteriores ao dia 5 de junho, quando houve a emboscada contra Bruno e Dom. “Nós ia pescar, mas quando cheguemos quase perto dele, ele diminuiu a força do motor, se ‘alevantou’ e sacou a pistola e ‘arrochou’ de tiro para cima de nós.” Essa declaração confirma a investigação da Amazônia Real de que o réu era a peça-chave do crime. Na verdade, “Pelado” pela estava tentando invadir novamente à Terra Indígena Vale do Javari para pescar ilegalmente e foi interceptado por Bruno Pereira.

Essa versão de legítima defesa também contradiz a denúncia, de 21 de julho de 2022, que o Ministério Público Federal (MPF) apresentou contra os réus na Justiça Federal. Na denúncia, que se baseou nas confissões dos réus feitas à Polícia Federal, “Pelado” afirmava que Bruno tinha provocado ele, ameaçando com frases como “tira a foto dele” e “esse é o bote do invasor”, que no dia do crime fez um convite a Jefferson “(lá vai o cara, bora matar ele?”) e que após alcançarem a balieira (embarcação) do indigenista e do jornalista Jefferson “desferiu um disparo de sua espingarda calibre .16 atingindo as costas de Bruno”.

“Disparei para me defender”

  • Momento da prisão de Jefferson da Silva Lima, o “Pelado da Dinha” (Foto: José Medeiros/Agência Pública)
  • Amarildo da Costa de Oliveira, 41 anos, e conhecido como “Pelado” (Foto: Reprodução TV Globo)
  • Oseney da Costa de Oliveira, o “Dos Santos”, irmão de “Pelado” e um dos acusados pelas mortes de Bruno e Dom (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

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O segundo a depor foi Jefferson da Silva Lima, que atribuiu o assassinato a desavenças anteriores entre “Pelado” e Bruno. E que os disparos contra o indigenista, no dia do crime, ocorreram como legítima defesa. “Eu peguei a arma que já estava ali na embarcação, que é usada na embarcação em que nós pescamos, e disparei ali para me defender, para ver se ele parava de atirar em nós. E nisso de disparo acabou acertando ele”, disse.

Esse depoimento à Justiça Federal também contradiz o que ele havia falado às autoridades policiais, e anotado na denúncia do MPF, reforçando a hipótese de legítima defesa: “Bruno, em nenhum momento, olha para trás durante a aproximação, que já próximo ‘ao varador do lago preto’, houve o primeiro disparo que atingiu o jornalista Dominic pelas costas, que em seguida o inquirido (Jefferson) também dispar e Bruno foi atingido”.

Em seu depoimento, Oseney afirmou ter encontrado Amarildo e Jefferson a meio caminho de um lago onde ele costumava pescar. Ele teria ido de carona na embarcação de um terceiro não identificado, quando avistou ambos e pensou que eles estavam à deriva no rio Itacoaí, onde Bruno e Dom morreram. Foi neste momento que Oseney soube dos assassinatos. Ele alegou ter voltado para casa, na comunidade ribeirinha São Gabriel – próxima do local dos assassinatos – e pedido um calmante para a esposa. 

Os três réus são acusados de duplo-homicídio qualificado, ocultação de cadáver e associação criminosa para pesca ilegal dentro da Terra Indígena (TI) Vale do Javari, no Amazonas, na tríplice fronteira do Brasil com o Peru e a Colômbia. Caso o juiz Fabiano Verli entenda que as provas contra Oseney, o irmão de “Pelado”, sejam insuficientes, ele pode absolvê-lo “sumariamente”, explica o advogado Américo Leal.

A tese da legítima defesa, nova estratégia da defesa dos réus, faz parte de uma tentativa de atenuar a pena, já que houve a confissão dos crimes. No caso de irem a júri popular, essa tese pode sensibilizar alguns jurados. A Amazônia Real aguarda manifestação do MPF após a audiência de segunda-feira, que deveria ter iniciado às 8 horas, horário local de Tabatinga, e começou apenas às 14 horas. Dessa vez, a defesa dos réus alegou problemas no monitoramento das unidades prisionais onde se encontram os três acusados. Doze pessoas, entre testemunhas e acusados, foram ouvidas nas audiências de instrução do caso, as quais tiveram início no fim de março.

Associação criminosa

  • Comunidade São Rafael, Atalaia do Norte, na região do Vale do Javari, Amazonas (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
  • Colômbia_Vale do JavariRubens Villar Coelho, o “Colômbia” (Foto: Divulgação/Redes sociais)
  • Jânio Freitas de Souza, acusado por associação criminosa (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
  • Manoel Vitor Sabino da Costa, o “Churrasco”, acusado de associação criminosa (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
  • Comunidade São Rafael, última parada de Bruno Pereira e Dom Phillips, antes de sofrerem a emboscada que os vitimou. (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
  • Rio Itacoaí, Vale do Javari, Amazonas. (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
  • Rio Itacoaí, Vale do Javari, Amazonas. (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
  • Indígena da Equipe de Vigilância da Univaja (EVU), no Rio Itacoaí (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
  • Rio Itacoaí no Vale do Javari (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)

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Bruno Pereira e Dom Phillips foram assassinados em 5 de junho de 2022. Apenas dois dias após o crime, a Amazônia Real publicou reportagem,  a partir de testemunhos de indígenas que estiveram com Bruno e Dom poucas horas antes dos crimes. Os dois foram vítimas de uma emboscada, quando estavam nas imediações de Cachoeira, comunidade ribeirinha localizada na divisa da TI Vale do Javari, na divisa com o Peru. Bruno era coordenador da Equipe de Vigilância da União dos Povos do Vale do Javari (Univaja) e há anos – desde o tempo em que era coordenador-geral de Indígenas Isolados da então Fundação Nacional do Índio (Funai) – vinha sendo ameaçado por conta de suas ações para coibir a pesca ilegal nos limites da TI. A atividade ilegal expõe ao risco os indígenas da região, muitos deles isolados ou de recente contato.

Ambos estavam em uma expedição na região quando começaram a sofrer ameaças de pescadores ilegais, entre eles “Pelado”. Em uma das ocasiões, na manhã do sábado que antecedeu o dia dos assassinatos, “Pelado” chegou a levantar armas em direção a Bruno e Dom, que estavam acompanhados de indígenas da Equipe de Vigilância da Univaja (EVU). Eles se dirigiam justamente à base da Funai, na TI Vale do Javari, para denunciar a presença dos invasores. 

No início de 2023, a Polícia Federal acusou formalmente Ruben da Silva Villar, mais conhecido como “Colômbia”, como mandante do crime. “Colômbia”, que está preso após descumprir as medidas cautelares da justiça para responder em liberdade, não faz parte do processo que demandou as audiências de instrução que começaram no dia 20 de março. A confirmação de sua participação nos crimes foi dada pelo delegado da PF, Eduardo Fontes, em coletiva de imprensa realizada no dia 23 de janeiro deste ano, em Manaus. 

No total, 12 pessoas foram denunciadas pelo MPF pelos crimes de homicídio e associação criminosa para a pesca ilegal. Amarildo, Oseney e Jeffereson, pelos assassinatos de Bruno e Dom; por associação criminosa, Otávio da Costa de Oliveira (“Caboco”), Eliclei Costa de Oliveira (o “Sirinha”), Manoel Raimundo Corrêa (o “Deo”), Francisco Lima Correia (o “Chico Tude”), Paulo Ribeiro dos Santos, Amarílio de Freitas Oliveira (filho de “Pelado”) e Jânio Freitas de Souza. Destes, apenas Amarílio e Jânio seguem presos. Os demais, por decisão do juiz Verli, estão em liberdade provisória com imposição de medidas cautelares.

Leia o histórico das investigações aqui.


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Reportagem Noticiosa

 Sobre a matéria

Cícero Pedrosa

 Cícero Pedrosa Neto

Cícero Pedrosa Neto é repórter multimídia e colaborador da agência Amazônia Real desde 2018, atuando em temas relacionados ao meio-ambiente, impactos sociambientais da mineração, populações quilombolas, populações indígenas e conflitos agrários. Em 2019 foi um dos jornalistas premiados com o 41º Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humano na categoria multimídia com a série “Sem Direitos: o rosto da exclusão social no Brasil”, um trabalho colaborativo entre mídias digitais independentes: #Colabora, Ponte Jornalismo e Amazônia Real. Foi bolsista do Rainforest Journalism Fund | Pulitzer Center em 2020. É fotógrafo, documentarista, roteirista, podcaster e mestre em sociologia e antropologia pela Universidade Federal do Pará. (pedrosaneto@amazoniareal.com.br)

Fonte: https://amazoniareal.com.br/bruno-dom-juri-popular-tabatinga/