Por Nicoly Ambrosio

Odorico Xamatari Hayata Yanomami, Edinho Yanomami Yarimina Xamatari e Modesto Yanomami Xamatari Amaroko defenderam suas dissertações de mestrado na Universidade Federal do Amazonas com pesquisas baseadas em ancestralidade, espiritualidade e cultura de seu povoNa foto acima, três estudantes Yanomami no auditório Rio Solimões, na UFAM (Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real – 23/04/2025).


Manaus (AM) – Em um momento marcante para a história da educação indígena no Brasil, Odorico Xamatari Hayata Yanomami, Edinho Yanomami Yarimina Xamatari e Modesto Yanomami Xamatari Amaroko defenderam na tarde do último dia 23) suas dissertações de mestrado e se tornaram os primeiros mestres Yanomami da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

“Demorou, mas foi bom. Eles mostraram nossa arte, nosso histórico antigo”, resumiu xamã e maior líder do povo Yanomami, Davi Kopenawa Yanomami. Ele fez questão de prestigiar esse momento, comparecendo nas bancas de defesa. “Esse é o resultado da minha luta de quase 50 anos. Agora eles cresceram, nasceram outras lideranças que vão continuar nessa direção, outro vai continuar a defender a terra.”

Davi Kopenawa conversa com os mestrandos Odorico Xamatari, Edinho Xamatari e Modesto Amakoro (Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real – 23/04/2025).

Davi Kopenawa não escondia a alegria em ver os Yanomami na universidade pública para discutir sobre a sua própria cultura tradicional. “Isso também é resultado da nossa luta. Resultado da liderança que lutou por eles quando eram pequenos e quando nem tinha nascido ainda. Eles estão seguindo o resultado da nossa luta, nós escolhemos seguir esse nosso caminho. O Yanomami quer seguir seu próprio caminho”, disse à Amazônia Real. E afirmou que continuará lutando para que mais indígenas entrem em espaços acadêmicos, e para que as mulheres também queiram seguir esse caminho. 

Doutor honoris causa pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e Universidade Federal de Roraima (UFRR), Davi Kopenawa serviu como uma referência acadêmica para os trabalhos defendidos pelos agora mestres Yanomami. Os trabalhos não seguem o modelo tradicional de dissertação, mas o método de escrita baseado na oralidade e utilizado pelo xamã e pelo antropólogo Bruce Albert, como no livro A Queda do Céu.

Em busca da ancestralidade

Odorico Xamatari durante a defesa da sua tese (Foto: Juliana Pesqueira/ Amazônia Real/23/04/2025).

Os três mestres Yanomami são originários da região do Médio Rio Negro, município de Santa Isabel do Rio Negro, no Amazonas. Egressos do curso de Licenciatura Indígena – Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável – Yanomami, também oferecido pela Ufam, participaram de aulas realizadas nas próprias comunidades. Hoje, atuam como professores do ensino básico em língua Yanomami no xapono (aldeia-casa tradicional), localizada no Rio Marauiá.

Além de educadores, Odorico, Edinho e Modesto exercem papéis de lideranças políticas no seu território,  promovendo o diálogo entre o saber tradicional Yanomami e os métodos formais da educação escolar. Suas pesquisas de mestrado representam essa intersecção, já que eles abordam temas ligados à ancestralidade, espiritualidade, cultura e preservação do conhecimento do povo Yanomami para as futuras gerações.

Odorico Xamatari Hayata desenvolveu uma autoetnografia sobre o xamanismo (hekura), a partir da sua própria vivência com este conhecimento, refletindo sobre o seu corpo-espírito indígena Yanomami como território de memória e espiritualidade por meio da arte (matohy) que vem da floresta, do rio, do ar, da serra e do lago.

“Eu concluí o mestrado, mas falta mais para completar. A pesquisa não parou, eu sinto que tenho que ajudar o meu povo e por isso me preparei como mestre do povo nesse programa de pós-graduação. Essa pesquisa me levou mais para frente”, disse ele em entrevista à Amazônia Real, logo após a defesa.

Já Edinho Yanomami Yarimina concentrou sua pesquisa na língua Yanomami e sua ferramenta pedagógica na preservação do xapono Pohoroá, onde atua como professor. O pesquisador elaborou um vocabulário de 30 palavras que os ancestrais de seu povo falavam para repassar às próximas gerações Yanomami. “Me significou muito poder ajudar o meu povo Yanomami”, afirmou Edinho.

Modesto Yanomami se dedicou a investigar o papel da música na transmissão de saberes ancestrais. A dissertação analisa como os cantos e sons tradicionais são formas vivas de conhecimento para os Yanomami.

Na foto, Modesto Amakoro (Foto: Juliana Pesqueira/ Amazônia Real/23/04/2025).

“No tempo que foi a minha pesquisa, não foi tão fácil assim para conseguir. Faltou orientador, a universidade não era na comunidade. É muito complicado chegar lá um orientador, e sempre faltava para mim internet para fazer meu trabalho.Tive muita dificuldade para escrever a língua portuguesa também. Nós enfrentamos várias dificuldades, quando chovia grande, ninguém saía. Quando dá tempo de seca, é horrível com o nosso rio. Tudo isso para estudar e concluir a pesquisa. Esse resultado é para mim uma grande honra”, relatou Modesto.

O percurso deles até a pós-graduação foi repleto de desafios, a começar pelas dificuldades de deslocamento, principalmente durante os períodos de seca severa dos rios Marauiá e Negro em 2023. Com o apoio dos professores Caio Souto e Agenor Cavalcanti, que se deslocaram até às comunidades para acompanhar o processo de orientação, e com a liberação de bolsas de estudo, os pesquisadores conseguiram concluir suas dissertações.

Romper com a tradição

Defesa de mestrado dos estudantes Yanomami Odorico Xamatari, Edinho Xamatari e Modesto Amakoro (Foto: Juliana Pesqueira/ Amazônia Real/23/04/2025).

As bancas de defesa, realizadas por meio do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA), foram presididas pelos professores Caio Souto, Agenor Cavalcanti e Marilene Corrêa. Coordenador do PPGSCA, Caio Souto destacou que os discentes são egressos de uma Licenciatura construída na própria comunidade e chegaram à pós-graduação por meio de políticas afirmativas e do esforço coletivo. O programa é interdisciplinar e conta com uma turma indígena em São Gabriel da Cachoeira, composta por 30 alunos de 10 povos diferentes, incluindo o Yanomami. 

“A universidade ainda precisa ampliar essas políticas de acesso e permanência. A proposta de abrir uma segunda turma de mestrado e a primeira de doutorado em São Gabriel da Cachoeira é fundamental para consolidar esse processo, especialmente porque envolve vários povos”, pontuou o coordenador do programa.

Souto afirma que há um edital aberto para uma segunda turma de mestrado e a primeira de doutorado em São Gabriel da Cachoeira, município do Alto Rio Negro, com a participação de diversos povos, entre eles Karapanã e Koripako. “Tem um estudante que é Karapanã, vai ser o primeiro do povo dele a defender mestrado. Tem um que é Koripako também, eu acho que é um dos primeiros, se não for o primeiro”, comentou.

Na foto, professor e coordenador do curso, Caio Souto (Foto: Juliana Pesqueira/ Amazônia Real/23/04/2025).

O professor ressalta que o programa tem apostado em um modelo de formação que respeita e valoriza os modos próprios de produção de conhecimento dos povos indígenas, permitindo que os trabalhos acadêmicos reflitam a oralidade, a cosmologia e as práticas tradicionais.

Apesar da ausência de professores que falem as línguas indígenas, o programa tem buscado parcerias e construções coletivas para garantir que os estudantes possam se expressar dentro de seus próprios referenciais culturais. “A gente não fala Yanomami, mas conseguimos conversar com eles, gravar, transcrever, e construir juntos os textos finais. Foi um trabalho intercultural, que fomos aprendendo a fazer junto com eles”, disse.

As dissertações dos três mestres Yanomami foram construídas a partir da oralidade, com transcrições acompanhadas por glossários extensos de matohy (as artes Yanomami), inventário de músicas, e um dicionário, com vocabulário e explicações. “Foi quase uma lexicografia Yanomami”, destacou o professor Caio Souto.

Para o professor Agenor Cavalcanti, que também acompanha o programa como antropólogo e docente de Filosofia e Ciências Humanas, o momento é uma virada simbólica na história da Ufam. “Além do valor científico e acadêmico, tem um valor representativo muito grande, que é a inclusão dos conhecimentos e dos especialistas indígenas dentro de um programa de pós-graduação. Com bolsas de estudo, enfrentando o desafio que é se locomover desde o seu xapono, no Rio Marauiá, até São Gabriel da Cachoeira e Manaus, é um esforço enorme dos três estudantes”, afirmou.

O professor afirmou que se tratam de trabalhos que rompem com os modelos hegemônicos da academia ocidental e reafirmam o direito dos povos indígenas à produção de conhecimento a partir de suas próprias referências. Para Agenor, isso também faz parte de um movimento de crítica e reconstrução da própria ciência.

“A universidade, historicamente colonizadora, começa a se abrir para uma autocrítica. A ciência se apropriou de saberes indígenas desde a chegada dos primeiros europeus, com a borracha, o cacau, o milho, a batata, tudo isso foi tomado e transformado em avanço tecnológico fora das comunidades que criaram esses conhecimentos”, analisou.

Fonte: https://amazoniareal.com.br/mestres-da-ufam/