Premiado no mundo inteiro, artista ocupa a ciclovia da av. Paulista com painéis coloridos em que mistura pintura com serigrafia

O artista indígena Xadalu na av. Paulista, em São Paulo – Karime Xavier/Folhapress

Teté Ribeiro

Leva um minuto para o cérebro se acostumar a ouvir um indígena com sotaque gaúcho. Xadalu Tupã Jekupé, o artista de 40 anos, passou rapidamente por São Paulo no começo do mês, quando veio inspecionar a abertura da 11a Exposição UGT da Paulista. A mostra ao ar livre é promovida pela União Geral dos Trabalhadores como um presente ao seus membros e, de quebra, à cidade inteira, em sua avenida mais movimentada e icônica. Este ano o tema escolhido foi “Cidades: Meio Ambiente e Direitos Humanos”.

“Bá, guria, tu já viu a exposição?”, ele me pergunta, quando nos encontramos em um café próximo à avenida Paulista, agora com sua ciclovia ocupada por 30 grandes painéis coloridos com muito amarelo, vermelho, preto e imagens que misturam linguagens urbanas, com as dos lambe-lambes, com temáticas tradicionais, como bichos, natureza, sol, lua, divindades. A exposição foi inaugurada no dia 1º de maio, Dia do Trabalho, e fica até o dia 31 deste mês. Ela começa na altura do cruzamento com a rua Augusta e termina na altura da alameda Campinas.

As obras de Xadalu estão expostas do lado esquerdo da avenida, para quem olha no sentido Consolação-Paraíso. No caminho contrário, são as obras da artista paulistana Pri Barbosa que ocupam o mesmo espaço. O melhor jeito de ver os trabalhos dele é caminhando na calçada contrária à do fluxo de trânsito da Paulista, e, de preferência, sem pressa. “Minha arte é gráfica, com temática indígena e uma linguagem voltada ao barroco jesuíta”, explica o artista.

Xadalu me conta que seu nome é, na verdade, um apelido, um nome artístico. O sobrenome, Tupã Jekupé, foi uma escolha consciente, cheia de significados. Tupã se refere ao Deus do trovão e Jekupé remete à sua identidade étnica. Batizado no cartório como Dione Martins da Luz, Xadalu nasceu em uma aldeia guarani no Pampa, um dos seis biomas brasileiros, assim como a Mata Atlântica, o Cerrado, a Amazônia. Ele fica lá na pontinha mais ao sul do nosso mapa, e se estende até um pedaço do Uruguai e da Argentina. A cidade natal do artista é Alegrete, a 500 km de Porto Alegre, bem pertinho da fronteira com a Argentina. “Nasci à beira de um rio chamado Ibirapuã, num lugar que foi palco de diversas guerras e revoluções no período da invasão colonial”, diz.

Sua mãe é gaúcha de origem guarani, sua avó era guarani, seu pai era paraguaio. Mas Xadalu sempre se entendeu indígena. Frequentou a escola pública de sua cidade, depois a de Porto Alegre, e foi alfabetizado em português. “O lugar onde eu nasci era a antiga terra indígena do Araranguá, território guarani. Tem diversas pessoas guarani lá. Esse lugar, principalmente a fronteira oeste, ainda hoje é atacado com os processos de apagamento da cultura indígena”, conta ele.

Xadalu conhece bem a história de sua terra e de seu povo, e conta num tom de voz sempre calmo, falando baixo e sem nenhum conflito em relação a palavras consideradas, hoje, ofensivas, o processo de apagamento que a cultura de sua família, de seu povo, vem sofrendo desde a chegada dos navegadores portugueses e espanhóis.

“A gente sofreu uma catequização muito forte. Houve uma negociação com os jesuítas, na qual eles usaram o nosso povo para catequizar as pessoas, ao mesmo tempo em que mantinham a língua e alguns rituais guaranis. Do outro lado tinham os portugueses, que a todo momento tentavam entrar no nosso território para escravizar os indígenas“, explica.

O território guarani do sul do país foi dominado primeiro pelos espanhóis. Os portugueses só tomaram posse desse pedaço do Brasil após vencer uma guerra sangrenta que durou de 1753 a 1756, a Guerra Guaranítica, ou Guerra dos Sete Povos, um conflito entre indígenas e tropas portuguesas e espanholas. A origem da guerra foi o Tratado de Madri, de 1750, que entrou em vigor sem nenhum indígena consultado, e que estabeleceu a fronteira entre o território português e o espanhol no sul do nosso continente.

“O que era português acabou sendo espanhol, o que era espanhol virou português. E nessa troca de território começou o processo de apagamento da cultura indígena. Os indígenas, que eram vistos como missionários guaranis, com a entrada dos portugueses passaram a ser vistos como não-pessoas. Isso aconteceu no Brasil todo, mas foi muito forte na região Sul”, diz Xadalu.

Criado por uma mãe solo e sem formação profissional, com duas irmãs mais novas, a família de Xadalu se realocou em Porto Alegre quando ele tinha nove anos de idade. “Nessa mudança para a cidade, que era um sonho da minha mãe, perdi o contato que tinha com o rio, em que a gente pescava nosso alimento, com o milho, que a gente cultivava, e com o fogo, um ritual de todos os dias. Na cidade, o desafio é fazer do nosso corpo nossa própria aldeia.”

A família passou um tempo em situação de rua em Porto Alegre até conseguir se estabelecer na periferia da cidade. Xadalu conta que procurava comida no lixo para alimentar a família, e que sentiu muito o rompimento com a natureza. “Tudo que era normal e tão bonito na nossa vida deixou de existir. E naquela época, os anos 1990, era tudo mais difícil, mais perigoso, mas eu não sabia disso. Sentia saudades de ver outros indígenas, de ter o rio por perto, mas meu pensamento era de criança, não entendia o que estava acontecendo”.

Na cidade, conheceu a arte urbana, de pichadores, grafiteiros, lambe-lambes, e viu, ali, uma possibilidade de mudar o pensamento das outras pessoas. Começou a desenhar a cara de um jovem indígena nos muros da cidade e a assinar o grafite como Índio. Na época, o termo índio não era considerado pejorativo, e era assim que Xadalu se referia a si mesmo. A linguagem, assim como a percepção da causa indígena, são duas coisas que vivem sempre em movimento, com palavras e termos se adequando conforme a história se revela diante de nós.

Os grafites começaram a chamar a atenção, e Xadalu ganhou uma bolsa para um curso de serigrafia em que aprendeu a fazer adesivos. “Contei para um amigo grafiteiro e ele falou assim: ‘Bá, tu podes fazer arte na rua com adesivo’”, lembra. “Então comecei a fazer adesivos com o meu personagem, o indiozinho, e saí colando pela cidade, como que repovoando um território que já foi nosso, mas onde não havia mais nenhum de nós. Foram mais de 100 mil adesivos, e o negócio estourou em Porto Alegre, aí virou notícia”, lembra.

Então, outros indígenas que frequentavam a cidade começaram a procurá-lo, e conforme ele ampliava o espectro de métodos que usava em sua guerrilha artística, aprendendo a usar telas, pinceis e outras técnicas, também tomava conhecimento dos problemas e da história dessas comunidades.

Foram oito anos de arte marginal, sem nenhuma troca de dinheiro, até que um curador e crítico de arte profissional, Paulo Herkenhoff, que estava passando por Porto Alegre, o procurou e pediu para ver o seu trabalho. “Eu não sabia quem ele era e nem tinha ateliê. Morava de favor em um galpão e não tinha nada em casa. Todos os artistas se preparavam para recebê-lo, mas eu não sabia de nada, não tinha nada comigo, respondi que era artista de rua, que ele podia dar uma volta pela cidade e ver minhas coisas”, lembra, rindo da própria inocência.

Esse encontro mudou a vida e a carreira de Xadalu, que começou a mostrar seu trabalho em galerias, a ganhar prêmios internacionais, a participar de exposições coletivas e individuais e a fazer residências artísticas pelo mundo. Já tem até um documentário feito sobre ele e um livro sobre sua obra. Hoje em dia, Xadalu vive dos ganhos de sua arte, mas sempre compartilha tanto o dinheiro, em forma de contribuições para a aldeia de onde saiu, quanto os holofotes, com outros artistas e coletivos indígenas.

“Na minha comunidade, na aldeia onde passo grande parte do meu tempo hoje em dia, eu sou só mais um. Sou um trabalhador da arte. Tem o trabalhador da comida, o agricultor, o que cuida das crianças, todos contribuímos para que nossa cultura siga existindo”, conta. “A arte contemporânea hoje em dia está presente dentro das aldeias, tem uma onda acontecendo, tanto no cinema, quanto na literatura, no teatro, nas artes visuais”, afirma.

Mas não foi sempre assim. O reconhecimento de Xadalu aconteceu de duas maneiras: primeiro, no contato com quem via e se reconhecia no seu trabalho. Depois, no mercado das artes, que o levou para os mercados da Europa, depois para as grandes cidades brasileiras, principalmente São Paulo e Rio.

“Sempre fui mais bem acolhido nas residências que fiz na Europa, assim como no mercado da arte de São Paulo e do Rio do que no Rio Grande do Sul”, diz Xadalu, que, no entanto, não cogita se mudar para uma dessas metrópoles por causa disso. “Meu sonho é construir uma biblioteca no Pampa, eu gosto muito do lugar de onde eu vim, não quero ficar longe de lá, não”. Mesmo que seja mais difícil. “Ser indígena na cidade é uma eterna resistência”, me diz ele, que ainda hoje se refere a si mesmo como um “guerrilheiro visual”.

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2025/05/sou-muito-mais-bem-acolhido-no-rio-e-em-sp-do-que-no-rio-grande-do-sul-onde-nasci-diz-xadalu.shtml