Artigo escrito por Egydio Schwade marcando seus 90 anos, grande parte deles dedicados a causa indígena
50 anos da 1ª Assembleia de Chefes Indígenas, em Diamantino (MS). Foto: Tiago Miotto / Cimi
Por Egydio Schwade, missionário e um dos fundadores do Cimi
Nós não temos rei e nem rainha, mas uma Mãe. A Mãe-Terra que nos quer livres e irmãos, irmãs. E só temos o espaço dela para realizar nossas vidas, exercitando a solidariedade para com as gerações do presente e do futuro. É sob a luz dos oprimidos e oprimidas, necessitados e necessitadas, que a Mãe-Terra nos educa no exercício da compaixão e nos oferece as condições para garantir casa, comida, vestimenta, tudo para o Bem-Viver de todos e todas.
Do Estado Romano herdamos a ‘cidadania’ que nos afasta, (des)envolve da Mãe-Terra: cobre-a de asfalto, cimento, põe muros, cercas, nos impõe o mercado, nos torna concorrentes, se apropria e devasta o bem comum, transforma tudo em cinza (dinheiro). Educa a humanidade para o egoísmo, para o fatalismo, criando necessidades e ilusões que levam ao fracasso… .
“A Mãe-Terra que nos quer livres e irmãos, irmãs. E só temos o espaço dela para realizar nossas vidas”
Não nos enganemos, o modelo que está aí nunca aceitará a democracia, jamais abandonará os ricaços, os agronegociantes, os privilegiados, os banqueiros, os capitalistas… . Olhando para além das nossas fronteiras, para o Ocidente e para o Oriente, para o Norte e para o Sul, onde existe algum Estado que tem um currículo escolar que freia o mercado e a destruição da natureza? É tempo perdido dialogar, fazer acordos, alianças com ricos, com democratas da mentira, do dinheiro, do mercado, com ‘picaretas’ do Congresso. Só aceitam diálogo e acordo que privilegie a sua ganancia e os seus programas necrófilos.
A história do Brasil nos ensina que nestes últimos 525 anos, nenhum governante da terra brasileira, sequer conseguiu reconhecer, qualificar, pedir perdão e reparar o crime genocida que os homens do Estado cometeram contra os povos originários. Ao contrário, continuam “colonizando” os seus últimos refúgios e fomentando a continuidade dos crimes de genocídio.
“Nenhum governante brasileiro sequer conseguiu reconhecer, qualificar, pedir perdão e reparar o crime genocida que o Estado cometeu contra os povos originários”
50 anos da 1ª Assembleia de Chefes Indígenas, em Diamantino (MS). Foto: Tiago Miotto / Cimi
Uma mudança só acontecerá se acionarmos o espírito revolucionário que vive no íntimo de cada ser humano, onde se esconde alguém que impulsiona a justiça e a solidariedade. Este não nos constrange por limites e por problemas. Contenta-se com o menor recanto da gente, mas nunca se rende ao fatalismo. A partir do seu cantinho invisível, promove a revolução do Bem-Viver, iluminando as necessidades dos seus filhos e filhas através dos ‘sinais dos tempos’ e nos organiza em comunidades e povo, de onde nos clareia as ‘visões de um Reino que não tem rei’.
Muitas vezes, ao longo de minha vida e de minha timidez natural, me vi diante de situações que sugeriam me render ao fatalismo. Mas dentro de mim, e isto ocorre no coração de cada pessoa, arde uma ‘sarça’, uma Ciência Congênita, um revolucionário ou revolucionária, a certeza que nos move a mudar estruturas injustas e contribuir para uma humanidade feliz. E temos uma só vida para realizar este sonho e cuja responsabilidade não podemos transferir a ninguém, nem aos pais e nem a autoridade, civil ou religiosa. Nenhuma lei, Carta Magna ou Direito Canônico, nos deve desviar do cultivo desta ‘sarça ardente’. É necessário, sim, buscar pessoas e entidades, dispostas a se aliarem para superar os entraves e se preciso for criar ‘odres novos’, onde caiba o ‘vinho novo’ que inquieta os corações diante das mudanças estruturais necessárias.
“Muitas vezes, ao longo de minha vida e de minha timidez natural, me vi diante de situações que sugeriam me render ao fatalismo”
Ninguém jamais se arrependerá de ter seguido a orientação desta Ciência Congênita, desta ‘sarça ardente’ inscrita em seu coração. Quando jovem um superior religioso, sem auscultar a ‘sarça ardente’ oculta que me trouxera até ali, tentou me desviar para o serviço aos ricos, desviando-me da trilha iluminada pelos ‘caídos na beira da estrada’. Foi necessário superar a ‘infalibilidade’ posta pela modelo dos ricos e seguir a luz dos necessitados. Assim, ainda estudante, cheguei aos povos indígenas, considerados uma ‘causa perdida’. De fato, o colonialismo e capitalismo os haviam reduzido de milhões a menos de 100 mil.
Fui ao Mato Grosso, município de Diamantino. Ali fui inserido no sistema dos internatos das missões religiosas que doutrinavam os/as indígenas rumo à “integração nacional”. Um destino fatalista que leva os povos à “desintegração”. A integração era feita em dois passos:
1) No internato de Utiariti, fora das aldeias indígenas;
2) Em Diamantino, para onde se levavam os alunos que se distinguiam em Utiariti, para se integrarem com colegas da sociedade nacional, aproximando-os do modelo invasor, acabando por se ‘integrarem’ como páreas na cidade.
“Ainda estudante, cheguei aos povos indígenas, considerados uma ‘causa perdida’. O colonialismo e capitalismo os haviam reduzido de milhões a menos de 100 mil”
50 anos da 1ª Assembleia de Chefes Indígenas, em Diamantino (MS). Foto: Tiago Miotto / Cimi
E avaliando com colegas o processo ‘integracionista’, sentimos a necessidade de mudar este rumo fatalista imposto pelos Estados: Acabar com os internatos e se encarnar na vida das aldeias para sentir e viver o que este povo sentia e sofria. Conhece-lo e procurar viver os valores que o sustentam. Assim integrar-se lentamente na realidade indígena das aldeias, vivenciar seus valores e sentir o que é ver sua terra, cultura e autonomia roubadas, e seu futuro destruído.
Fui acompanhando o rumo que alguns dos alunos de nosso Ginásio de Diamantino seguiram: indígenas e não-indígenas. Alguns se engajaram na luta por Justiça. O Gilmar Mendes, por exemplo, filho de fazendeiro, tomou o caminho da justiça remunerada pelo Estado e é hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal. Mas promove a justiça para os que dela de fato necessitam? Por sua vez vários de seus colegas entre eles Daniel Matenho Kabixi, voltaram para suas aldeias de onde também se dedicaram à luta por justiça. Daniel lutou por justiça para os povos indígenas país afora, na organização de assembleias. Pelo seu empenho, não recebeu dinheiro, mas o resultado da sua luta foi o engrandecimento dos povos originários, reconhecido por convites para participar de eventos mundiais, como em 1979 do encontro da Conferência Episcopal Latino-Americana (CELAM) que se realizou em Puebla, no México.
“E avaliando com colegas o processo ‘integracionista’, sentimos a necessidade de mudar este rumo fatalista imposto pelos Estados”
Em 1980, quando surgiu o Partido dos Trabalhadores (PT), Doroti, minha esposa e eu, aderimos com toda a força a este instrumento político novo, com a convicção de que chegou o momento de mudar o rumo das estruturas políticas do país. E, sem abandonar o engajamento no sonho indigenista, nos dedicamos com força ao PT, vendo chegar o dia em que o Estado se voltaria aos povos indígenas, fazendo com que deixassem de ser roubados e humilhados, e vendo ser realizada a tão sonhada Reforma Agrária para os pobres sem-terra.
Morávamos então no bairro Iraci em Itacoatiara (AM). E em frente a nossa casa, ali onde hoje está a rodoviária, era área desocupada. Nas enchentes do Amazonas, fervilhava de ‘flagelados’ vindos do interior. Uma situação muito triste à nossa vista! Não era isto que acontecia quando Itacoatiara estava sob o ‘regime comunista’ dos povos indígenas. A terra, tanto a várzea como a terra firme, não possuíam ‘proprietários’. Era posse comunitária que servia ao Bem-Viver de toda a população. As aldeias atingidas pelas cheias traziam consigo os produtos que podiam, e ali, na terra alta, em Itacoatiara, a comunidade estava prevenida com roças abundantes. Ninguém passava fome. Ao invés de ser refúgio de ‘flagelados’ nas cheias periódicas do rio Amazonas, Itacoatiara se transformava em um encontro de parentes e amigos. Virava uma festa.
“A terra, tanto a várzea como a terra firme, não possuíam ‘proprietários’. Era posse comunitária que servia ao Bem-Viver de toda a população”
50 anos da 1ª Assembleia de Chefes Indígenas, em Diamantino (MS). Foto: Tiago Miotto / Cimi
E sonhávamos: por que o povo não pode hoje vivenciar algo semelhante? Ao participar em 2003 da elaboração do orçamento 2004-2007 do governo do PT em Manaus, propus uma Reforma Agrária que tomasse em conta estas duas realidades do Amazonas: a terra firme e a várzea. Os modelos que propúnhamos para as duas realidades, os povos indígenas já vivenciaram, com sucesso, durante milhares de anos e ainda hoje estão vivos praticados na alegria, na abundancia e na segurança, lá onde o povo ainda mantem a posse e a autonomia sobre a terra. Foi este modelo que sugeríamos que o Incra adote nos assentamentos, uma Reforma Agraria que contemple as realidades da terra firme e da várzea.
Mas apesar da espera por mudanças via PT, em favor das populações marginalizadas e do bem-estar da Mãe-Terra, a história dos cinco mandatos do Partido, também expôs limitações insuperáveis da entidade como instrumento transformador das estruturas injustas. Apareceram as tendências. E as hegemônicas empurrando para os ricos, expulsando as que puxavam para os necessitados. E o PT foi perdendo o seu carisma e objetivo original. virando uma estrutura integrada no ‘status’ que está aí.
“E sonhávamos: por que o povo não pode hoje vivenciar algo semelhante?”
Quando criança, nos anos 40, via diariamente passar em frente da casa, no Vale do Rio Caí (RS), dezenas de caminhões, carregando tábuas, fruto da destruição dos lindos ‘cabelos’ de araucária da Mãe-Terra da Serra Gaúcha. Uma floresta de alimentos que controlava o regime fluvial. Mais tarde nos anos 60, tive o privilegio de contemplar durante vários anos a vastidão do Chapadão dos Parecis em sua situação original: vegetação, frutas variadas, fauna e microfauna, com seus enormes sauveiros e milhares de cupinseiros. Tudo intato.
Por volta de 1970, Robert Goodland, do Banco Mundial (BM) me procurou no secretariado do Cimi, preocupado com a destruição da floresta amazônica, acontecendo em consequência da rede rodoviária Transamazônica financiada pelo BM. E dava razão a nossa crítica contra esta obra. Agora estava ali com nova proposta do BM. Desviar os financiamentos do BM para o bioma Cerrado. E o governo criou o Polo Noroeste. Resultado: o agronegócio pôs abaixo o lindo bioma do Cerrado. Matou a vegetação com suas gostosas fruteiras: jabuticabeiras, cajueirinhos, mangabeiras…, a fauna: onças, lobos, veados, emas seriemas e dezenas de espécies de abelhas melíferas. Envenenaram os sauveiros que controlavam com seus veios as águas, fazendo-as escoar lentamente, rumo ao mar, em qualquer período do ano. As máquinas compactaram o solo, tornando-o impermeável. E cá estamos hoje com o sistema fluvial todo alterado: ora os rios secando, ora devastando, invadindo cidades e destruindo roçados. Tudo por conta de uma falsa ‘economia’ que Aristóteles 600 anos antes de Cristo já qualificava de ‘crematistica’, porque ‘queima’ os bens limitados da humanidade e os transforma em cinza(dinheiro), em prejuízo da vida e do direito das gerações vindouras.
“O agronegócio pôs abaixo o lindo bioma do Cerrado. Matou a vegetação com suas gostosas fruteiras, a fauna”
Egydio Schwade durante o Congresso de 50 anos do Cimi, na mesa de diálogo sobre Memória. Foto: Maiara Dourado / Cimi
O momento que vivemos e que presenciamos por todo o mundo, do Irã-Gaza-Ucrania-Espanha-Rio Grande do Sul-Califórnia à Amazonia, sugere a urgência nacional e mundial de construirmos um novo paradigma de convivência humana. Os crimes das potências conduzem ao fatalismo. O que se ensina e o que se aprende no sistema escolar vigente, objetiva o mercado, o dinheiro, o afastamento (des)envolvimento da Mãe-Terra, mantendo a humanidade à base de ilusões, fomentando a ânsia de poder, de ter mais, neutralizando programas sociais e ambientais. Nada de Reforma Agrária, de Fome Zero, de política a favor dos esquecidos: indígenas, quilombolas, agricultores familiares… Dinheiro abundante não falta para os agronegociantes, para os depredadores da Mãe-Terra, para cobrir a terra de cimento, de asfalto… É a cidadania do Estado Romano em ação: Transformar todos em ‘civis cidadãos’, (des)envolvidos da Mãe-Terra, pisando no cimento, no asfalto, perdidos em meio a quadriláteros de todo tipo, dependentes do Estado que programa as pessoas segundo o seu interesse, impedindo a realização de vidas. No Norte se grita: ‘Make America great again!’ e aqui no Brasil ‘Ser a 7ª potência econômica mundial de novo!’. Alguma diferença?
Para superar esta ganância doentia de ter mais e mais, é preciso que a Mãe-Terra volte a ser posse comum, onde todos e todas, sem limites, possam realizar as suas vidas. Precisamos investir numa concorrência às avessas: ser a maior potência solidária do mundo; organizar um currículo de educação que acabe com as mentiras do mercado, do colonialismo e do capitalismo e nos ensine a cultivar a Mãe-Terra de maneira saudável, curando suas veias e entranhas obstruídas e feridas pelo agronegócio, pela cidadania… Juntar-se a pessoas, entidades e povos que vivem ou tentam viver um paradigma de vida, como já o fazem os povos indígenas e os quilombolas, os movimentos sociais, o MST, o MTST, o CIMI, o COMIN, a CPT, a OPAN, as CEBs… Enfim construir um modelo de convivência onde todos e todas possam exercitar a criatividade inscrita nos corações e mentes e que aflora nas trilhas iluminadas pela gente jogada ‘à beira da estrada’, gritando pela transformação dos regimes nefastos. Seguir em frente pela estrada iluminada pelos necessitados, pelas ‘causas perdidas’, na certeza de que com este Espírito ‘transformaremos a face da Terra’.
Casa da Cultura do Urubuí, 07 de julho de 2025.
Fonte: https://cimi.org.br/2025/07/artigo-egydio-schwade-memoria-conclusoes-90-anos/
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