Denominações evangélicas nativas unem e protegem trabalhadores quíchua que migram para as cidades
Juliano Spyer
Antropólogo e historiador, autor de ‘Crentes’ (Record) e ‘Povo de Deus’ (Geração), pesquisa cristianismo, mundo popular, mídias digitais e esportes de combate
Reunião do Conselho de Povos e Organizações Evangélicas Indígenas do Equador (Feine), fundado em 1980 – Feine no Facebook/Feine no Facebook
Etnólogos em geral consideram que, mesmo prestando serviços comunitários, os missionários cristãos acabam por prejudicar povos tradicionais ao introduzir valores externos. Mas, no Equador, é o evangelicalismo —mais do que outras organizações e religiões— que tem protegido a cultura indígena quíchua.
Esse é o tema da reportagem Indigenous Evangelical Churches Grow in Ecuador (Igrejas evangélicas indígenas crescem no Equador), feita pelo jornalista Michael Fox para a rádio pública PRX, de Boston. A apuração concluiu que o crescimento acelerado do protestantismo no país se deve à popularização de “igrejas indígenas”.
O evangelicalismo chegou ao Equador há cerca de um século, quando missionários americanos fundaram os primeiros templos.
Esse esforço permaneceu pouco representativo ao longo do século 20, mas, nos últimos 50 anos, denominações indígenas se espalharam pelas cidades, acompanhando a migração do povo quíchua em busca de trabalho.
Para a antropóloga Susana Andrade, da Universidade Católica de Quito, as comunidades quíchua trocaram a igreja católica pela evangélica porque, segundo ela, “eles podiam adaptar os serviços religiosos para acomodar sua cultura”.
“Essas são igrejas indígenas. Quero dizer, eles oram em quíchua”, contou ao repórter da PRX. “Elas são dirigidas por eles mesmos. Os pastores são quíchua. Não era assim com os católicos.”
O fenômeno no Equador desafia noções simplificadas sobre missionários atuando como colonizadores culturais.
Embora as igrejas evangélicas quíchua proíbam certas celebrações tradicionais das comunidades indígenas —como o Inti Raymi, maior festa do povo inca e hoje incentivada pela Igreja Católica—, elas promovem outras formas de valorização cultural.
Vilma Yunga, diretora de comunicações da Federación de Iglesias Indígenas Evangélicas Residentes en Pichincha (Fierpi), justifica essa posição. “Nós, como cristãos evangélicos, não celebramos [o Inti Raymi] porque sabemos que o único que deve e merece ser adorado é Jesus, pois foi Ele quem veio até nós e nos salvou.”
Por outro lado, Vilma e seus irmãos na fé defendem que suas igrejas celebram a cultura indígena de outras formas. Os cultos são realizados em quíchua, e as músicas são cantadas no estilo e com instrumentos tradicionais. E essas igrejas se tornam pontos de encontro comunitário.
A igreja acaba funcionando como um recipiente que permite a esse povo afirmar sua diferença em relação ao restante da população.
Nelas, os migrantes quíchua integram redes de solidariedade e ajuda mútua. Durante os cultos eles reafirmam sua identidade, mesmo vivendo em centros urbanos.
E, para tornar tudo ainda mais “antropofágico”: há o futebol. Existem dezenas de denominações evangélicas indígenas em Quito e no país. Qual é o “ritual” que reúne essas muitas “tribos”? Um deles é o campeonato de futebol. Acontece em junho e dura o mês inteiro.
Tupi or not tupi, esse é o nosso paradoxo.
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