Iniciativa garante educação trilíngue e gera renda para comunidade indígena venezuelana; seis alfabetizadores foram contratados para ensinar jovens e adultos em situação de vulnerabilidade.
Uma educação formal que acolha suas raízes — língua, cantos, história e saberes — e que promova uma conexão com o futuro, agora construído em um novo território. Essa reivindicação moveu a comunidade indígena Warao na Região Metropolitana de Belém, no Pará. Articulada pelo Conselho Warao Ojiduna (CWO) – uma das primeiras organizações de indígenas em contexto de deslocamento forçado no Brasil –, a mobilização resultou em um plano de educação concreto e deu origem a uma experiência pioneira no país: a inclusão de seis alfabetizadores indígenas Warao no Programa Brasil Alfabetizado.
Elaborado a partir de escutas nas comunidades de Belém e Ananindeua, o documento “Karata Inamina Isia – Premissas para elaboração de um Plano de Educação Indígena Warao”, elaborado pelo CWO, com apoio do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB) e da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), foi crucial para abrir caminho para a contratação de alfabetizadores Warao.
Iniciativa do Ministério da Educação (MEC), o Programa Brasil Alfabetizado é implementado no Pará pela Secretaria de Estado de Educação (Seduc) e oferece educação trilíngue (Warao, espanhol e português) para 90 jovens, adultos e idosos em comunidades de Outeiro, Tapanã e Ananindeua.
De acordo com Wannice Bandeira, gestora do programa no Estado, a ação coloca o Pará em posição de destaque nacional. “É uma iniciativa única no Brasil, que alia inclusão, oportunidade de renda e dignidade”, afirma.
“Estamos finalizando um termo de cooperação com a Uepa, que tem longa trajetória de pesquisa com esses povos, para ser nossa instituição formadora. Nosso objetivo é criar um material próprio de alfabetização, a partir dos encontros com os alfabetizadores para construir e ajustar esses materiais”, informa Wannice.

Desafios na rede regular e um projeto de futuro
Um levantamento do CWO com base em dados de secretarias municipais de novembro de 2024, apontou que cerca de 180 crianças e jovens, além de 90 adultos Warao, estão matriculados nas redes de Belém, Ananindeua e Benevides. No entanto, a barreira linguística e cultural segue como obstáculo. “Apesar de termos direito, não temos acesso a uma educação diferenciada, que valorize nossa cultura”, diz Josefina Jimenez, integrante do CWO e uma das alfabetizadoras Warao selecionadas pela Seduc.
Para ela, a iniciativa atual é um passo fundamental em um projeto maior. “Queremos que os jovens de hoje possam chegar à universidade e, no futuro, apoiar outros irmãos Warao. E sempre ensinando nossa cultura e costumes, porque por nada no mundo deixaremos nossa cultura”, declara Josefina.

Trajetória de luta e organização comunitária
A chegada dos Warao a Belém começou em 2017, impulsionada pela crise econômica na Venezuela. Desde então, lideranças e parceiros pressionam o poder público por direitos básicos. No campo da educação, em 2018, foi realizado o projeto Kuarika Naruki, por meio de uma parceria entre lideranças Warao, a Secretaria Municipal de Educação e Cultura (Semec), as secretarias estaduais de Educação (Seduc) e de Assistência Social, Trabalho, Emprego e Renda (Seaster) e a Universidade do Estado do Pará (Uepa). Apesar de não ter sido implementado, o projeto trouxe uma série de elementos importantes para o campo da educação Warao.
A partir de 2021, lideranças Warao intensificaram ações de fortalecimento comunitário, resultando na criação do Conselho Warao Ojiduna, em 2022, movimento impulsionado pelo projeto “Povos das Águas: Waraotuma Kokotuka Saba”, implementado pelo IEB, com o apoio do ACNUR e demais parceiros. Em junho de 2024, o Conselho lançou o Obonoya Kotai Saba (Plano de Ação do CWO), do qual o Protocolo de Saúde Warao (Karata Warao aribu eku abakitane nobara omi jakitane) e o Plano de Educação são alguns dos desdobramentos.
Uma das principais reivindicações do Plano de Educação Warao é a criação de uma escola indígena específica, que inclua transporte escolar e uma merenda diferenciada. Para assegurar que a alimentação respeite os costumes tradicionais, o plano prevê a contratação de cozinheiras Warao, garantindo assim uma nutrição culturalmente apropriada e o fortalecimento das práticas alimentares do povo.
Além da estrutura, os Warao defendem que o currículo escolar incorpore saberes tradicionais em todas as dimensões do conhecimento. Essa abordagem integrada deve perpassar por: história Warao (ka nobo tuma a reje); cantos e bailes ancestrais (ka nobo tuma a jó a rokoto isiko); ciências da natureza (ka nobo tuma aubonojobo kanisinobo tuma isisko); técnicas de artesanato (anunamo naminakitane nonatuma); e educação física tradicional (nakajara, tejere, entre outras práticas).
Para a antropóloga e analista socioambiental do IEB, Clémentine Maréchal, a iniciativa, ainda que pioneira, é vista como uma etapa em um plano maior. “Este é um primeiro passo fundamental rumo à educação diferenciada para o povo Warao. A contratação de alfabetizadores Warao para atuar em suas próprias comunidades, usando seus idiomas (warao, espanhol e português) e seus métodos, é um grande avanço”, avalia.
“No entanto, é uma ação pontual, que precisa se consolidar em uma política pública permanente. Esta iniciativa abre precedente para os Warao pleitearem a contratação formal de professores pelo governo. Além disso, a iniciativa proporciona aos alfabetizadores warao uma oportunidade para desenvolver metodologias próprias de ensino e assim desenhar de forma mais estruturada uma proposta de educação diferenciada Warao, acumulando experiência para seguir lutando pelas demandas estruturantes que eles apresentam no seu Plano de Ação, como a criação de uma Escola Indígena Warao, por exemplo”, enfatiza Clémentine.
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