A mostra reúne obras de artistas indígenas do coletivo Waçá-wara e estará em exposição até julho de 2026
Texto: Marcelo Domingues
Exposição Waçá-wara (Foto: Moisés Sedo)
A exposição dos artistas indígenas do coletivo Waçá-wara inaugura a nova sala de exposições temporárias do Museu Kuahí dos Povos Indígenas do Oiapoque, trazendo uma proposta expográfica que busca o diálogo entre a arte tradicional e a contemporânea. “A inauguração do Museu Kuahí, é uma oportunidade de mostrar o que nós aqui no município de Oiapoque estamos produzindo”, celebra Davi Marworno, artista do povo Galibi-Marworno.
Criado em 2007, o Museu Kuahí tem desempenhado um papel pioneiro no Brasil ao promover iniciativas voltadas à valorização da história e da memória dos povos indígenas do Oiapoque. Para Milton Nunes, artista do povo Galibi-Marworno, o museu é um compromisso com os artistas indígenas. “O Kuahí garante visibilidade e compromisso com os artistas indígenas. É um espaço onde as obras ganham vida, além de inspirar as novas gerações indígenas que vivem na cidade. Essas crianças e jovens reconhecem, nas obras, elementos de seu universo ancestral, interagindo com ele e reafirmando sua identidade cultural”, afirma Milton.
Reinaugurado em julho deste ano, o Museu Kuahí retoma suas atividades como um espaço de fortalecimento da pesquisa indígena, apoiando investigações realizadas nas aldeias que resultaram na construção do acervo, no desenvolvimento de exposições e na elaboração de diversas publicações.
A mostra reafirma o protagonismo dos artistas indígenas contemporâneos e a potência das artes visuais como forma de expressão política, cultural e ancestral. Como destaca Noel Henrique, do povo Galibi-Marworno: “A gente está vendo de volta as nossas memórias, as pesquisas que foram feitas por pessoas que não estão mais aqui, de artistas, de lideranças que não estão mais entre nós, mas a memória hoje está no Museu Kuahí”.
A exposição Waçá-wara, cujo título se refere ao coletivo de artistas indígenas do Oiapoque, foi organizada com curadoria do próprio coletivo. A mostra apresenta a produção de arte indígena contemporânea desenvolvida nos últimos quatro anos nas Terras Indígenas do município, reunindo obras de Keyla Palikur, do povo Palikur-Arukwayene, Yermollay Caripoune, Dieimisson Sfair e Tairene Aniká, do povo Karipuna, Milton Nunes e Noel Henrique, do povo Galibi-Marworno e o Coletivo Manulí, do povo Galibi Kali’na. O principal objetivo da mostra é valorizar os saberes e práticas culturais indígenas da região por meio da pesquisa e criação artística.

Narrativas artísticas
Os trabalhos de Milton Nunes, morador da aldeia Kumarumã, têm como referência a tradição materna e os artesãos de sua comunidade. Suas obras retratam seres cosmológicos, animais, artefatos e rituais que expressam não somente a estética mas reafirmam uma crítica social e resistência cultural do povo Galibi-Marworno. “As artes produzidas hoje não têm apenas o objetivo de mostrar a beleza das peças, mas de expressar críticas aos dias atuais e preservar a memória dos nossos antepassados”, afirma Milton, que apresenta cinco desenhos figurativos em preto e branco, feitos com tinta nanquim sobre papel, além de dez cuias esculpidas. Segundo o artista, “a cuia faz parte da cultura do povo Galibi-Marworno. Ela começou a perder espaço para os utensílios que vêm de fora da aldeia, como pratos, colheres e tigelas”. As peças misturam elementos figurativos e abstratos, em um diálogo constante entre as artes contemporâneas e tradicionais fortalecendo e preservando memórias e saberes locais.

Keyla Palikur, do povo Palikur-Arukwayene, cresceu na aldeia Kumenê e traz para suas telas a óleo, acrílica e arte digital narrativas sobre a figura feminina, a cobra grande e os grafismos de seu povo. Para a artista, seu trabalho é um processo de transformação: “Minha obra busca reviver nossa memória e promover uma escuta atenta sobre o processo de transformação que envolve ser uma jovem artista indígena”.
Cada povo nas Terras Indígenas do Oiapoque possui grafismos que os identificam, e, no caso do povo Palikur-Arukwayene, esses grafismos refletem a organização social por clãs. “Por mais que a gente se autodenomine povo Palikur-Arukwayene, internamente nos organizamos em subgrupos”, explica Keyla Palikur, do clã Wadahiyene.
As obras da artista podem ser interpretadas como um processo de transformação, onde expressa reflexões e as experiências em transitar entre os mundos indígenas e não indígenas. A ideia de renascer e se libertar de limitações são temas recorrentes em seus trabalhos. “Esse momento é significativo para mim, pois estou desvendando os processos que habitam minha mente por meio das minhas obras”, conclui Keyla.

O coletivo Manulí marca presença, com trabalhos assinados por Sônia Jeanjacque, do povo Galibi Kali’na. O nome do grupo homenageia uma matriarca do povo, reconhecida por seu domínio na produção de cerâmicas e redes de algodão. A produção do grupo é realizada em tecido, com pinturas feitas à mão ou em serigrafia. Na exposição, o coletivo Manulí apresenta quatro desenhos e seis painéis com grafismos do povo Kali´na pintados em madeira. Os grafismos do povo geralmente representam ossos de animais, como o do veado, constituindo uma forma de expressão cultural e espiritual que se manifesta em objetos, vestimentas e pinturas corporais, transmitindo conhecimentos e fortalecendo a identidade cultural do povo Galibi Kali’na.

Na aldeia Santa Izabel, Yermollay Caripoune vive e produz seu trabalho, nomeado pelo artista de “Adaminã”, que é uma técnica que utiliza a escrita, o desenho e a pintura. Descendente de uma família de pajés, seu trabalho mergulha no universo espiritual do povo Karipuna. Suas composições unem grafismos tradicionais em novas combinações visuais, criando sobreposições e descontinuidades que revelam narrativas cosmológicas e transformações da natureza. A presença de mais de um grafismo em seu trabalho e o preenchimento em toda a obra faz com que as figuras se fundem em harmonia, de modo que não se saiba onde o artista começou ou terminou.
Em uma de suas obras da exposição, Yermollay aborda o mito da criação. Cansado de viver isolado, Temerõ’Q cria seu irmão gêmeo Laposiê, que transita entre três mundos na busca de equilíbrio e proteção aos seres da natureza: o mundo de cima, dos espíritos e das almas; o mundo do meio, da realidade presente, e o mundo de baixo, das águas, em que vivem os animais. Segundo a sua narrativa, Laposiê é transformado em uma cobra, a Aramari, uma cobra sobrenatural que, para os Karipuna, é a mãe das águas, responsável por modificar as paisagens da região ao longo do ano.
Nos trabalhos de Yermollay, as transformações da natureza estão interligadas com um repertório cosmológico em que os seres sobrenaturais são portadores fundamentais na construção de significados. Seus traços e motivos geométricos, as cores e os desenhos estilizados, aludem ao sobrenatural, com linhas retas em diálogo com linhas circulares, espelhamento, espirais, tracejados e pontilhismo, compondo a união de diferentes grafismos, ressignificando seus traços em criações de novas marcas que sobrepõem umas às outras, redefinindo os padrões tradicionais, em uma descontinuidade dos sentidos, gerando realidades que se interconectam e se relacionam entre si.

Uma das peças apresentadas na exposição tem como título “Mamãe Solei”, que, segundo os autores, representa a “mãe do Sol”. A obra parte de uma pesquisa realizadas por Tairene Karipuna, Dieimissom Sfair e Noel Henrique, que criaram uma vestimenta de moda tradicional indígena usando materiais sustentáveis compostas por sementes, fibras de buriti e asas de besouro, conectando a moda, a terra e a memória dos povos Karipuna e Galibi-Marworno. “Nosso objetivo é criar design inspirado em nossas histórias, trazendo esses saberes para o mundo de hoje e para as novas gerações que, muitas vezes, não conhecem essa tradição”, destaca Noel Henrique. Para Dieimisson Sfair a relação entre artistas contemporâneos e mestres das artes tradicionais é fundamental “os artistas estão sempre em diálogo com os mais velhos, seja nas oficinas, nos eventos comunitários, nas escolas ou em exposições culturais.”

Concepção curatorial e expográfica
O projeto expográfico foi desenvolvido ao longo de uma série de oficinas realizadas entre 2021 e 2025 com apoio do Instituto Iepé. A primeira etapa envolveu o levantamento das obras de cada integrante do coletivo, visando à construção da narrativa curatorial. Em seguida, foram discutidas a identidade visual, a iluminação e os suportes expositivos.
A concepção dos painéis teve como referência a exposição de Luiz Zerbini, visitada por Davi Marworno no MASP, em 2022, e também na histórica mostra concebida por Lina Bo Bardi, em 1970. A estrutura dos painéis foi adaptada à arquitetura curvilínea da sala expositiva, criando contraste entre os ângulos retos das estruturas e as linhas sinuosas do espaço. A montagem foi iniciada nas laterais da sala, com alternância dos ângulos ao fim de cada painel, criando fluxos que direcionam o público e promovem encontros entre as obras.
As pinturas dos painéis foram realizadas de forma coletiva, integrando grafismos dos quatro povos representados. Os suportes foram fundamentais na valorização das obras. “As estruturas dos painéis para colocar as telas trouxeram visibilidade ao trabalho”, observa Milton Nunes.
Antes da reabertura do museu, a exposição circulou por outros espaços: em 2022, integrou a XIII Assembleia da COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), realizada na Terra Indígena Uaçá, no Oiapoque, e, em 2023, participou do circuito Amazônia das Artes, promovido pelo Sesc, itinerando pelos estados do Maranhão, Tocantins e Mato Grosso.
Exposição: Waçá-wara
Período: Julho de 2025 a julho de 2026
Local: Museu Kuahí dos Povos Indígenas do Oiapoque
Visitação: Segunda a sexta, 9h–17h | Sábados, 9h–16h
Entrada: Gratuita
Esta atividade faz parte do Termo de Fomento estabelecido entre a Secretaria Estadual de Cultura do Amapá (Secult) e o Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena, com o objetivo de fortalecer culturalmente as comunidades, contribuir com as práticas museológicas e inspirar avanços futuros.
Fonte: https://institutoiepe.org.br/2025/10/museu-kuahi-recebe-exposicao-do-coletivo-waca-wara/
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