A obra reforça a importância da experiência indígena com exemplos concretos e instrumentos práticos, que demonstram a força metodológica que nasce no chão dos territórios em Roraima.

O livro “Transformações do tempo e políticas climáticas dos povos indígenas”, escrito por Sineia do Vale, indígena do povo Wapichana, traz o legado de quem dedicou mais de 30 anos incansáveis em defesa dos direitos, da proteção e preservação ambiental, do enfrentamento às mudanças climáticas, pela autonomia, fortalecimento e bem-viver das comunidades indígenas.

É o olhar indígena de quem vivência as “transformações do tempo” junto com seu povo, em uma história cheia de desafios, perdas, risos, choros e também de conquistas. Regada por dedicação e, principalmente, por amor pelo que faz.

A obra foi lançada durante a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30) em Belém do Pará, um espaço importante para o momento. Para a ocasião, a escritora recebeu lideranças indígenas, parte da equipe e a coordenação executiva do CIR, parceiros, apoiadores, amigos e a família, com quem Sineia compartilhou os desafios durante a produção do livro.

Emocionada, Sineia recordou que sempre se perguntava como registrar e mostrar para todos as metodologias usadas nas ações de enfrentamento às mudanças climáticas feitas nas comunidades indígenas em Roraima. O questionamento foi levado para o mestrado feito na Universidade de Brasília (UnB) e foi então que, junto com os parceiros, surgiu a ideia de produzir o livro, uma versão modificada da dissertação de mestrado, construída sob a orientação do professor Alessandro Oliveira e coorientação do professor Daniel Bampi, do Instituto Insikiran da UFRR.

A tese buscou elaborar uma sistematização da experiência na construção dos Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs) em diferentes regiões de Roraima, destacando a importância de incluir a discussão e conter orientações sobre ações de enfrentamento às mudanças climáticas, abordando e questionando: como, por meio dessas ações, se pode contribuir com a sustentabilidade dos modos de vida dos povos indígenas nos territórios e influenciar nas políticas públicas que fortaleçam e reconheçam esses modos de vida e a importância das terras indígenas.

“Para mim foi uma surpresa, quando disseram: ‘a gente pode escrever um livro’, e eu aceitei. Tudo foi pensado por mim. A capa, o designer das casinhas, foi feito pelo Renan Oliveira, engenheiro agrônomo do departamento. A gente queria replicar como eram feitos os PGTAs em 10 dias.”

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Momentos no lançamentos do Livro durante a COP30 em Belém/PA. Fotos: ASCOM/CIR

Assim como o mestrado, trechos da obra foram escritos durante os percursos das viagens, em meio a idas e vindas, nas conexões feitas entre o chão das comunidades indígenas e as incidências nacionais e internacionais.

“O livro é uma caminhada junto que vem de longos anos, foi uma troca entre a ciência indígena e a ciência da academia. Foi muito importante porque eu queria saber como ter essas metodologias criadas por mim registradas e que todas as lideranças fossem partes disto. Cada vez que a gente trabalha com essas metodologias na comunidade, a gente aprende junto, mas isso precisa ser registrado em algum momento, e o resultado está aqui”, pontuou Sineia.

A obra com trezentas e oitenta e três páginas cabe na palma da mão, um livro pequeno, mas com um grande significado. A escritora buscou na literatura alguém que falasse sobre isso e encontrou Paulo Freire.

“Quando o livro saiu, me disseram: ‘gente, o livro ficou muito pequeno!’ Eu falei: ‘como assim? É um palmo’. E eu fui buscar na literatura alguém que falasse sobre o tamanho do livro, e eu encontrei Paulo Freire, e quero dizer que eu amei, ficou parecido comigo: pequeno e gordinho”, disse Sineia com um largo sorriso no rosto.

Em algumas páginas, o livro traz homenagens carregadas de gratidão e apreço, dedicadas in memoriam ao companheiro de trabalho Genisvan André, Técnico em Sistema de Informação Geográfica, que atuou com Sineia no Departamento de Gestão Territorial, Ambiental e Mudanças Climáticas (DGTAMC) do CIR por muitos anos. A experiência única na construção mental dos mapas das regiões marcou a história de Genisvan: era o único no país com esse expertise, uma marca deixada que uniu o conhecimento tradicional com o tecnológico.

“Uma homenagem especial é ter o mapa feito por Genisvan no livro. Trabalhamos 15 anos juntos, era como um filho, e ele faz parte dessa história. Para mim, sempre fez. Quando fui fazer o livro, eu pedi que o mapa que ele desenhou estivesse no livro”, disse emocionada.

Sineia destaca que são 34 anos dedicados ao Conselho Indígena de Roraima (CIR). A oportunidade de atuar na organização surgiu na década de 90. Ela viu o CIR crescer no nome e na estrutura, acompanhou todo o processo e, aos poucos, a atual líder global do clima foi trilhando seu legado, um percurso árduo que envolveu as comunidades e lideranças indígenas, apoiadores, parceiros, amigos e, principalmente, a família.

“Agradeço a Deus por ter me sustentado nessa caminhada, trinta e quatro anos da minha vida dedicada ao CIR, organização que tem 54 anos. Agradeço também à minha família, porque ter um lugar para voltar é muito importante, ter minhas filhas e meu marido me esperando, nada paga isso. A família é muito importante nesse processo de idas e vindas.”

Os conhecimentos e aprendizados compartilhados por Sineia no livro foram feitos de muitas mãos, como ela mesma diz. Cada um contribuiu à sua maneira para que “Transformações do tempo e políticas climáticas dos povos indígenas” fosse uma realidade, desde um simples gesto de solidariedade, abraço, aperto de mão e até um ralhete de cobrança para que terminasse a escrita o quanto antes.

“É muito importante ter um livro registrando todo o trabalho do CIR. Agradeço imensamente a todos, às parcerias firmadas ao longo dessa caminhada. Obrigada à ex e atual coordenação da minha organização de base pelo apoio, todos foram importantes nesse processo.”

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Momentos no lançamentos do Livro durante a COP30 em Belém/PA. Fotos: ASCOM/CIR

O livro lançado durante a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30) em Belém do Pará, foi desenvolvido com apoio do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais (MESPT), Conselho Indígena de Roraima (CIR) e Mil Folhas do IEB.

O legado da cientista indígena

Sineia Bezerra do Vale é gestora ambiental de formação e mestre em Desenvolvimento Sustentável junto aos Povos e Territórios Tradicionais pela Universidade de Brasília (UnB). Sineia do Vale é destaque mundial nas discussões relativas às mudanças climáticas.

É coordenadora no Departamento de Gestão Territorial e Ambiental (DGTA) do Conselho Indígena de Roraima (CIR), organização que completou 54 anos este ano. Por meio do departamento, a coordenadora organizou o estudo de caso sobre o enfrentamento às mudanças climáticas: Amazad Pana’ Adinham: Percepção das comunidades indígenas sobre as mudanças climáticas. A publicação é referência mundial.

É coordenadora do Comitê Indígena de Mudanças Climáticas (CIMC) e Cocopresidente para a América Latina e Caribe do Fórum Internacional de Povos Indígenas sobre Mudanças Climáticas, o Caucus Indígena.

Em 2021, Sineia foi a única brasileira convidada para participar da Cúpula dos Líderes sobre o Clima nos Estados Unidos, a convite do presidente Joe Biden, e discursou para o mundo sobre a luta dos povos indígenas contra a destruição ambiental de seus territórios.

Sineia recebeu em 2022 o prêmio “Mulheres que Fazem a Diferença”, concedido pela Embaixada e Consulado dos Estados Unidos (EUA), recebeu também o Troféu Romy, da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), concedido a cinco mulheres mais atuantes em 2023. No ano passado, foi reconhecida como “Cientista Indígena do Brasil” pelo Planetary Guardians.

Um dos grandes legados é a participação nas Conferências Mundiais sobre Mudanças Climáticas, espaço em que apresenta os modos tradicionais dos povos indígenas de enfrentamento, assim como a relevante contribuição para o mundo.

Fonte: https://cir.org.br/post/sob-o-olhar-indigena-livro-transformacoes-do-tempo-e-politicas-climaticas-dos-povos-indigenas-e-lancado