No dia 05 de abril de 2022, foi publicada no Diário do Executivo do Estado de Minas Gerais a resolução conjunta Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social-SEDESE e Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável-SEMAD Nº 01, que visa regulamentar e institucionalizar a realização de Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI) à Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) que podem vir a ser afetados por medidas legislativas ou administrativas. Dentre estas medidas destacam-se procedimentos referentes à CLPI, no âmbito do licenciamento ambiental, voltados ao favorecimento de empreendimentos privados com intervenção mínima e/ou auxiliar do Estado.

Em primeiro lugar, chama a atenção a inconstitucionalidade e anticonvencionalidade desta Resolução, na qual as mencionadas Secretarias se auto-atribuem a regulamentação das diretrizes e a aplicação da CLPI, sem a participação dos PCTs e do seu foro próprio em nível estadual, que é a Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais (CEPCT-MG) – o que contraria a própria Convenção nº. 169 da Organização Internacional do Trabalho citada no texto.

De fato, a referida Convenção, na condição de tratado internacional de direitos humanos, foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro com status normativo supralegal, por força do parágrafo §2º do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 e de jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal. Nela se preconiza que os governos deverão consultar os povos indígenas, comunidades quilombolas e povos e comunidades tradicionais “cada vez que forem previstas medidas administrativas ou legislativas suscetíveis de afetá-los diretamente”, de boa fé, mediante procedimentos apropriados, e através de suas próprias instituições representativas, tratando-se do chamado direito à Consulta Prévia, Livre e Informada.

Em segundo lugar, causa estranheza a articulação entre SEDESE e SEMAD na proposição e publicação das diretrizes para a CPLI. A SEMAD e instituições administrativas a ela subordinadas no campo ambiental têm protagonizado conflitos socioambientais que envolvem PCTs e licenciamento ambiental no estado de MG, com registros de ações autoritárias e de violações de direitos. À SEDESE compete fortalecer e ampliar instrumentos de democracia direta e participativa; além de promover ações afirmativas e de enfrentamento à discriminação racial contra a população negra, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais[1]. Portanto, a não consulta da SEDESE aos PCTs do estado de Minas Gerais e à própria CEPCT-MG[2], que é a instância estadual responsável pela coordenação e implementação da Política Estadual de Desenvolvimento Sustentável ​​de PCT[3], configura grave violação do processo de consulta de que trata a Resolução, maculando de início uma medida administrativa/legislativa que supostamente existe para garantir direitos já reconhecidos aos PCTs.

Por fim, o texto da Resolução é ambíguo, afirmando direitos que no momento seguinte são flexibilizados para atender a interesses de empreendedor privado. São vários os pontos contraditórios que afrontam os direitos que a resolução pretende, supostamente, resguardar. Dentre estes pontos, apresentados abaixo, chamam a atenção o desprezo aos direitos dos PCTs, o não reconhecimento do estatuto socioantropológico de seus territórios, e o papel auxiliar do Estado em prol dos interesses privados.

1- DESRESPEITO À AUTO ATRIBUIÇÃO:

Apesar da Resolução mencionar algumas das legislações principais que garantem o autoreconhecimento de povos e comunidades tradicionais no Brasil, é controversa a restrição deste reconhecimento por parte do estado mineiro para fins de aplicação da CPLI, circunscrita somente aos povos que já estejam certificados pelos respectivos órgãos (FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES, FUNAI e CEPCT/MG), vide §1º e 2º do art. 1º. Cabe ressaltar que essa diretriz não somente fere os direitos constituídos pela Convenção 169 da OIT, segundo a qual a identificação enquanto povo e comunidade tradicional é auto atributiva e independe do reconhecimento por parte do Estado; mas também exclui uma quantidade expressiva de PCTs que ainda lutam pelo seu reconhecimento e não foram certificados, vivendo em um contexto político de cerceamento de direitos e de acesso à emissão de certificação pelas instituições que deveriam protegê-los. É imoral, conforme definido no art. 5º incisos de I a XVI, atribuir ao responsável pela CLPI – dentre eles o empreendedor privado – o poder de definir quem são os PCTs afetados, qual é a área diretamente afetada (ADA), ditar prazos, estabelecer a metodologia, o plano e conduzir todo o processo regido pela boa-fé das partes envolvidas.

2- AUTORITARISMO E INTERESSES PRIVADOS

A delegação ao empreendedor privado de contratar, com recursos próprios, assessoria técnica especializada para realização da CLPI, caracteriza não somente conflito de interesses, bem como isenta o Estado de sua função de proteção desses povos, o que é garantido pela Constituição Federal e por uma gama de legislações infraconstitucionais vigentes no Brasil.  Além de gerar o risco de aniquilamento dos PCTs comumente invisibilizados e excluídos, principalmente em processos de licenciamento ambiental, trata-se de afronta e violação dos direitos destes grupos atribuir tal condução pela parte interessada. É importante ressaltar que as assessorias técnicas especializadas devem ser indicadas pelos próprios PCTs e assentadas em vínculos de confiança entre estes e os pesquisadores, visto que a grande diversidade sociocultural dos territórios e comunidades sujeitas à consulta requer um conhecimento aprofundado sobre os processos históricos de ocupação e organização social destes grupos. Para que os objetivos da consulta se cumpram, é fundamental que os grupos tenham acesso às proposições e definições sobre os ritos processuais de consulta mais adequados aos seus modos de vida e organização, respeitando seus tempos e modos de comunicação.

A presunção de boa fé, presente ao longo do texto e a exemplo do art. 14, o qual aponta que para aqueles empreendimentos que dispensam licença ambiental, basta a manifestação negativa do empreendedor quanto à não presença de povos tradicionais, abre a possibilidade para intensificação de conflitos e de violações de direitos. No pior dos cenários, permite conferir garantias legais para que os PCTs sejam silenciados e seus direitos solapados, visto que existe um número expressivo de PCTs em contextos de conflitos fundiários e violências socioambientais perpetradas pelos próprios empreendedores.

3- CONTROLE TERRITORIAL

A referência aos territórios tradicionais dos PCTs como estando sobrepostos às áreas de projetos econômicos opera uma inversão de lógica, por meio de um discurso que naturaliza a precedência destes projetos sobre os territórios em disputa. O apagamento do processo histórico de ocupação e territorialização destes grupos, que são anteriores ao avanço dos empreendimentos sobre suas terras tradicionalmente ocupadas, têm como efeito a invisibilização de seus modos de vida e da contribuição dos mesmos para a conservação da natureza e de sua sociobiodiversidade. Inversão que prejudica de forma cabal a compreensão sobre direitos destes grupos a seus territórios e sobre as diretrizes que deveriam orientar o procedimento de consulta livre, prévia e informada. Além disso, a Resolução é enfática na construção discursiva do consenso entre empreendedores privados e grupos afetados, elidindo as relações de poder que dizem respeito à definição do que é o território afetado e a decisão sobre seus usos e destinos. Cabe destacar a esse respeito o art. 5º, inciso II, que indica que o responsável pela CLPI deve realizar o georreferenciamento da Área Diretamente Afetada (ADA) e “identificar seu distanciamento com relação à localização geográfica dos povos e comunidades tradicionais”. A ADA, como categoria administrativa construída de forma arbitrária no âmbito do licenciamento ambiental, oblitera o entendimento necessário sobre a territorialidade desses povos, definindo uma estratégia de delimitação da localização geográfica de PCTs que tende a escamotear as inter-relações que os PCTs estabelecem com seu território e com a área de interesse dos empreendimentos, subdimensionada, para efeitos de tratamento dos PCTs, como ADA. Tomar como base somente as comunidades localizadas “na ADA” e, no caso de empreendimentos que não tenham necessidade de realização de EIA-RIMA, aquelas em “áreas de influência do empreendimento”, tal como indicado no art. 12, como já exaustivamente demonstrado no âmbito de inúmeros processos de licenciamento ambiental implementados e em curso, implica na violação de direitos, pois os efeitos socioambientais dos grandes empreendimentos ocorrem de forma sistêmica e contínua, para além do perímetro deliberada e interessadamente compreendido como ADA.[4]

Vale acrescentar ainda, conforme definido no art. 14, que apenas territórios oficialmente reconhecidos serão considerados para efeitos de CLPI em situações de empreendimentos que possam afetá-los e que não precisam ser licenciados – o que, mais uma vez, além de possivelmente excluir uma gama imensa de PCTs que porventura possam ser impactados por empreendimentos de baixo impacto ambiental, ainda pode promover impactos multidimensionais no território sem passar pelo crivo do Estado.

Por fim, o art. 7º evidencia que a Resolução não reforça a importância do território para os PCTs. Ao contrário, afirma que são necessários “procedimentos adequados estabelecidos por norma” para que esses povos possam ser deslocados e reassentados, a despeito e à revelia da obtenção de consentimento por parte dos grupos afetados. Neste sentido, os termos da Resolução sugerem uma intenção velada de encobrir sob o manto da legalidade práticas de fato nefastas e prejudiciais aos PCTs.

4- HARMONIA COERCIVA E PARTICIPAÇÃO DISCIPLINADA

É preocupante a determinação disposta no § 8º do art. 2º de que a decisão final sobre a CLPI deve ser atribuída ao órgão competente, visando o consenso. Definição contraditória uma vez que a decisão final já está posta de antemão em favor do órgão competente ou do empreendedor privado. Indicação autoritária, também observada ao longo do art. 13, que trata dos ritos e prazos para CLPI no âmbito do licenciamento ambiental. Quanto aos prazos, os procedimentos apresentados se colocam inviáveis do ponto de vista operacional, prático e organizacional dos distintos PCTs, alijando-os de todo processo da CLPI, do qual deveriam ser os principais protagonistas.

Além do mais, no caso de empreendimentos econômicos mais impactantes que necessitam realizar EIA-Rima – art. 13 § 11º – o Licenciamento poderá seguir seu curso caso seja justificado o não cumprimento do prazo estabelecido para a consulta dos PCTs. Trata-se de medida que esvazia e torna inócua a própria CLPI. Ademais, nos casos em que não seja necessário o EIA-Rima, as comunidades podem peticionar à SEMAD e SEDESE a aplicação da CLPI – e o rito (corrido) deverá ser cumprido “em caso de manifestação positiva do empreendedor sobre a presença de PCTs” (art. 13, §2º).

Embora a definição de quais serão as situações que demandam a consulta prévia seja mais extensiva no § 6º (inclui: projeto, medida, lei ou política), não estão claras as responsabilidades de cada agente institucional. A exemplo do § 9º no qual cabe ao empreendedor e ao órgão competente fornecer as informações e esclarecimentos complementares. Porém, algumas questões são colocadas: qual seria o órgão competente para decretar o fim do diálogo e dos esclarecimentos junto às comunidades? Se é o órgão competente que define prazos tão exíguos para implementar uma garantia de direito fundamental, a quem os PCTs devem recorrer quando não aceitam o consenso pré-determinado? Como são repartidas as atribuições entre empreendedor e órgão competente no fornecimento das informações necessárias previamente ao empreendimento? Quem é o responsável por definir quais são as informações e esclarecimentos básicos e qual é o limite das informações complementares?

A diretriz do consenso está consubstanciada no conjunto dos § 4º a 9º. Consolidando o papel absolutamente coadjuvante aos PCTs ao longo de toda a Resolução, o § 8º do art. 1º. assume que o consenso pode não ocorrer e que, neste caso, a decisão final sobre a realização ou não da medida que se pretende “consensuada” caberá ao órgão competente. A autonomia e o respeito à autodeterminação dos PCT ficam comprometidos neste caso. Em resumo, a resolução não dispõe claramente sobre a autonomia dos PCT para concordar ou não com as medidas que lhes afetam, conforme leitura integrada dos arts. 2º, 3º e 4º. Ao fim, cabe ao órgão competente a decisão final. Isso também é reforçado pelo artigo 6º. Vale ressaltar ainda um pressuposto ingênuo/irrefletido de que há medidas legislativas ou administrativas que possam afetar apenas e exclusivamente de forma positiva os PCTs e, neste caso, a resolução deixa a entender, insidiosamente, que é opcional a aplicação da CLPI (ver § 4º. Art. 1o). A resolução não deixa claro a quem caberá decidir quanto à identificação do pressuposto da liberdade, conforme definido no § 5º: “A consulta deverá ser livre, sendo que o pressuposto da liberdade implica a ausência de pressões e violências contra as comunidades possivelmente afetadas, as quais, caso sejam identificadas, implicará na anulação do processo administrativo ou da licença ambiental, se emitida”. Ressalta-se ainda que o relatório de consulta, de que trata o art. 5º, inciso XVI, deve ser aprovado pelo grupo afetado sob pena do processo de consulta e da construção do consenso não serem válidos.

A partir dos pontos analisados, observa-se que a Resolução viola uma série de normas legais e descarta todo processo de conquista de direitos já adquiridos e consolidados para os PCT. Há uma visível inversão de competência em relação à CLPI, conduzidas pela SEDESE e SEMAD que desprezaram normas e procedimentos nacionais e internacionais que protegem tais direitos.  Ressaltamos que a consulta deve ser prévia, livre, informada, efetuada a partir de protocolos construídos pelos próprios PCTs e garantida pelas instituições representativas governamentais. A CLPI não pode se constituir como mera formalidade procedimental em favor de interesses privados e em detrimento dos direitos coletivos.

Recomenda-se medidas que impliquem a imediata suspensão da RESOLUÇÃO CONJUNTA SEDESE/SEMAD nº 01, de 4 de abril de 2022.

07 DE ABRIL DE 2022.

Assinam este documento:

  • Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos (ABA)
  • Comitê Quilombos (ABA)
  • Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA/UFMG)
  • Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental (NIISA/UNIMONTES-MG)
  • O Kaipora – Laboratório de Estudos Bioculturais (UEMG)

Leia aqui a nota técnica em PDF.

__________________
[1]
 https://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/completa/completa.html?tipo=LEI&num=23304&comp=&ano=2019.
Acessado em 06 de abril de 2022.
[2] A CEPCT-MG foi criada através do decreto nº 46671 em 16 de novembro de 2014, e é subordinada administrativamente à SEDESE.
[3] Vide Lei Estadual nº 21.147, de 13 de janeiro de 2014.
[4] Para uma discussão detalhada, ver Oliveira, Zhouri e Motta (2020), disponível em https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/CX94xtKJ5HFt6CWs8psVSXC/?lang=pt. Acesso em 07 de abril de 2022.

Fonte: http://www.portal.abant.org.br/2022/04/12/nota-tecnica-sobre-a-resolucao-conjunta-sedese-semad-no-01-de-04-de-abril-de-2022/

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