Através de sua Comissão de Assuntos Indígenas (CAI) e de seu Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) vem reiterar as profundas preocupações sobre a legitimidade jurídica e a condução política do processo de licenciamento ambiental de quatro pequenas centrais hidrelétricas, previstas para serem implementadas no rio das Mortes (MT), afetando o modo de vida dos povos Xavante e Bororo[1].

Tramitando desde 2019 junto à Secretaria de Estado do Meio Ambiente do Mato Grosso (SEMA-MT) e à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), o processo de licenciamento refere-se à instalação das PCHs denominadas Entre Rios, Vila União, Cumbuco e Geóloga Lucimar Gomes, junto à cabeceira do rio das Mortes e um de seus afluentes (rio Cumbuco) que banham as seguintes terras indígenas homologadas e registradas em cartório: Terra Indígena de Sangradouro/Volta Grande (dos povos Bororo e Xavante); a Terra Indígena Merure (povo Bororo); as Terras Indígenas São Marcos, Areões e Pimentel Barbosa (povo Xavante). As águas do Rio das Mortes banham também a Terra Indígena Wedezé (povo Xavante) em processo de regularização fundiária.

No atual momento, os Estudos de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) de três das quatro centrais previstas encontram-se em pleno vapor, já na etapa de realização de audiências públicas e de oitivas indígenasSimultaneamente, há um conjunto de denúncias por parte de atores indígenas e não-indígenas sobre o processo de licenciamento – que não foi suspenso nem mesmo durante o período da pandemia –, os quais questionam não só o modo como vem sendo conduzido, como também o próprio conteúdo dos estudos já realizados e em fase de apresentação. Dentre as denúncias enumeramos: desinformação sobre os reais impactos das quatro centrais hidrelétricas (em particular, pelo fato não terem sido objeto de avaliação conjunta com os indígenas);  estratégias antiéticas de cooptação de lideranças indígenas e não-indígenas para dar legitimidade ao empreendimento; realização de audiências públicas de modo apressado e sem a devida divulgação (inclusive, em modo online), e desconsideração total da base jurídica (Convenção 169) na qual se baseia a realização de oitivas indígenas.

A partir da análise do EIA-RIMA e dos documentos anexados ao processo de licenciamento, das inúmeras e incisivas denúncias e documentos produzidos por lideranças e associações indígenas Xavante e Bororo[2], podemos destacar algumas questões intrinsecamente conectadas, que devem ser respondidas pelas autoridades envolvidas, antes da continuidade do licenciamento, em particular, pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas-FUNAI:

  1. Apenas uma das quatro terras indígenas Xavante (a T.I. Sangradouro/Volta Grande) foi incluída como área de influência nos estudos de impacto ambiental e nas consequentes realizações de reuniões informativas e audiências públicas. Este encaminhamento contou com a anuência da SEMA (MT) e do próprio setor de licenciamento ambiental da FUNAI/DF quando da emissão do Termo de Referência para elaboração do Estudo do Componente Indígena, em 2020. A exclusão das demais terras indígenas (São Marcos, Areões, Pimentel Barbosa, Wedezé e Merure) – note-se, terras com centenas de aldeias atravessadas, banhadas ou no entorno do rio das Mortes – parece necessitar de ampla, consistente e debatida justificativa técnica e jurídica. A alegação de que o licenciador estadual e a FUNAI estariam seguindo o que a Portaria 60/2015 exige para este tipo de situação deveria ser revisitada urgentemente, devido à complexidade das interrelações socioambientais existentes entre as comunidades indígenas e a bacia hidrológica do rio das Mortes. Se, por um lado, o Anexo I da referida portaria orienta que, para uma terra indígena entrar em estudos de impacto ambiental, é necessário que esteja situada num perímetro menor do que 40 Km do empreendimento (caso da T.I. Sangradouro/Volta Grande), por outro, a mesma portaria garante, em seu Artigo 3, parágrafo 3, que: “Em casos excepcionais, desde que devidamente justificados e em função das especificidades da atividade ou do empreendimento e das peculiaridades locais, os limites estabelecidos no Anexo I poderão ser alterados, de comum acordo entre o IBAMA, o órgão ou entidade envolvido e o empreendedor”. É bastante conhecido na literatura científica que empreendimentos hidrelétricos em rios, independentemente de sua magnitude, afetam sobremaneira a capacidade de reprodução das diversas modalidades de flora e fauna ali existentes (não só, mas principalmente, a ictiofauna), com implicações diretas e indiretas nos processos de reprodução física e cultural dos povos indígenas afetados. De fato, a construção e o início da operação de hidrelétricas situadas nas bacias dos rios Juruena e Xingu resultaram em impactos não mitigáveis e tampouco compensáveis à biodiversidade e, sobretudo, à ictiofauna regional e à toda cadeia reprodutiva associada[3].
  2. As mesmas lideranças e associações Xavante e Bororo têm denunciado a ilegitimidade política do procedimento de aparente ‘consulta’ que o empreendedor tem conduzido junto às bases indígenas, já que: a) não houve nenhuma oitiva indígena realizada até o momento e as reuniões informativas feitas na T.I. Sangradouro/Volta Grande foram marcadas justamente pelas denúncias de esvaziamento, cooptação, desinformação, ocasionando, inclusive, confrontos entre indígenas favoráveis e contra aos empreendimentos; b) como não existe um protocolo de consulta próprio pactuado entre os Xavante e tampouco entre os Bororo, o processo em curso ignora (ou, melhor, manipula em interesse próprio) frontalmente a Convenção 169 da OIT, particularmente, o direito de que os povos indígenas e nativos tenham assegurado pelos estados do qual fazem parte, mecanismos próprios de representação e decisão.
  3. As duas deficiências acima mencionadas implicam-se mutuamente, já que a inclusão de apenas uma das terras indígenas xavante no processo de licenciamento desconsidera as relações de parentesco, sociológicas e cosmológicas que são a base para a tomada consensual de decisões que afeta o destino dos habitantes indígenas da bacia do rio das Mortes, em particular, de mais de 20 mil xavantes que vivem em mais de uma centena de aldeias na região.
  4. Em relação à presença de patrimônio arqueológico, documentos do IPHAN de 2008 atestam a existência de achados arqueológicos na região afetada pelo empreendimento, dado este que foi desconsiderado pelo mesmo IPHAN/MT em 2020.

Em vista do exposto, a ABA, via seus referidos comissão e comitê, solicita às autoridades envolvidas:

  1. A elaboração de uma nova justificativa técnica e jurídica que articule a releitura detalhada da Portaria 60/2015, a complexa situação de interação socioambiental e política existente entre as centenas de aldeias Xavante e Bororo e entre elas e a bacia hidrológica do rio das Mortes, e a injustificável exclusão de averiguação das demais terras indígenas situadas à jusante dos empreendimentos. A mesma justificativa deverá ser motivo de análise por parte da Coordenação de Licenciamento Ambiental da FUNAI, responsável direta pela autorização, monitoramento e anuência final dos Estudos do Componente Indígena.
  2. A elaboração de uma justificativa técnica e jurídica por parte do empreendedor, que explique e justifique o motivo das quatro centrais hidrelétricas não serem objeto de uma avaliação conjunta, ou avaliação dos impactos sinérgicos e cumulativos conforme vigora na legislação, o que parece implicar na impossibilidade de uma avaliação mais segura da magnitude dos impactos previstos.
  3. A imediata suspensão de quaisquer modalidades de consulta aos povos indígenas afetados pelos empreendimentos até que seja elaborado um protocolo de consulta próprio dos povos Xavante e Bororo, com apoio do Ministério Público Federal e da própria FUNAI.
  4. A imediata suspensão das atividades da equipe de Estudos do Componente Indígena (ECI) que, segundo informações de lideranças indígenas locais, teria começado seus trabalhos de avaliação de impactos sobre as comunidades indígenas pertencentes apenas à Terra Indígena Sangradouro/Volta Grande.
  5. A apuração pelos órgãos competentes de que estudos do IPHAN realizados em 2008, sobre patrimônio arqueológico presente na região da implantação das PCHs, não tenham sido considerados no presente processo de licenciamento.

Brasília, 24 de julho de 2023.

Associação Brasileira de Antropologia – ABA; sua Comissão de Assuntos Indígenas (CAI); e seu Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos

Leia aqui a nota em PDF.

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[1] Em 27 de abril de 2020 esta mesma Comissão emitia uma nota manifestando profunda preocupação com a pressão que os povos Xavante e Bororo estavam sofrendo por parte de forças econômicas e políticas estaduais mato-grossenses para que aceitassem a construção de três centrais hidrelétricas nas cabeceiras do Rio das Mortes. http://portal.abant.org.br/2020/04/28/nota-sobre-a-construcao-de-tres-centrais-hidreletricas-no-rio-das-mortes-mt/

[2] https://www.instagram.com/p/CdEeykDPoKS/ – Acesso: 17.07.2023

[3] https://amazonianativa.org.br/2021/02/25/pchs-podem-fragmentar-ate-4-vezes-mais-os-rios-diz-estudo-inedito/ – Acesso em: 17.07.2023

Fonte: https://portal.abant.org.br/o-processo-de-licenciamento-ambiental-de-pequenas-centrais-hidreletricas-pchs-no-rio-das-mortes-e-afluente-mt-que-afetam-diretamente-os-povos-xavante-e-bororo/

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