A técnica de enfermagem Vanda Ortega Witoto denuncia a exclusão de comunidades não aldeadas do plano nacional de vacinação contra a Covid-19: “somos indígenas independente de onde estamos”
A técnica de enfermagem Vanda Ortega Witoto denuncia a exclusão de comunidades não aldeadas do plano nacional de vacinação contra a Covid-19: “somos indígenas independente de onde estamos”
20 de janeiro de 2021
12:01
Anna Beatriz Anjos
ESPECIAL: CORONAVÍRUS
“A Secretaria Especial de Saúde Indígena não tem nenhum diálogo conosco, eles nos negam [indígenas em contexto urbano]”
“‘Índios aldeados’ era o termo utilizado na ditadura militar, que matou muitos dos nossos povos. Esse termo historicamente nos fere, nos nega e nos mata”
“Temos direito à vacinação em todos os espaços onde estejamos, onde nossos corpos estiverem certamente seremos indígenas”
Na última segunda-feira (18), Vanda Ortega Witoto, técnica de enfermagem indígena de 33 anos, foi a primeira pessoa a receber a dose inicial da vacina contra a Covid-19 no estado do Amazonas. Ela é moradora do Parque das Tribos, bairro onde vivem indígenas de diversos povos em Manaus, cidade que enfrenta pela segunda vez o colapso no sistema de saúde por conta da pandemia e onde, na última semana, pacientes morreram por falta de oxigênio nos hospitais.
Embora a população indígena esteja contemplada na primeira fase do plano de vacinação contra a Covid-19 do governo federal, não há previsão de quando a comunidade de Vanda, com pelo menos 2 mil pessoas, será imunizada. Isso porque o Ministério da Saúde incluiu no grupo prioritário apenas indígenas que vivem em aldeias, deixando de fora aqueles que moram em cidades, como os habitantes do Parque das Tribos. “Aceitei participar disso [vacinação] justamente porque é um momento histórico que precisa ser refletido para as populações que vivem nas cidades”, afirmou em entrevista à Agência Pública.
Embora emocionada por ter recebido a primeira dose da vacina, Vanda denuncia a situação causada pela Covid-19 no Parque das Tribos, onde o atendimento improvisado aos pacientes é prestado por profissionais de saúde indígenas moradores do bairro. “Estamos montando uma estrutura para atender nossos parentes dentro da comunidade, a partir de doações”, diz a técnica de enfermagem da rede estadual, que desde o primeiro surto da doença trabalha como voluntária cuidando da própria comunidade. Junto às lideranças do bairro, ela criou uma campanha de arrecadação para comprar medicamentos e equipamentos de proteção individual – de acordo com ela, 32 pessoas testaram positivo para o coronavírus no local ao longo das duas últimas semanas.
Diego Pires e Arthur Castro/Governo do Amazonas
Vanda Ortega Witoto é a primeira indígena a receber a vacina da Covid-19 no Amazonas
Qual foi a sensação, enquanto mulher indígena, de ser primeira pessoa vacinada contra a Covid-19 no Amazonas, cuja capital vive um novo colapso do sistema de saúde por conta da pandemia?
Para mim foi muito emocionante, histórico. Os nossos povos, principalmente os que vivem em cidades, são desassistidos pelo poder público. Temos 32 novos casos de Covid na nossa comunidade, perdemos o nosso cacique-geral [em maio do ano passado, Messias Kokama morreu aos 53 anos em decorrência da Covid-19]. Essa vacina, pra gente, representa o fortalecimento das políticas para os povos de contexto urbano, uma luta histórica para nós que estamos nesses territórios, não reconhecidos como indígenas pelo Estado. Para mim, levantar essa questão é muito importante.
Apesar de você ter sido escolhida para receber a primeira vacina contra a Covid-19 em todo o Amazonas, a sua comunidade, por não ser considerada formalmente uma aldeia, não está incluída no grupo prioritário a ser imunizado na primeira fase do plano do governo federal. Como você vê essa situação?
A nossa luta enquanto movimento indígena é para que se garanta vacinação para todos, mas pelo cronograma do Ministério da Saúde, as populações indígenas que vivem em contexto urbano não estão na programação. Minha fala naquele momento foi justamente para chamar atenção para essa questão. Aceitei participar disso justamente porque é um momento histórico que precisa ser refletido para as populações que vivem nas cidades – entendemos que somos indígenas independente de onde estamos. Aceitei como um ato de resistência, um ato político, um ato de luta, como sempre é a nossa vida.
Indígenas em contexto urbano enfrentam um “limbo” no acesso à saúde, já que não são atendidos pelo Subsistema de Saúde Indígena e também têm dificuldades para acessar o SUS. Como essa situação afetou os moradores do Parque das Tribos ao longo da pandemia? Quais foram as maiores dificuldades nesse sentido?
Naquele primeiro momento da pandemia, no ano passado, estávamos totalmente desassistidos, porque essa é a realidade das comunidades indígenas em contexto urbano. Somos desassistidos pelo poder público mesmo estando dentro das cidades: nossas comunidades são extremamente carentes, não temos água, rede de esgoto ou luz elétrica regular. Todos os esforços de enfrentamento da pandemia se deram pelas ações que iniciei dentro da comunidade. Vivenciamos um momento histórico, quando eu e mais duas parentes fizemos uma manifestação no hospital de referência Delphina Aziz durante a visita do então ministro Nelson Teich [em maio, quando Manaus vivia o primeiro surto de Covid-19], e ali foi possibilitada a construção de uma ala específica para as populações indígenas [no Hospital Nilton Lins], que infelizmente durou apenas 60 dias, se não me engano – foi muito rápido o desmonte. Efetivamente, a gente não tem nada até agora para as populações indígenas, apesar de toda a mobilização do ano passado. Também através da luta do Parque das Tribos, conseguimos trazer uma UBS móvel para a comunidade, que ficou só dois meses também.
Como está a situação do Parque das Tribos em meio a esse novo surto de Covid-19 na cidade?
Nesse momento, estamos montando uma estrutura para atender nossos parentes dentro da comunidade, a partir de doações. É uma luta sem fim. O cacique iniciou uma campanha nas redes sociais para a construção desse espaço, é uma tenda com redes – que fazem parte da nossa cultura – e ventiladores. A gente está fazendo o monitoramento dos primeiros sintomas, e aí já entramos com as medicações que nos foram orientadas pelos médicos, e também com a nossa medicina tradicional, o nosso chá – a gente sempre faz o uso dessas duas medicinas. Temos conseguido manter a maior parte desses 32 indígenas infectados na comunidade, sem precisar ir para o hospital. Todos os profissionais são indígenas, voluntários e formados técnicos de enfermagem, além disso temos um indígena que é enfermeiro e outra que é assistente social – no total, somos sete pessoas que estamos monitorando os parentes. Todos os materiais e a estrutura são doações que a gente recebeu de pessoas que estão se mobilizando para deixar as coisas aqui.
Vocês sentiram os efeitos da falta de oxigênio que matou pacientes em hospitais de Manaus na semana passada?
Temos três parentes com dificuldades respiratórias e estávamos zerados de oxigênio. Não tínhamos como ir para fora [para as unidades de saúde] porque não estavam recebendo ninguém, então ficamos por aqui, eles tiveram que ser fortes e estão aí. Agora já estão recebendo oxigênio e mais estáveis, depois das doações.
A Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena, ligada ao Ministério da Saúde) ofereceu algum apoio durante a primeira crise da Covid-19 em Manaus ou agora?
A Sesai não tem nenhum diálogo conosco, eles não nos reconhecem, nos negam. Não temos nenhum apoio deles.
Como você analisa a atual política de saúde indígena brasileira, que exclui essas comunidades em contexto urbano?
Existe uma portaria do Ministério da Saúde que diz que a Sesai deve fazer atendimento primário [de saúde] em aldeias indígenas. O termo “aldeias” exclui toda a população indígena que vive em outros espaços, e eles usam muito essa lei para nos negar o atendimento, porque toda vez que sai da aldeia – esse termo extremamente colonizador para nós –, nos restringem e nos excluem. Quando nos negam o direito de sermos atendidos como indígenas e ficamos à mercê [da saúde] do governo, que também não tem nenhuma política específica para as populações indígenas, a gente fica nesse limbo que vocês estão acompanhando, de uma precariedade de saúde, e temos que nos virar com os nossos próprios esforços. Há a necessidade de se mudar a lei porque os brancos se utilizam do termo “aldeados” – como está acontecendo agora no plano de vacinação – para atender apenas os indígenas que vivem em aldeias. A nossa luta é para que esse termo não seja mais utilizado. “Índios aldeados” era o termo utilizado na ditadura militar, que matou muitos dos nossos povos. Esse termo historicamente nos fere, nos nega e nos mata. Temos direito à vacinação em todos os espaços onde estejamos, somos indígenas em qualquer lugar. Nosso corpo está em trânsito e é nosso território sagrado, onde nossos corpos estiverem certamente seremos indígenas.
Quais dificuldades vocês enfrentam para acessar os serviços de saúde destinados à população geral?
Se você pesquisar no sistema do SUS sobre o atendimento a populações indígenas, vai encontrar poucos dados. Primeiro, temos dificuldade econômica de nos locomover para esses locais [unidades de saúde], porque precisamos de recursos, a nossa comunidade é distante e as pessoas não chegam até lá. Se não nos disponibilizamos a levar, não conseguimos acessar. Ao chegar nas unidades, encontramos a superlotação que existe com ou sem Covid-19. Na pandemia, muitos deixaram de ser atendidos porque não falam português, apenas sua língua materna, então têm dificuldades de comunicação. Todas essas são barreiras e é por isso que a gente luta por um atendimento diferenciado também para esses povos [que vivem em contexto urbano].
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