Geraldo Resende (PSDB) atuou contra construção de cisternas em comunidades do Mato Grosso do Sul onde indígenas bebem água suja e são contaminados por agrotóxicos – em alguns casos, pulverizados sobre as suas casas
Acampados entre as fazendas de soja, milho e cana-de-açúcar do Mato Grosso do Sul, indígenas Guarani e Kaiowá adoecem e são intoxicados por agrotóxicos devido à falta de acesso à água tratada. Há denúncias de crianças internadas e adultos com diarreias, febres e manchas pelo corpo. O problema poderia ser amenizado por um programa do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) que instalaria 910 cisternas nesses locais. Ao coletar a água da chuva, as caixas reduziriam a dependência dos poços e córregos contaminados. Os benefícios do programa, porém, nunca chegaram a esses indígenas devido à interferência do deputado federal Geraldo Resende (PSDB/MS), que atuou para mudar o destino dos recursos.
Membro da Frente Parlamentar Agropecuária, a bancada ruralista, Resende confirma que se opôs às cisternas nos acampamentos, questionando a eficácia das obras. “Sabe-se dos bons resultados da construção de cisternas no Nordeste do país, porém, talvez não seja essa a melhor benfeitoria para as áreas indígenas de Mato Grosso do Sul”, afirma.
A motivação por trás do posicionamento do deputado, porém, pode ter outra origem. Em reunião com representantes do MDS e da Funai no dia 9 de novembro, ao se manifestar contra as obras, o parlamentar listou os nomes de posseiros e donos de propriedades que reivindicam direito sobre as terras onde estão os acampamentos. A fala foi registrada por técnica da Funai que estava presente na reunião. A base do argumento de Resende seria “o possível acirramento fundiário” por considerar “a construção das cisternas um dano à propriedade privada”, segundo outro documento da Funai sobre a mesma reunião.
Questionado diretamente se interferiu no programa para defender os interesses dos fazendeiros locais, o deputado foi evasivo. Por meio de sua assessoria, informou que suas motivações foram: “a defesa da legalidade, a necessidade de atender a mesma demanda em áreas que não estão em litígio e questões da geografia local”.
Os acampamentos indígenas estão nas áreas cuja posse é disputada por fazendeiros e indígenas. Essas são, justamente, as comunidades consideradas mais vulneráveis pelo MDS e Funai, onde as doenças e intoxicações são mais frequentes. Isso porque esses acampamentos ficam mais próximos das lavouras, não dispõem de infraestrutura pública de abastecimento, além de serem o foco do conflito agrário da região.
Em resposta à atuação de Resende, o Ministério Público Federal se manifestou a favor da construção das cisternas nos acampamentos por meio de recomendação conjunta enviada ao então ministro do MDS, Osmar Terra. Na visão dos três procuradores federais que se manifestaram sobre o caso, o acesso à água deveria ser garantido independente “da regularidade fundiária das áreas que ocupem”. Para o procurador Marco Antônio Delfino, as cisternas seriam apenas uma solução pontual e temporária: “o mínimo que o Estado poderia fazer”.
Apesar dos questionamentos, o MDS está executando o programa com o apoio da Funai sem incluir nenhum dos acampamentos não regularizados.
Água suja para os índios
Barrenta e cheia de detritos, a água levada de balde pelos indígenas carrega agrotóxicos para dentro de suas casas, segundo relatórios da Funai e estudo do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), órgão ligado à presidência da república. A falta de acesso à água potável foi verificada em 70% dos acampamentos indígenas visitados por equipes da Funai em 2016. Nesses locais, a coleta é feita em córregos e poços improvisados, ambos alimentados pela água que escorre das plantações vizinhas.
Mal estar, diarreias, náuseas e dores de cabeça acompanham o calendário das lavouras que cercam os acampamentos. “Entre outubro e fevereiro a contaminação da água fica muito ruim, porque é tempo da soja. Abril e maio também, porque é tempo do milho. Só fica melhor no tempo do frio, quando não passam os venenos” afirma uma liderança indígena que preferiu não se identificar por medo de sofrer represálias.
De acordo com o último levantamento da Funai, de um total de 96 áreas habitadas pelos Guarani e Kaiowá no sul do estado, 45 não estão regularizadas. Chamadas de retomadas, essas ocupações indígenas ocorrem em terras que já foram parte do seu território tradicional, mas que hoje são usadas para o cultivo da soja e do milho. Em sua maioria, eles vivem em moradias precárias: casas de toco, erguidas com sapé e protegidas da chuva por lonas plásticas.
Para Simão Kunumi e sua família, o programa das cisternas era uma esperança. “Recentemente, três crianças tiveram de ir para o hospital por tomarem dessa água envenenada”, disse o Kaiowá que mora em uma retomada no município de Caarapó, uma das que receberiam as caixas d’água.
Foram mais de 33 mil toneladas de agrotóxicos vendidos no Mato Grosso do Sul em 2016, segundo o Ibama. Embora a contaminação ambiental preocupe cientistas, ainda não há dados que mostrem como essas substâncias se espalham pelas águas e pelos rios da região. Pesquisador da Embrapa Agropecuária Oeste, Rômulo Scorza, afirma que a instituição está lançando programa inédito para monitorar a concentração de agrotóxicos na água. Fernanda Savicki de Almeida, pesquisadora da Fiocruz em Campo Grande, relata que há muita resistência a estudos técnicos que se proponham a investigar essa questão no Mato Grosso do Sul.
Agrotóxicos como arma
Além da água contaminada, o veneno também cai do céu. A Repórter Brasil teve acesso a um vídeo que registra uma cena grave. Ao pulverizar uma plantação de soja, um avião joga a substância sobre uma comunidade indígena. Crianças correm em direção à casa, enquanto adultos descrevem sentir o cheiro do veneno.
Relatório interno da Funai narra esse mesmo episódio, que ocorreu em 2016 no acampamento Laranjeira Nhanderu, no município de Rio Brilhante. Segundo servidor do órgão, que não quis se identificar, esse foi um de muitos “ataques” que ocorrem na região, onde fazendeiros reagem contra as ocupações usando os agrotóxicos como arma.
A mesma realidade foi abordada em estudo da Human Rights Watch “Você não quer mais respirar veneno”. A organização coletou diversos casos de intoxicação entre os indígenas da área, revelando que os agrotóxicos estão na água e no ar: “Dava pra ver o líquido branco [no ar]”, contou indígena entrevistado pela ONG sobre episódio em que seu acampamento foi atingido por uma nuvem de agrotóxicos após pulverização em fazenda vizinha.
‘Cena de guerra’
São muitos os registros de ações violentas contra os indígenas no Estado. Paciente ao narrar a história do acampamento, o Kaiowá Simão vive desde 2016 com uma bala alojada no peito. O pedaço de metal quase o matou: “Está na capa do coração”, ele descreve. Segundo denúncia do MPF, o ataque foi feito por um grupo de 200 a 300 fazendeiros. Além de ferir Simão, eles tiraram a vida de um indígena no episódio que ficou conhecido como o “Massacre de Caarapó”.
Cinco dos fazendeiros envolvidos foram presos pela Polícia Federal, acusados de constituição de milícia privada, homicídio, lesão corporal e dano qualificado. “Essas agromilícias são comuns na região”, afirma o procurador da república Marco Antônio Delfino.
“Era uma cena de guerra”, afirma um indígena que pede para não se identificar. Ele se recorda das caminhonetes e tratores avançando sobre a retomada, enquanto os fazendeiros soltavam rojões para disfarçar os disparos das pistolas e espingardas.
A tensão permaneceu após o ataque, com 18 indígenas assassinados no estado em 2016. A violência segue iminente: em 9 de abril, o Supremo Tribunal Federal suspendeu duas ações de reintegração de posse em fazendas próximas a retomada de Kunumi. O receio é o “acirramento do conflito fundiário na região”, escreveu na decisão a ministra Cármen Lúcia, presidente do STF.
Ação ruralista
Neste contexto, a atuação de Geraldo Resende contra as cisternas em retomadas coloca o deputado como um ator importante no que os indígenas chamam de guerra. Em seu tempo de bancada ruralista, ele já se declarou contra a construção de outras infraestruturas públicas em Terras Indígenas não regularizadas, como escolas. Em falas públicas na Câmara, Resende também alegou que a Funai utiliza laudos antropológicos falsos em seus estudos.
Se há dois lados da disputa por terras no estado, não é difícil determinar em qual deles o deputado se coloca. Na Câmara há 15 anos, mineradoras e empresas do agronegócio sempre foram uma importante fonte para suas campanhas. Delas vieram 78% do seu financiamento eleitoral em 2014, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral.
Na época em que o projeto das cisternas foi alterado, o Ministério do Desenvolvimento Social era comandado por Osmar Terra, também da bancada ruralista. Ele deixou o cargo em abril deste ano para voltar ao posto na Câmara, a tempo de disputar a reeleição para deputado federal em outubro.
Para o procurador Delfino, um dos que reivindicou que o MDS voltasse ao programa original em áreas de retomada, o governo passa uma mensagem clara ao concentrar as políticas públicas apenas nas Terras Indígenas regularizadas: “Não saiam das terras que já têm”. Para ele, isso é mais uma maneira de enfraquecer a luta indígena pela demarcação de novas áreas.
A dispersão territorial das comunidades Guarani e Kaiowá na região remonta à expulsão de suas terras ainda no século XIX. O processo se intensificou durante as décadas de 50 e 70, quando o Estado passou a emitir títulos de propriedade a fazendeiros, muitos deles de fora do Mato Grosso do Sul.
Hoje, o estado é o campeão em terras privadas no Brasil: 92% de seu território tem donos e a maioria deles são grandes proprietários.
Essa matéria é parte do Ruralômetro, ferramenta que monitora como a ação dos deputados federais impacta o meio ambiente e povos do campo.
Por: João Cesar Diaz
Fonte: Repórter Brasil
Fonte: http://amazonia.org.br/2018/08/deputado-federal-boicota-programa-de-acesso-a-agua-para-indigenas/
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