A pandemia de covid-19 impactou desproporcionalmente grupos populacionais socialmente desfavorecidos no Brasil, incluindo os povos indígenas.
Um estudo feito por cientistas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e outras instituições, estima que, entre a população indígena, só 48,7% têm o esquema vacinal completo, bem menos do que entre os não-indígenas (74,8%).
Os índices foram melhores na região Nordeste, e foram semelhantes nas regiões Norte, Sul e Sudeste, apesar de as duas últimas terem a maior rede de atenção à saúde do país.
A baixa cobertura na região Norte (40,3%) é vista como particularmente preocupante pelos especialistas, já que concentra a maior proporção de população indígena.
Os pesquisadores Julia Pescarini e Andrey Cardoso, envolvidos na análise, explicam que o interesse em analisar a cobertura vacinal e a eficácia da vacina em povos originários brasileiros se deu por o grupo apresentar historicamente maior risco de doenças infecciosas em comparação com a população em geral, incluindo infecções respiratórias agudas.
O risco é amplamente atribuído a saneamento básico precário, desnutrição e acesso limitado a cuidados de saúde.
No Brasil, os autores apontaram no artigo que isso é agravado pela longa história de exposição à discriminação, violência, degradação ambiental e restrição territorial, que perpetuam a infecção respiratória como um importante problema de saúde para as populações indígenas.
Embora muitas das comunidades indígenas estejam longe dos centros urbanos, isso não impediu que o vírus se espalhasse nelas.
No primeiro trimestre da pandemia, houve um rápido aumento no risco de transmissão sustentada de covid-19 em áreas com presença indígena.
Duas pesquisas nacionais que investigaram anticorpos contra a doença na população de 133 cidades mostraram uma prevalência 87% maior entre indígenas em comparação com brancos.
Além disso, no primeiro da pandemia, a mortalidade entre os indígenas foi 16,7% maior do que a observada na população brasileira em geral.
Apesar desses fatores de risco, Pescari lembra que os povos originários não foram considerados inicialmente um grupo prioritário para a aplicação de doses pelo Ministério da Saúde.
“Profissionais envolvidos no PNI [Programa Nacional de Imunização] e sobretudo organizações dos próprios povos indígenas intercederam pela inclusão desse grupo na fase prioritária, que inicialmente era destinada apenas a profissionais da saúde, idosos e pessoas com comorbidade”, explica Pescari, que é pesquisadora do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs), instituto de pesquisa vinculado à Fiocruz, e da London School of Hygiene and Tropical Medicine.
Além da importância inata de preservar a saúde de cada pessoa e o direito constitucional ao acesso à saúde, Cardoso reforça que, no caso dos indígenas, protegê-los é também salvar sabedorias e culturas ancestrais.
“Quem detém muito do conhecimento, no caso dos povos originários, são os anciões, pessoas idosas, que estavam naturalmente em maior risco de serem afetados pela covid-19.”
Por que as populações indígenas foram menos vacinadas contra a covid-19?
Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam alguns motivos que levaram a esse quadro.
Dificuldade de acesso
A localização de determinados territórios, como os dos povos yanomami, no meio da selva, é um dos principais desafios para a vacinação de indígenas.
As equipes de saúde demoram dias para chegar, e materiais e medicamentos são escassos. No caso de vacinas, a depender da marca, corre-se o risco de as doses estragarem por falta de refrigeração correta.
A dificuldade de acesso é, no entanto, considerada contornável com esforços e investimento. Ainda assim, mesmo em locais onde o acesso é mais fácil, há desafios.
“Em alguns casos, um posto de saúde atende três ou quatro comunidades indígenas, então, não fica tão perto de todas. Para idosos ou pessoas com dificuldade de locomoção por qualquer motivo, esse acesso é dificultado e requer um esforço maior”, avalia Julia Pescarini.
Fake news
As notícias falsas sobre a vacinação contra a covid-19 também chegaram nas aldeias, no boca a boca ou por aplicativos de mensagem e redes sociais.
Uma reportagem da BBC News Brasil com o comunicador e empreendedor indígena Anápuàka Tupinambá trouxe relatos de indígenas afetados pelas fake news.
“Vi parentes falarem que viram que mais de 900 indígenas no Xingu teriam morrido por conta da vacina. Uma senhora com mais de 90 anos me disse que não iria se vacinar por causa disso”, afirma.
“Nenhuma região do país está a salvo (das notícias falsas), nem em áreas isoladas como Amazônia e Pará.”
Andrey Cardoso, que faz parte da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz – Rio de Janeiro (ENSP) e trabalha com saúde indígena há 25 anos, diz que a circulação de informações equivocadas espalhou medo.
“Fizemos um esforço muito grande para trazer informações técnicas e científicas e mostrar a eles a importância da vacina para que eles tivessem confiança de tomar”, diz.
Influência de profissionais de saúde negacionistas
Em reuniões com pesquisadores que trabalhavam na área do Xingu, Cardoso conta ter tomado conhecimento do impacto do padrão de comportamento das equipes de saúde que também foram afetados por fake news e teorias da conspiração.
“Quando as equipes não incentivavam a aplicação do imunizante e compartilhavam teorias falsas, o impacto negativo foi visto por consequência da não aceitação da vacina e inclusive na mortalidade dos indígenas no território”, afirma.
“Isso afeta todas as etapas do atendimento, seja na vacinação, tratamento ou até na testagem, por exemplo.”
Falta de investimentos
Pescarini aponta que o Sistema Único de Saúde (SUS) sofre com ameaças constantes de colapso por falta de recursos, o que torna o acesso de populações mais vulneráveis ainda mais precário.
“A atenção à saúde indígena está ainda mais sucateada. A partir dos dados que levantamos, pretendemos deixar a lição de que, quanto mais complexos os atendimentos são, mais investimentos você precisa para que você não deixe aquela população desassistida”, diz.
“É parecido com populações vivendo em favelas ou comunidades vivendo em áreas de outras áreas remotas. No Brasil, que você precisa de um esforço extra, você precisa de um investimento maior para que todos sejam assistidos pelo sistema.”
Como o estudo foi feito
Para encontrar a taxa de vacinação entre indígenas, o estudo vinculou dados nacionais sobre imunização a registros de sintomáticos e de infecção respiratória aguda grave e estudou um grupo de indígenas vacinados com mais de 5 anos entre 18 de janeiro de 2021 e 1º de março de 2022 – pela data final, o estudo não contabilizou a terceira dose da vacina e nem a imunização de crianças menores.
Usando os dados de 389.753 indígenas elegíveis, as coberturas vacinais gerais foram de 65% e 48,7%, respectivamente, para vacinação parcial ou total (duas doses).
O artigo também fez uma análise sobre a eficácia das vacinas. “Receber duas doses de qualquer uma das três vacinas (Coronavac, AstraZeneca ou Pfizer) foi pelo menos 50% eficaz contra casos sintomáticos de covid-19 confirmados em laboratório e mais de 80% eficaz contra casos graves (ou seja, progressão para UTI e morte)”, aponta o texto.
O artigo está em fase de em fase de preprint, o que significa que ainda não passou pela revisão de pares – quando o estudo é enviado por pesquisadores não envolvidos no artigo para que avaliem sua qualidade e, posteriormente, o conteúdo seja publicado em revista científica.
À reportagem, Julia Pescarini e Andrey Cardoso explicaram que buscam agora publicação em uma revista de grande impacto e principalmente que tenham os dados abertos ao público geral, sem necessidade de pagamento pelo acesso.
“É muito importante que a informação chegue ao maior número de pessoas possível”, avalia Cardoso.
Por: Giulia Granchi
Fonte: BBC News
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