A produção local entrou na programação da Netflix e causa impacto ao retratar, por meio das artes, uma Amazônia urbana, com a história de personagens da periferia de Rio Branco impactados pela violência entre facções criminosas (Foto: José Caminha/SECOM Acre).
São Paulo (SP) – Frequentemente classificado como o primeiro longa-metragem da história do Acre, o filme “Noites Alienígenas” venceu o Festival de Gramado de 2022, adquiriu abrangência nacional, entrou para a programação da Netflix e tem causado impacto mais abrangente que o exclusivamente cinematográfico. Abordando artes plásticas e grafite, poesia e slam, literatura marginal e cultura tradicional indígena, rock, MPB e rap, o filme dirigido por Sérgio de Carvalho se encerra com uma música de alta octanagem chamada “Estrela Cadente”, interpretada por uma voz jovem e andrógina que evoca o legado de Cássia Eller e guarda dentro de si um bocado de história, com implicações culturais, mas também políticas.
Nascido em Araçatuba, mas estabelecido em Rio Branco há duas décadas, Sérgio de Carvalho preocupa-se em retificar a informação enganosa sobre “o primeiro longa-metragem do Acre”: “Sempre corrijo, porque não é. Talvez seja o primeiro filme para salas de cinema, o primeiro que acessou recurso federal, o primeiro de um modelo de produção. Mas aqui a gente tem um cinema que vem desde a década de 1970, que filmou com super 8, depois com VHS, e continua filmando”. A novidade, portanto, não é que o Acre tenha começado a produzir cinema (ou cultura) pela primeira vez, mas sim que pela primeira vez o Brasil vem tomando conhecimento da cultura acreana.
A voz que canta a lancinante balada “Estrela Cadente” é de Pedro Lucas, um cantor e compositor de 21 anos nascido na cidade de Cruzeiro do Sul, um polo de turismo xamânico e o segundo município mais populoso do estado. Tal como “Noites Alienígenas” não é o primeiro longa acreano, tampouco “Estrela Cadente” é um acontecimento propriamente inédito. A canção foi composta e gravada originalmente pelo veterano roqueiro local Pia Vila, comumente classificado como “o Raul Seixas do Acre”.
Na tela de “Noites Alienígenas”, Pia Vila inspira o marcante personagem de Chico Diaz, que vive às voltas com jovens da periferia da capital acreana envolvidos com circunstâncias tipicamente urbanas, da cultura de hip-hop e slam ao abuso de drogas exacerbado pela chegada das facções criminosas nacionais ao Acre. No elenco jovem do filme, brilham o protagonista Gabriel Knoxx, rapper acreano que faz sua estreia como ator; a transexual alagoana Kika Sena (que se estabeleceu em Rio Branco depois das filmagens); a acreana Gleice Damasceno, já conhecida nacionalmente como vencedora do Big Brother Brasil 18; e o ator indígena amazonense Adanilo, já atuando em produções de Netflix, Amazon Prime e Globo.
Pedro Lucas imprime novidade a “Estrela Cadente” cantando-a com lirismo e visceralidade. A gravação se interliga a uma história particular que renderia outro filme, ambientada nos anos de escalada fascista enfrentados pelo Brasil e particularmente pelo Acre, um estado de forte presença bolsonarista, onde o agora novamente presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) derrotou o adversário em apenas quatro municípios.
Em meio à pandemia, em sua primeira saída do isolamento para se divertir na loja de conveniência de um posto de gasolina ao lado de sua casa, Pedro foi vítima de um ataque homofóbico, que lhe roubou a visão do olho esquerdo. Ele e o amigo, também compositor Rômulo Zanon (com quem chegou a formar um grupo batizado de Novos Acreanos), foram atacados com golpes de chave de fenda por um comerciante da cidade que se encontrava em mesa ao lado, onde também estava um oficial da Polícia Militar. “A nossa sorte foi que não era uma faca ou uma chave de fenda fininha. Eu não teria sobrevivido, porque os lugares onde ele golpeou, além do olho, foram o pescoço, a nuca e a costela”, conta o artista. “Essa parte da pálpebra é muito sensível, então a chave de fenda entrou na pele, passou por baixo do globo ocular e foi direto no nervo óptico.”
Pedro Lucas é namorado de Sérgio de Carvalho, que o beijara em público ao passar pela conveniência minutos antes de uma briga se estabelecer por motivo banal – uma porta de banheiro que deveria permanecer aberta ou fechada. Três pessoas estão sendo processadas por conta da agressão, inclusive o dono da loja, por omissão, mas ninguém foi preso.
Depois do ataque, Sérgio e Pedro examinaram as redes sociais do comerciante e encontraram farto material comprometedor. “Tem todo tipo de ódio relacionado a transfobia, homofobia e misoginia, várias piadas sobre Jean Wyllys, Elisa Samudio e Marielle Franco. É um poço de todo tipo de preconceito”, lamenta Pedro. “Fala mal de políticos mais progressistas, mais envolvidos com pautas das maiorias minorizadas. Tem apologia ao nazismo, ao golpe de 1964, tudo de ruim. Ele estava na frente do quartel aqui em Rio Branco, levantando bandeira e pedindo golpe e intervenção”, completa, remetendo aos levantes bolsonaristas pós-eleição de Lula.
A divisão que move a política brasileira é a mesma que move a família de Pedro Lucas: o avô paterno fundou um núcleo da igreja adventista em Rio Branco, enquanto seu irmão, tio-avô de Pedro, criou um núcleo pioneiro de Santo Daime.
Sérgio de Carvalho, de 41 anos, relata um cotidiano povoado por crimes de ódio em Rio Branco: “Nesse período que estou no Acre, pelo menos seis pessoas homossexuais que eu conhecia, próximas ou não, foram assassinadas de maneira muito violenta”. Essa realidade, segundo ele, forçou-o a mudar sua conduta quanto a questões de sexualidade: “Foi na proximidade de uma parada LGBT daqui que entendi a importância de sair do armário, quando um amigo ficou dias desaparecido e foi encontrado morto com sinais horríveis de tortura. Foi a primeira pessoa que conheci que morreu por ser gay”.
O lado luminoso da história é que o cerco fechado não parece intimidar a comunidade cultural de Rio Branco. A resistência acontece em medida equivalente, mesmo que tanto o cantor quanto o cineasta se afirmem limitados pelo medo a partir do ataque. “A gente começa a ver pessoas bem jovens, músicos, atores de teatro, gente de slam, gente que aparece inclusive no filme “Noites Alienígenas”, tentando se posicionar como personagens de cultura e entrando no debate como participantes identitários locais”, avalia a atriz, produtora cultural e educadora Karla Martins, secretária de Cultura do estado entre 2014 e 2018, na gestão do petista Tião Viana.
Nos meses posteriores à agressão, Pedro Lucas passou a usar um tapa-olho, para efeitos artísticos e políticos. “Me ajudou a ressignificar esse caso”, explica. Acabou abandonando-o quando o cantor paulista Jão lançou um álbum chamado “Pirata “, com o mesmo imaginário e o mesmo tapa-olho. O episódio do ataque mudou o curso do álbum que Pedro estava gravando, que se chamaria “Menino Mulher” e inicialmente se dedicaria prioritariamente a reinterpretar compositores do Acre.
Nessa direção, permaneceram no disco, além de “Estrela Cadente”, as releituras de “Falsa Alegria”, de Sérgio Souto, gravada em 1985 pelo gaúcho Nelson Gonçalves, e “Pita na Jaqueira”, de Tony Ruela (conhecido como “o Bob Marley do Acre”). Mas o álbum, rebatizado de “Por um Fio”, terminou dominado por material inédito, composto por Rômulo Zanon (“Por um Fio”, “Bom Conselho”) e pelo próprio Pedro, em “Guerreiros”, inspirada pelo episódio de violência, “Por Quê?” e a antes faixa-título “Menino Mulher”, que encerra o álbum. “Vivemos em trevas/ e o medo se impõe mais profundo no tempo/ tão perverso/ (…) é da dor que nos alimentamos e nos conhecemos/ grandes guerreiros”, canta em “Guerreiros”.
A roupagem musical de “Por um Fio” é invariavelmente moderna, numa mistura dosada e harmônica entre MPB clássica (o pernambucano Alceu Valença e o maranhense Zeca Baleiro são duas referências que ele traz desde a infância), baladas de peito rasgado e música brega dos anos 1970 e 1980 (“a gente trouxe de volta essa coisa do órgão”). Tão próximo e tão distante, o tecnobrega paraense tem pouca entrada no estado, segundo Pedro: “Chega muito fraco. Aqui, predominante mesmo é o sertanejo”. Assim como em grande parte do Brasil central e sulista, a música sertaneja adquire ares de monocultura, tal qual a soja ameaça se tornar frente às florestas do Acre.
Por linhas indiretas, esse é um tema também para “Noites Alienígenas”, como explica o diretor Sérgio de Carvalho: “Aqui na cidade, a gente está muito desconectado da floresta, muito mesmo. Não é pauta falar dessa identidade, o que é uma pena. Por isso o filme fala muito da floresta, sem mostrar a floresta”.
Karla reflete sobre a reentrada do Acre no arco dos estados que mais devastaram a floresta nos últimos quatro anos: “Hoje, politicamente, as pessoas consideram que a floresta em pé é um ultraje. Um projeto de agronegócio se instala e traz uma estética que interfere profundamente na produção cultural”.
Na contracorrente da monocultura, figuram exemplos como o cinema de Sérgio de Carvalho e o festival Pachamama, focalizado na produção cinematográfica de fronteira de Brasil, Bolívia e Peru, ou a música de Pedro Lucas e das jovens cantoras Duda Modesto (também compositora) e Abigail Sunamita. Karla destaca também os festivais culturais promovidos pelas diversas etnias indígenas que habitam território acreano: “Você vive a vida deles durante uma semana, faz todas as brincadeiras, come todas as comidas, toma ayahuasca, toma rapé, experimenta o veneno do sapo”.
O diretor de “Noites Alienígenas” corrobora a centralidade da cultura indígena no cenário presente: “Os povos indígenas são o que a gente tem mais de vanguarda, com sua capacidade de mergulhar no que é muito moderno e contemporâneo, mas sem tirar o pé da sua tradição. Tem uma geração indígena jovem fazendo muita coisa, nos festivais, sozinhos, com o DJ Alok, gravando e fazendo parcerias com DJs, misturando música tradicional com eletrônica”.
Carvalho vê uma movimentação cultural nova não apenas a partir do Acre, mas dos estados amazônicos em geral: “A Lei Paulo Gustavo vai mostrar muita coisa boa dentro aqui do Norte. Essa produção ainda não está tão formatada, tem uma pulsão que vai dar uma refrescada em termos de linguagem”.
Além de citar o legado do artista plástico Hélio Melo (1926-2001), Karla Martins presta tributo a uma sumidade ainda viva da cultura acreana e brasileira, o músico e compositor João Donato, um dos delineadores da bossa nova, hoje com 88 anos. “Adoro dizer que Donato é acreano. Vendo o canoeiro passando no rio, compôs “Lugar Comum”, que primeiro se chamava “Jodel” porque era o nome da filha dele. Com essa música, Donato disse: ’Sou fruto desse lugar, dessa Amazônia’”, afirma, referindo-se ao tema instrumental que circulou o mundo nas asas da bossa e adquiriu apelo nacional ao receber letra idílica de Gilberto Gil, em 1975.
Karla conta que Donato assistiu “Noites Alienígenas”: “Ele relatou dois impactos, o primeiro na musicalidade, com nuanças que ele não conhecia, e o segundo nos lugares retratados no filme, diferentes do Acre da sua infância”. Esse segundo impacto, diz ela, é sentido também por acreanos que não saíram do estado natal. “Me dizem: Esse filme é em Rio Branco, mas nunca vi esses lugares. E eu pergunto: Onde estavam pousados os teus olhos, no teu próprio território, que tu não encarou aquilo que tava aqui do teu lado?”, desfecha.
- Adanilo em cena de Noites Alienígenas
- Adanilo em cena de Noites Alienígenas
- Gabriel Knox nos bastidores de Noites Alienígenas
- Cenas de making off de Noites Alienígenas (Foto: Ramon Aquim)
Fonte: https://amazoniareal.com.br/cultura-do-acre-visivel-com-filme-na-netflix/
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