Por Luis Fernando Novoa Garzon e Neiva Araujo
No mapeamento que segue, se busca sequenciar temporalmente o avanço do desmatamento no Estado de Rondônia em três períodos: de 1988 a 2007 em cor cinza, de 2007 a 2018 em cor vermelha e de 2018 a 2020 em cor rosa. O desmatamento consolidado até 2007 procura delinear o arco do desmatamento nessa região até o início da instalação e implementação dos grandes projetos do PAC – Programa de Aceleração de Crescimento, como as Usinas Hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio no rio Madeira.
A marcação em vermelho demonstra como se alarga o eixo de devastação vertebrado pela BR 364 em direção à fronteira com a Bolívia por meio da ramificação das rodovias 425, 420 e 421. Fica nítido como os empreendimentos hidrelétricos de Jirau e Santo Antônio – e seus alongados reservatórios – potencializaram esse novo raio do arco do desmatamento. Destacam-se ainda investidas depredadoras carreadas pela BR 429 em direção à cidade de Costa Marques que, se integrada a Puerto Uztares, por meio de ponte em fase de projetamento, representará um novo corredor para expansão agropecuária nos dois lados da fronteira.
Em rosa, destacam-se as mais recentes áreas incorporadas sob a égide da discursividade bolsonarista do “vale-tudo” na Amazônia. Na porção norte de Rondônia, observa-se como o novo arco de desmatamento expande-se a partir de três focos: 1) a partir do distrito de Abunã, seguindo a BR 364, sentido Rio Branco no Acre; 2) ao longo da bacia do rio Machado (que deságua no rio Madeira) até o distrito de Demarcação, refletindo expectativas da construção da hidrelétrica de Tabajara e da instalação de novos terminais graneleiros na hidrovia Madeira-Amazonas; e 3) no entorno das rodovias 420 e 421 intensificam-se processos de invasão e desintegração de Territórios Indígenas e Unidades de Conservação.
Percebe-se ainda que existem processos minerários (em fases distintas) em praticamente todos os Territórios Indígenas e em grande parte das Unidades de Conservação (marcadas em quadrículas amarelas e verdes), processos que são acompanhados tanto de desmatamento quanto de garimpo ilegal, que resultam em movimentos coreográficos em frentes distintas e por diversos meios. Os acenos da Presidência da República e do Congresso Nacional às medidas de exploração compulsória de jazidas minerais, onde quer que se encontrem, são o pano de fundo para essas novas incorporações a fórceps. Diante desta política do fato consumado, qual seria o lugar do zoneamento socioeconômico-ecológico vigente no Estado?
Ressalte-se que o ZSEE foi concebido como um instrumento-mor da Política Nacional do Meio Ambiente – PNMA, Lei 6.938/1981, regulamentado pelo Decreto Federal 4.297/2002. A PNMA traz em no artigo 9º um rol de instrumentos de ordenamento territorial entrelaçados em que o estabelecimento de padrões de qualidade ambiental depende de um minucioso zoneamento ambiental, que depende por sua vez da criação de mosaicos de territórios especialmente protegidos, de zonas de amortecimento, e da restrição de atividades potencialmente poluentes, submetidas a avaliações sistemáticas de impacto ambiental e a licenciamentos condicionados.
O decreto regulamentador do zoneamento ressalta sua escora constitucional, explicitada nos artigos 21, inciso IX; 170, inciso VI; 186, inciso II e 225 da Constituição Federal de 1988 e enfatiza sua condição de “instrumento de organização do território a ser obrigatoriamente seguido na implantação de planos, obras e atividades públicas e privadas”. O ZSEE deve ser, portanto, um balizador das decisões dos agentes públicos e privados, de modo que a importância ecológica das localizações e entornos das intervenções e as fragilidades de ecossistemas, inerentes e/ou produzidas, sejam fundamento para vedações de determinadas intervenções ou para a busca de alternativas locacionais compatíveis.
O zoneamento ambiental é um instrumento de gestão territorial de largo espectro que procura proteger ou resguardar bens de domínio público ou de uso comum da população. O seu propósito é impedir que águas, solos e biomas sejam deteriorados e monopolizados por interesses privados. Esse é o sentido público do ZSEE ignorado e deturpado pelo Projeto de Lei Complementar (PLC) 85/2020 apresentado pelo Governo do Estado de Rondônia ao propor nova “aproximação” do zoneamento, aproximação das dinâmicas que negam seus princípios constitutivos.
O dissimulado apelo ao discurso da sustentabilidade não torna menos flagrantes as incongruências e as ilegalidades contidas no projeto de lei. Explica-se: a razão de ser de esferas políticas capturadas e corrompidas por conglomerados econômicos é converter situações de fato em situações de direito. Uma norma de exceção, mais ainda norma empresarial, não define o que seja a legalidade, o que significa dizer que não é porque houve a inclusão de uma norma díspar no ordenamento legal que ela seja válida. Tal observação é necessária para compreender que o Projeto de Lei Complementar 85/2020 busca travestir a ilegalidade de legalidade, burlando o mencionado princípio.
A título de exemplo: no artigo 22 do PLC, é prevista a redução da reserva legal em até 50%, o que contraria o disposto no Decreto Federal 4.297/2002, que estipula a impossibilidade de redução do percentual de reserva legal, definido em dispositivo específico em no mínimo 80%. Da mesma forma, não se pode reduzir, discricionariamente, áreas protegidas (Áreas de Preservação Permanente, Reservas Florestais Legais e Áreas de Uso Restrito), ainda que estas não se enquadrem como Unidades de Conservação. Em síntese, as legislações estadual e municipal podem ampliar a proteção ambiental prevista na legislação federal, jamais encolhê-la.
O artigo 24 do Projeto de Lei Complementar 85/2020 autoriza a exploração de recursos minerais e a construção de obras públicas lineares consideradas de relevante interesse público em qualquer zona do ZSEE, o que inclui a zona 3 que abrange Unidades de Conservação, Territórios Indígenas e Quilombolas. Ainda que haja um grau de flexibilidade admissível na elaboração do zoneamento, não se pode entender a dita flexibilidade como mecanismo capaz de afastar normativas de proteção ambiental e de reconhecimento cultural asseguradas pela Constituição Federal de 1988 e por todo o arcabouço legal vigente. A dita autorização antecipa a exploração mineral compulsória em terras indígenas, sem mais direito de consulta (obrigatória, mas ignorada) e os vetos dos povos originários. E ainda impõe traçados lineares para rodovias, ferrovias ou linhas de transmissão; haja o que houver na frente, haverá desafetação automática, preconiza o malfadado projeto.
O Projeto de Lei Complementar 85/2020 expõe o intento de desalinhar crescentemente o ZSEE de Rondônia do atual regramento jurídico ambiental que: 1) garante a função socioambiental da propriedade; 2) ampara os princípios da prevenção, da precaução e da participação informada; 3) torna operativos os mecanismos do poluidor-pagador, do usuário-pagador do acesso equitativo aos bens naturais.
Estas premissas legais indicam que, quando constatada a incompatibilidade do plano, do programa, do projeto ou da atividade com as diretrizes do zoneamento, não caberá emissão ou renovação de licença ambiental, ficando inviabilizada a iniciativa, seja ela proposta pelo setor público ou por particulares. Assim, pergunta-se: como não emitir a licença e impedir intervenções desastrosas na perspectiva de um ZSEE que – ao invés de proteger o bioma amazônico e os povos que nele e dele vivem – se volta para o rateio de zonas e sub-zonas para impor oficialmente um modelo exploração desmedida?
O Projeto de Lei Complementar 085/2020 prima pela continuidade de um modelo catalizador da destruição da natureza, que em nada contribui para a melhoria da qualidade de vida da população, pior: retira dela margens futuras de opção acerca de modelos alternativos baseados na sociobiodiversidade e na economia do conhecimento. Além disso, o desmanche das normativas ambientais estampado no texto do projeto de lei propicia a continuidade das violações de direitos humanos e a perpetuação de um Estado de Exceção que só faz aprofundar a miséria e a injustiça ambiental na Amazônia. Este desmanche das proteções e das noções elementares de alteridade está calcado no racismo ambiental, que torna admissíveis tanto o bloqueio dos acessos ao meio ambiente quanto o endereçamento posterior dos danos ambientais aos povos expropriados.
O projeto de “desamazonizar” pelas bordas vingou em Rondônia mais do que em qualquer outro estado da Amazônia Legal. Daí o tenebroso significado da terminologia “rondonização”. Entre as elites regionais-transnacionais são constantes os clamores para que se libere a “aptidão natural” dos estados da Amazônia Legal das circunscrições afeitas à região e de seus respectivos fatores “limitantes”, como os limites máximos de reserva legal e a garantia de direitos territoriais de comunidades tradicionais. Depois de décadas de incentivo ao desmatamento, à atividade madeireira, à pecuária extensiva, à grilagem de terras e à monocultura da soja, os patrocinadores do território arrasado não querem mais ser definidos pelo que destruíram. O grande pasto formado no rastro do desmatamento e do extermínio dos povos originários define o ritmo da expansão dos monocultivos de forma “pacífica”. Esse amontoado de túmulos, essa paz dos cemitérios é condição sine qua non para transformar a Amazônia em uma região-cloaca. Um grande corredor de extração e escoamento de matérias-primas avesso a políticas públicas e a qualquer horizonte coletivo.
Se o Projeto de Lei do novo zoneamento ambiental de Rondônia oficializa e premia práticas de devastação e extermínio, cabe seu rechaço in totum pelas instituições de controle e, no caso de sua aprovação provisória formal, cabe de pronto o seu não reconhecimento pelos sujeitos coletivos enraizados nos territórios. Frente a este zoneamento dos negócios predatórios, exige-se um zoneamento guiado por preceitos legais e éticos, ou seja, baseado na busca da sustentabilidade ecológica, na valorização de conhecimentos científicos multidisciplinares e no conhecimento tradicional dos povos originários. Um ZSEE produzido com ampla participação democrática e executado com paridade, transparência, participação e controle social.
Luis Fernando Novoa Garzon é sociólogo, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Rondônia, Campus Porto Velho, Doutor em Planejamento Urbano e Regional. E-mail: l.novoa@unir.br
Neiva Araujo, advogada é professora do Departamento de Direito da Universidade Federal de Rondônia, Doutora em Desenvolvimento Regional & Meio Ambiente. E-mail: neiva.araujo@unir.br
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