Brasília (DF) – Maial Panhpunu Paiakan é um dos importantes nomes da juventude indígena no Brasil. A jovem cresceu na aldeia Aukre, no centro da Terra Indígena Kayapó, no Pará, e aprendeu com o pai, Paulinho Paiakan, a viver em dois mundos. É a primeira bacharel em direito de seu povo e representa diferentes gerações guerreiras de homens e mulheres. O mais velho e mais conhecido é o cacique Raoni Metukire, líder indígena mundial que quer vê-la conquistar uma vaga na Câmara Federal. 

“Apoiem ela e assim me apoiem também”, pede o líder notabilizado internacionalmente pela defesa da Amazônia. O apelo circula em vídeo, na língua materna, com legendas em português. Ele a chama de “minha neta”. Ambos são Kayapó. Ela é do Pará e ele é da TI Kapôt-Jarina, de Mato Grosso.

Aos 34 anos, Maial é candidata a deputada federal pela Rede/PA. O lançamento da candidatura de Maial será em Belém no próximo sábado (30/7) a partir das 18h em Belém, no Rebujo, local de lançamento de eventos artísticos na Cidade Velha.

Logo após a graduação, em 2015, ela trabalhou na Fundação Nacional do Índio (Funai) e depois na Secretaria Especial de Saúde Indígena, como assessora jurídica, em Brasília. Em seguida foi acompanhar projetos legislativos na assessoria da deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR). “Escolhi me filiar ao partido por influência dela, por estar atuando no parlamento e pelo histórico de mobilizações ambientalistas. Enfim, todo o contexto”.

Atualmente ela é mestranda na Universidade Federal do Pará (UFPA), com foco em estudos sobre direitos defendidos por Paulinho Paiakan junto ao movimento indígena no processo da Constituição homologada em 1988. “Ele tem um histórico de luta e é também vítima de criminalização e racismo”, acentua. 

Outra liderança que inspira Maial é Megaron Txucarramãe. Parente do povo Kayapó, da TI Kapôt-Jarina, ele é um dos mais reconhecidos pelas articulações que garantiram os direitos indígenas na legislação do país, há mais de 30 anos. Hoje é aguerrido nos embates contra o governo Bolsonaro e suas alianças no Congresso anti-indígena, que pretendem o saque dos territórios tradicionais, com projetos genocidas, como o Marco Temporal, o PL 490/2007, o PL 191/2020 e o aparelhamento militar da Funai. 

Mas é claro que a “mulher indígena, liderança jovem ativista”, como se identifica, tem vigorosa ancestralidade feminina. A começar pela mãe, Irekran, artista consagrada do grafismo, que pinta e desenha roupas, joias e faz arte em miçangas. “Minha base de mulheres é muito forte. Minhas avós, tias, minha irmã cacica O-é, a tia Tuíra”, lembra, referindo-se à ativista de seu povo que também se tornou referência internacional ao pressionar um facão no rosto do então presidente da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes, em 1989, em protesto contra a construção da hidrelétrica de Kararaô, atual Belo Monte. 

Maial Panhpunu Paiakan revela à Amazônia Real sua história familiar, riquezas do patrimônio cultural de seu povo e fala sobre a formação indígena para empreender lutas coletivas e as principais demandas que pretende levar à Câmara dos Deputados se for eleita. Leia a entrevista que ela concedeu à Amazônia Real:

Maial em foto de Kamikiá Ksedjê

Amazônia Real – Maial, conte-nos sobre a decisão a respeito de sua candidatura a deputada federal.

Maial Panhpunu Paiakan – Desde o ano passado, minha irmã O-é, que é uma jovem mulher cacica, estava neste processo de disputar uma vaga na Câmara, mas acabou tendo um problema de saúde. E eu estou dando continuidade à candidatura, por já ser filiada à Rede. Isso foi consenso entre as lideranças do meu povo. Da minha mãe, da minha família e de alguns apoiadores. Resolvi ser pré-candidata por ser decisão coletiva. Esse é o nosso modo. No momento de sair pra estudar, também é decisão coletiva. A gente sai pra estudar e depois retorna para ajudar nosso povo.

Amazônia Real – E quais são os projetos para a Câmara Federal?

Maial Panhpunu Paiakan – A defesa dos nossos direitos. As questões indígenas perpassam vários campos. Por exemplo, demarcações, saúde, educação, tudo em torno dos direitos fundamentais. Precisamos de educação de qualidade para os povos indígenas. Temos visto a redução de recursos para educação, com cortes graves, e precisamos nos posicionar para reivindicar e não somente para nós indígenas, como para a sociedade em geral. Precisamos de serviços públicos de qualidade que cheguem a toda população, uma luta ampla dos movimentos sociais e dos povos indígenas. A nossa proposta é o direito coletivo e originário, em torno de pautas fundamentais como o meio ambiente equilibrado, sem a destruição do que se fala hoje que é o desenvolvimento. Não queremos desenvolvimento que afete nossos rios. Queremos qualidade de vida, cultura, a nossa forma de bem viver.

Amazônia Real – Especialmente para os povos indígenas, a questão ambiental é fundamental, inclusive para a sobrevivência, não é?

Maial Panhpunu Paiakan – Um ponto fundamental, que considero até o principal, são as mudanças climáticas. Vários povos indígenas estão sentindo as alterações do clima. O planeta está em momento de colapso. Precisamos proteger a terra, a biodiversidade, o ar que respiramos, todo esse sistema. Somos os primeiros afetados pelas alterações climáticas. Hoje já sentimos mudanças nos nossos rios, a diminuição das frutas nas florestas, das plantas, todo esse sistema. Sentimos as mudanças primeiro. Isso é muito grave para as futuras gerações, para as crianças. A alteração do clima traz doenças.

Amazônia Real – Como você vê hoje a participação das mulheres no movimento indígena? Há uma abordagem feminista?

Maial Panhpunu Paiakan – Não discuto o feminismo pelo mesmo viés não-indígena. A luta das mulheres indígenas é muito importante neste momento. Mas se estou hoje aqui é porque minha mãe, avós, tias, estiveram primeiro lutando. Em outro contexto. Pelo fato de eu ter estudo, graduação, é diferente. Mas eu não existiria se não houvesse um passado de luta. Minha tia Tuíra Kayapó lutou em 1989 e luta até hoje contra todos os tipos de destruição das florestas. Quando colocou o facão no rosto do presidente da Eletronorte (José Antônio Muniz Lopes), dizendo não à Kararaô, foi a representação de uma mulher originária, de base, de aldeia, lutando para não acontecer o pior: a destruição de nossas florestas, de nossos rios. Hoje minha mãe está na nossa aldeia, nosso lugar sagrado, protegendo o território contra garimpeiros e invasores, contra todo o sistema que está posto. Temos uma força muito grande de lideranças. Tanto homens como mulheres e jovens nesta luta.

Amazônia Real – Como é sua história familiar?

Maial Panhpunu Paiakan – Minha base de mulheres é muito forte. Minhas avós, tias, minha mãe, principalmente, que é uma mulher que sempre lutou em diversos espaços, na arte, no grafismo indígena. Ela sempre está entre esses dois mundos, comigo e com minhas irmãs, sempre do nosso lado, nos orientando, lutando com a gente. Tenho uma família de mulheres. Somos quatro mulheres. Minha mãe e nós três, irmãs, O-é, Tânia, do meio, e eu, Maial, a mais nova. Vivo na Terra Indígena Kayapó. Recebi meu nome tradicional, especial, na festa Bemp (inidji mej – nome bonito). Meu nome é Panhpunu, que foi transmitido para mim. Esse é o nome da minha tjwá, minha avó paterna, nome dado em homenagem a ela. E é como me apresento para sociedade Kayapó e como me apresento dentro da minha cultura e como me fortaleço como mulher. Assim como muitos de nós, estudei fora da aldeia, cheguei a trabalhar na Funai e Ministério da Saúde, na Sesai, em Brasília. Milito no movimento indígena, daí a necessidade de me aperfeiçoar. Quero ser mais uma a ajudar o nosso povo e não apenas os meus parentes Kayapó.

Amazônia Real – Quais são as terras Kayapó?

Maial Panhpunu Paiakan – Além da TI Kayapó, no Pará existem as Bàdjônkôre, Las-Casas, Baú e Mẽkrãgnotire, essa com parte também em Mato Grosso. No Mato Grosso se localiza a TI Kapôt-Jarina. (Todas homologadas. São aldeias dispersas ao longo do curso superior dos rios Iriri, Bacajá, Fresco e de outros afluentes do Xingu). Eu cresci na TI Kayapó, no sul do Pará. O processo de demarcação iniciou nos anos 1980, mas ela foi  homologada em 25 de maio de 1992. Foi um processo de muita luta do meu pai e lideranças mais velhas. O primeiro encontro dos povos indígenas que aconteceu em Altamira em 1989 foi inicialmente com muita dificuldade com a situação que envolvia Kararaô, os povos atingidos pela hidrelétrica. Foi uma mobilização nunca vista antes. Eu acredito que foi uma mobilização única que aconteceu no Brasil em relação aos povos indígenas, principalmente em relação ao tema hidrelétrico. E fez com que essa barragem se tornasse visível no mundo inteiro. A nossa memória é muito importante pelo fato de relembrar os mais velhos e alguns que já se foram. Durante a Assembleia Nacional Constituinte, o movimento indígena chamou a atenção para a necessidade de demarcação de terras, a gravidade da construção da hidrelétrica e outras mobilizações daquela época.

Amazônia Real – Em junho de 2020 você acabou perdendo sua grande referência familiar.

Maial Panhpunu Paiakan – A pandemia fez o mundo inteiro chorar pela perda de entes queridos e na nossa família foi meu pai. Perdemos essa grande referência no movimento indígena. E principalmente um pai. Por muito tempo eu não consegui analisar direito esse sentimento, detalhar direito. Foi muito rápida a transformação da minha vida, das minhas irmãs e da minha família, as decisões que minha família e meu povo tiveram que tomar. Então, tudo mudou. Apesar da rapidez, fui me adequando de forma lenta a toda a mudança, toda a forma de estar à frente da luta, sem a presença física do meu pai. O vínculo com meu pai é muito grandioso. Não cabe explicar o tamanho da amizade, da cumplicidade, das orientações que a gente tinha um com o outro. Durante toda a sua luta ele sofreu muitas ameaças, muitos ataques e processo de não-indígenas. Acabou partindo sem que a justiça do nosso ponto de vista Kayapó fosse feita.

Amazônia Real – Conte um pouco sobre seu pai.

Maial Panhpunu Paiakan – Meu pai saiu da aldeia muito jovem. Nos relatos dele, na cabeça dele, ele conta que se propôs a ser interlocutor e tradutor de dois mundos, o Mebengokre, que é o mundo Kayapó, e o Kuben, o mundo não-indígena. Dentro disso, meu pai sempre manteve firme a nossa tradição. Nomes, cultura. Nossos nomes são transmitidos de geração a geração. O nome dele era Bepkororoti, que é um dos deuses do panteão Kayapó que desceu do céu com a missão de conduzir o povo e com tal missão é dono dos raios e dos trovões, o que indica o poder de diálogo. Paulinho Paiakan foi dado por missionários e foi com esse nome que percorreu o mundo Kuben. Ficou conhecido nacional e internacionalmente pela excelente oratória (kaben mej – falar bem). Nosso povo tem esse aspecto tradicional, o falar bem, falar claramente, tanto com nosso próprio povo como com o povo de fora. Mais tarde, voltou à aldeia para dialogar com os parentes, apresentando o mundo que precisava ser conhecido e com o qual necessitavam interagir.

Cristina Ávila

Cristina Ávila fez comunicação na PUCRS e iniciou o jornalismo em pequenos diários de Porto Velho, em Rondônia, onde foi atraída por coberturas sobre meio ambiente, questões indígenas e movimentos sociais. Por mais de duas décadas trabalhou em redações de jornais, especialmente no Correio Braziliense. Em Brasília, entre 2009 e 2015 trabalhou no Ministério do Meio Ambiente, responsável por assuntos como mudanças climáticas e políticas públicas relacionadas a desmatamento. Nesse período teve oportunidade de prestar algumas consultorias ao PNUD. Atualmente atua na imprensa alternativa.

Fonte: https://amazoniareal.com.br/a-luta-feminina-kayapo-entre-dois-mundos/

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