A fundação indigenista suspendeu o ingresso em terras indígenas, mas pode autorizar alguns pedidos, o que coloca em dúvida a ação com os índios isolados 


Manaus (AM) – A Fundação Nacional do Índio (Funai) divulgou nesta quarta-feira (18) que suspendeu o ingresso em terras indígenas para evitar a disseminação do novo coronavírus (Covid-19). A portaria foi assinada na terça-feira (17) pelo presidente da Funai, delegado Marcelo Augusto Xavier da Silva, um dia após o Ministério Público Federal instaurar um procedimento para apurar as medidas que o governo federal está implementando junto aos povos indígenas e comunidades tradicionais, que incluem também os ribeirinhos e quilombolas.

Em entrevista exclusiva à Amazônia Real, a coordenadora-geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Francinara Soares Baré, mais conhecida como Nara Baré, classificou a portaria da Funai como “confusa e tendenciosa”, sobretudo no item que se refere à atenção aos povos indígenas isolados.

“A portaria diz que todas as atividades de contato com os isolados estão suspensas, mas também diz que elas podem ser autorizadas se forem justificadas. Ou seja, acaba tendenciando para que o contato [com os isolados] ocorra. Sabemos que as diretrizes da Funai são de proteção, monitoramento e fiscalização justamente para que não haja esse contato. Aí coloca isso na portaria, dando a entender que  Funai quer sim esse objetivo: o contato”, afirmou Nara Baré, que é a primeira mulher a ser coordenadora-geral da Coiab. Ela é originária da Terra Indígena Alto Rio Negro, norte do Amazonas, e graduada em Administração.

O MPF notificou a Funai, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), subordinada ao Ministério da Saúde, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Fundação Palmares, Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas (Susam) e Secretaria de Estado do Meio Ambiente do Amazonas (Sema) depois que a reportagem da Amazônia Real publicou que as organizações indígenas do país estavam tomando, por conta própria, as providências para impedir a disseminação da doença nas aldeias.

Portaria nº 419, de 17 de março de 2020 da Funai chama atenção pela superficialidade e pela incoerência com o regimento interno do próprio órgão indigenista e pela contradição com a política do governo de Jair Bolsonaro para os povos indígenas, segundo as lideranças indígenas ouvidas pela reportagem.

A líder da Coiab também diz que encontrou discrepância no teor da portaria em relação à política indigenista do governo de Jair Bolsonaro. Segundo ela, o plano do presidente da República é “exterminar os povos indígenas”, como se pode ver nas ações em curso nas administrações das Coordenações Regionais e no enfraquecimento das estruturas de fiscalização e monitoramento dos territórios.

“O Peru e a Colômbia fecharam a fronteira. O Brasil não. Mas o acesso é muito fácil para lá. Há trânsito para o território. Soubemos que há casos de coronavírus em Iquitos e Letícia (cidades peruanas). A nossa preocupação é com isso. Uma das bases de índios isolados está com presença da Força Nacional, mas ela não consegue inibir os invasores, seja de madeireiros, caçadores, pescadores… Eles adentram. Aí o governo vem com essas portarias contraditórias, com medidas temporárias, e ainda tendenciando para contato com os isolados”, disse Nara.

“Em todas as Coordenações Regionais houve substituições, principalmente aquelas que têm atuação em territórios com índios isolados. Colocaram militares, que estão ali para cumprir ordens”, completou.


A incerteza sobre as garantias postas na portaria levou alguns povos a preferir retornar às aldeias. Os povos do Parque Nacional do Xingu, no Mato Grosso, decidiram fazer uma quarentena voluntária. Leia aqui.


Plano de Contingência da Sesai

Nara Baré, coordenadora-geral da Coiab (Foto: Apib)

No país, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, atende a uma população de 760.350 indígenas nos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei´s). Na Amazônia Legal, são 25 Dsei’s que dão assistência para uma população de 433.363 pessoas. Até o momento não há registro de casos suspeitos de coronavírus na população indígena brasileira.

Na terça-feira (17), a Sesai divulgou em seu site o Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus (COVID-19) em Povos Indígenas. No documento, Sesai faz um histórico clínico e sanitário dos povos indígenas e lembra da vulnerabilidade deles frente a contágios. No entanto, o teor do documento só chegou ao conhecimento das organizações indígenas nesta quarta-feira (18), e somente agora ele passou a ser pauta de discussão entre suas diretorias, a Funai e os 34 Distritos Sanitários Indígena (Dseis) existentes no país.

Um dos trechos do documento diz que “historicamente, observou-se maior vulnerabilidade biológica dos povos indígenas a viroses, em especial às infecções respiratórias. As epidemias e os elevados índices de mortalidade pelas doenças transmissíveis contribuíram de forma significativa na redução do número de indígenas que vivem no território brasileiro, estimadas em cerca de 5 milhões de pessoas no início do século XVI 1 , e no extermínio de povos inteiros. As doenças do aparelho respiratório ainda continuam sendo a principal causa de mortalidade infantil na população indígena”.

O documento traz uma série de orientações padrões, com recomendações, tais como: vigilância em áreas fronteiriças; traduções para língua indígena de material informativo; garantia de estoque estratégico de insumos laboratoriais para diagnóstico do vírus SARS-COV-2 e de medicamentos para o atendimento de casos suspeitos e confirmados para o novo coronavírus (COVID-19); levantamento de disponibilidade nos hospitais de referência de leitos de internação com isolamento e leitos de UTI com isolamento para casos graves, em específico para indígenas de recente contato, entre outros. No entanto, o plano não oferece mecanismos para que os profissionais de saúde dos Dseis tenham acesso a estas ações.

Na entrevista que concedeu à Amazônia Real, a coordenadora-geral da Coiab, Nara Baré, disse que tomou conhecimento do plano da Sesai nesta quarta-feira (18) e afirmou que fez uma leitura prévia e considerou o documento “controverso”.

“O que já se viu, em linhas gerais, é que ele é muito contraditório. Ele não é direto. Ele é genérico. Não é um plano claro. É igual a tantos outros planos indigenistas que não condizem com a nossa realidade. É o famoso fazer de conta que é para dizer que fazem alguma coisa. Então a nossa recomendação, como organização indígena, é que todas as atividades sejam suspensas, que os parentes proíbam a entrada de pessoas dentro dos territórios para a proteção de nossos povos. A gente sabe que no passado não tão distante o que mais fez ter genocídio dos povos indígenas foram essas doenças infectocontagiosas; então não são brincadeiras”, disse a liderança.

Nara Baré afirmou que os profissionais que atuam junto aos povos indígenas não estão preparados para lidar com este tipo de epidemia, além de também não terem condições profissionais e nem estrutura clínica e até insumos médicos de atenção básica à saúde.

“A Funai por sua vez, com essa deficiência, não consegue fazer uma fiscalização das invasões das terras indígenas, de quem entra nelas. Então, a nossa orientação é que todos fiquem alertas e que qualquer situação que vá contra pela pandemia, que os indígenas nos avisem para nós tomarmos as medidas cabíveis”, afirmou Nara.

Ações por conta própria

Marivelton Baré, presidente da Foirn (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

A Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) anunciou que vai realizar uma reunião nesta quinta-feira (19) para tratar do plano de contingência da Sesai em uma reunião em São Gabriel da Cachoeira, norte do Amazonas.

Ciente sobre a precariedade das ações da Sesai, principalmente em regiões remotas e de difícil acesso da Amazônia, a organização foi uma das primeiras do país a tomar medidas, por conta própria, para impedir o avanço do coronavírus nas aldeias. A Foirn suspendeu o ingresso de pessoas não-indígenas a terras indígenas do Alto Rio Negro, que tem acesso também pela fronteira com a Colômbia e Venezuela.

Antes, a Articulação dos Povos Indígenas (Apib) suspendeu a realização do 16º Acampamento Terra Livre (ATL), evento que reúne todos os anos, no mês de abril, milhares de indígenas de várias etnias, em Brasília, foi adiado por tempo indeterminado.

“A gente vai encaminhar algumas recomendações e fazer uma carta com determinações. Uma das questões será de parar o tráfego fluvial e aéreo e a superlotação de pessoas de fora para aqui para a região. Ficar mais embarcações com gêneros alimentícios e combustível”, explicou o presidente da Foirn, Marivelton Baré, à Amazônia Real.

Segundo ele, as lideranças do Alto Rio Negro estão avaliando uma medida mais eficaz que leve em consideração as especificidades dos territórios. “Por aqui, há muitas dificuldades, sobretudo, do próprio Dsei e ainda mais dos municípios. Hoje (18) já tivemos uma primeira reunião, onde foram sugeridas várias medidas preventivas contra o coronavírus. Serão anunciadas na reunião de amanhã (19) na maloca da Foirn”, afirmou.

O que dizem os órgãos de saúde?

Imagem do Coronavírus capturada e aprimorada de cores no NIAID Integrated Research Facility (IRF) em Fort Detrick, Maryland (Foto: NIAID)

À reportagem da Amazônia Real, a Secretaria Especial de Saúde Indígena informou, por meio de nota, que Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI) darão orientações aos indígenas sobre o coronavírus “língua portuguesa e nos casos necessários, com o auxílio de tradutores indígenas que integram as EMSI nas mais diferentes etnias”. A Sesai também informou que, eventualmente, os Dsei´s poderão imprimir materiais nas línguas das etnias atendidas caso necessário.

Sobre o atendimento a indígenas com diagnóstico confirmado, a secretaria diz que eles serão atendidos nos hospitais da rede referenciada do Sistema Único de Saúde (SUS), inclusive em caso de necessidade de isolamento. O mesmo se aplica à necessidade de diagnóstico.

“As políticas de saúde indígena sempre se pautaram pelo respeito às peculiaridades de cada etnia, mesmo assim, os procedimentos necessários para o bem-estar integral dos indígenas são realizados ou informados à população atendida que tem a autonomia para decidir seguir ou não”, diz o texto sobre o atendimento específico no que diz respeito às peculiaridades interculturais de cada povo.

A assessoria da Sesai também informou que todos os 34 coordenadores de Distritos já estão de posse dos 12 documentos orientadores que integram o Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus (COVID-19) em Povos Indígenas e estão, neste momento, elaborando seus respectivos Planos Distritais de Contingência para repassá-lo aos profissionais das Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena considerando as especificidades locais, de acesso a rede de referência do SUS, de comunicação e atendimento aos indígenas isolados e de recente contato.

“O Ministério da Saúde informa também que não faz parte de seu rol de atribuições a vigilância de fronteiras nem mesmo de acesso a terras indígenas, mesmo assim, atuou de forma coordenada com a Fundação Nacional do Índio (Funai) que já estabeleceu nova e mais restritiva política de acesso a terras indígenas que inclui até mesmo a revisão de autorizações já concedidas pelo órgão, de forma a contribuir na prevenção à infecção e propagação do novo coronavírus no âmbito da Funai”, diz nota da Sesai enviada à Amazônia Real.

A reportagem procurou a assessoria da Funai e enviou questionamentos relativos ao monitoramento e fiscalização de entrada nos territórios indígenas neste período da pandemia do Covid-19, mas o órgão não respondeu até o momento. A Funai também foi questionada sobre o item relativo aos povos isolados que consta na Portaria Nº 419/PRES, de 17 de março de 2020, e o porquê de ter incluído os isolados na decisão. A assessoria limitou-se a repetir o trecho correspondente na portaria e adicionou como “ato justificado” a realização de “atividades essenciais”.

“Consideram-se essenciais as atividades que fundamentem a sobrevivência da comunidade interessada, em especial o atendimento à saúde, a segurança, a entrega de gêneros alimentícios, de medicamentos e combustível”, respondeu a assessoria da Funai.

Em São Gabriel da Cachoeira, povos do rio Negro suspenderam as viagens
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Saiba como são os sintomas do coronavírus

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a contaminação pelo Covid-19 se espalha de maneira semelhante à gripe, pelo ar após a tosse, coriza e a liberação de gotículas de quem está infectado.

Os sintomas são: febre, tosse, coriza e dificuldade para respirar. Procurar uma unidade de saúde é a primeira atitude a tomar neste caso.

O quadro da pessoa infectada com o coronavírus pode se agravar para uma pneumonia, o que exige a internação do paciente.

Pessoas com mais de 50 anos de idade estão mais vulneráveis, principalmente os idosos.

Quem está com o sistema imunológico debilitado e possui doenças crônicas, como as cardiovasculares, diabetes ou infecções pulmonares também pode adoecer gravemente.

Medidas como fazer uma quarentena voluntária em casa tem sido a melhor forma de combater a disseminação da doença no mundo. Leia a cartilha dos povos do Xingu.

 

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/acoes-da-funai-e-da-sesai-para-combater-o-coronavirus-sao-confusas-e-tendenciosas-diz-nara-bare-da-coiab/

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