Belém (PA) –  Com apoio de uma megaoperação integrada da Segurança Pública, a Polícia Militar do Pará reprimiu, na manhã deste domingo (7), a realização do Ato Antirracista e Antifascista pacífico “Vidas Negras Importam”, que iria reunir jovens para protestar justamente contra a violência policial e o genocídio da população, a partir das 9h (horário de Brasília), em Belém. Viaturas e a cavalaria deram apoio para mais de 200 policiais, fortemente armados, que bloquearam o acesso dos participantes ao entorno do Mercado de São Brás, na região central da cidade. A PM diz que deteve 112 pessoas, sendo 96 adultos, e apreendeu 16 adolescentes, “para coibir aglomerações e atos violentos”.

Os jovens foram conduzidos, sem reação, em um ônibus escoltado para a Delegacia da Polícia Civil da Seccional da Cremação. Não foi encontrada arma de fogo com eles, que moram, a maioria, nas periferias da Região Metropolitana de Belém (RMB). A Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Segup) justificou as detenções dizendo que os manifestantes desrespeitaram o decreto no.800/2020, do governador Helder Barbalho (MDB), que proibiu “eventos com aglomerações de mais de dez pessoas nas ruas” devido à pandemia do novo coronavírus. No entanto, shoppings centers de Belém estão funcionamento normalmente.

Em comunicado, a Secretaria da Segurança Pública disse que “deteve pessoas que portavam máscaras de proteção anti-gás, desodorante spray, escudos com símbolos anarquistas, tesoura, isqueiro, canivete, sinalizadores, soro fisiológico, escudos de produção caseira, pólvora e produtos inflamáveis”. Os escudos, que a polícia trata como “arma”, são cartazes de papelão com o símbolo anarquista.

“Armas” de papelão (Foto: PM)

“A operação é um absurdo pelo seguinte: não houve a manifestação. As pessoas estavam chegando à manifestação e a polícia começou a catar as pessoas em pontos de ônibus. Temos relatos de pessoas que foram agredidas também. Foi uma verdadeira operação terrorista praticada pela Polícia Militar. Não faz sentido o governo do estado fazer um procedimento desses com relação aos grupos antifascistas/antirracistas e fazer essas detenções”, reagiu o advogado Marco Apolo Leão Santana, da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), organização que formou uma força tarefa de advogados para libertar os manifestantes.

Até às 17h deste domingo, todas as pessoas detidas já tinham sido liberadas após prestarem depoimentos e assinar um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO). “Foi uma ação seletiva, racista e que merece o nosso repúdio”, afirma o advogado Santana. “Nós sabemos que há aglomerações em vários lugares. O próprio Estado liberou a abertura do comércio. Os shoppings estão todos lotados”, disse.

Ele informou que cerca de dez advogados, de várias instituições de movimentos sociais, estiveram presentes na Seccional da Cremação para dar apoio aos jovens detidos, em sua maioria, negros, moradores de periferias de Belém.

“Eles correram atrás de mim”

Manifestação antirracista em Belém (Foto Cícero Pedrosa Neto
Manifestação antirracista foi reprimida pela PM em Belém
(Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real/07/06/2020)

Uma jovem negra, que foi detida pela polícia, disse à agência Amazônia Real que ainda estava no entorno do Mercado de São Brás quando foi reprimida pela PM. Sem se identificar por temer represálias, contou que dois policiais foram correndo atrás dela e de amigas e deram voz de prisão. “Alegaram que, se estávamos ali, íamos com o grupo todo para delegacia. Disseram que estávamos descumprindo o decreto do governador. Falaram que íamos até a Seccional da Cremação por que era procedimento padrão. E colocaram a gente dentro do micro-ônibus com mais um grupo de cerca de 13 pessoas. Ao chegar na delegacia, também ficamos aglomerados”, afirma.

A reportagem da Amazônia Real recebeu diversas denúncias de jovens negros relatando que policiais os agrediram verbalmente, tiveram os seus celulares vasculhados, sem um mandado de apreensão, foram fotografados e tiveram os seus endereços anotados.

Uma jovem, que também foi detido pela Polícia Militar pela manhã, contou que na delegacia seu depoimento foi modificado. “O meu depoimento continha informações falsas: alegava que eu era estudante de uma escola pública; que estava com material inflamável; que estava com grupos lá em São Brás. Ao comunicar sobre o erro, o escrivão e o delegado retrucaram e disseram que eu estava mentindo. Depois me deixaram esperando, para poder corrigir o documento”, disse ela, que teve apoio de um advogado.

Manifestação antirracista em Belém (Foto Cícero Pedrosa Neto
Manifestação faz ato na porta de delegacia em Belém
(Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)

A mãe de um jovem contou que quando soube da ação da PM no Mercado de São Brás foi para rua atrás do filho, que estava trabalhando e foi confundido com manifestante. “Meu filho me ligou dizendo que estava sendo detido. Ele ajuda a esposa na entrega de roupas que ela vende. Como ela é mãe e precisa se preservar, ele geralmente é quem faz as entregas das mercadorias”, disse.

A ativista Isabel Nery considerou a ação repressora do Estado do Pará “um dia de luto à democracia e liberdade de expressão”. “Eu não tenho tanta melanina na pele, então, quando cheguei aqui, nenhum policial me parou, nenhum policial me intimidou, mas eu vi meninas e meninos negros sendo parados, sendo presos sem fazerem baderna, sem incitarem a violência ou portarem armas”, disse ela explicando o racismo que presenciou na megaoperação do governo.

“Com tudo isso, a gente percebe que, para a polícia as vidas negras não importam e que veio aqui para provocar a violência, a prisão, a repressão à liberdade de expressão. Percebemos que, mais do que nunca, a nossa democracia está em frangalhos. É um dia de sofrimento. Estamos diante de um governo que colocou a censura até mesmo na divulgação dos números de mortes pela Covid-19. Um governo que se recusa a realizar políticas de enfrentamento a esta doença e quando a gente vai às ruas protestar pelos milhares de vidas que estão sendo perdidas, temos os nossos direitos cerceados”, desabafou a ativista Isabel Nery sobre o governo do presidente Jair Bolsonaro.


Nos outros estados, teve repressão em SP

Manifestação antirracismo em Manaus (Foto Amazônia Real)
Manifestação antirracismo em Manaus (Foto: Amazônia Real/07/06/2020)

O Ato Antirracista e Antifascista aconteceu neste domingo no Brasil em várias capitais: além de Belém, São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília (DF) e Manaus, para protestar contra a falta de políticas públicas do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) diante das mortes de jovens negros a cada 23 minutos no país, conforme indica o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado Federal.

As manifestações são também em memória de Marielle Franco, que foi assassinada em 2018 e o crime não foi elucidado até o momento, de George Floyd, asfixiado por um policial branco, em 25 de maio, em Minneapolis, nos Estados Unidos, de João Pedro, 14 anos, morto em 21 de maio em uma ação policial no Complexo do Salgueiro, na cidade de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, e de Miguel Otávio, no dia 6 de junho, que morreu por negligência da patroa de sua mãe, em Recife, Pernambuco.

O ato de movimentos pró-democracia, antifascista e antirracista em São Paulo terminou com repressão da Polícia Militar e 32 pessoas detidas, informou o site Ponte Jornalismo. “Bombas de gás lacrimogênio e tiros de balas de borracha foram disparados para desmobilizar a manifestação na região de Pinheiros, na zona oeste da cidade”.

Em Manaus, a manifestação pacífica aconteceu a partir das 15h30 (16h30 em Brasília) com o tema “Ato Vidas Negras e Indígenas Importam” na Bola do Jorge Teixeira, na zona leste da cidade. Mais de 30 policiais da Polícia Militar monitoraram o ato, que foi pacífico e não registrou incidentes.

“As convocatórias dos atos foram feitas em publicações nas redes sociais e pela circulação de mensagens em aplicativos de conversa. A recomendação é que os participantes usem máscaras de proteção e álcool em gel, como forma de evitar a disseminação da Covid-19. A orientação é que pessoas do grupo de risco não compareçam”, informou o site Alma Preta.


O que diz o governo do Pará?

Manifestação antirracista em Belém (Foto Cícero Pedrosa Neto
Ao fundo, jovens manifestantes detidos na Delegacia Seccional Urbana, em Belém
(Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real/07/06/2020)

O governador Helder Barbalho não se manifestou, ficou em silêncio, sobre as detenções de manifestantes pacíficos do Ato Antirracismo e Antifascista, em Belém. Na parte da tarde, o governo divulgou uma nota em seu site informando que o aparato policial usado teve a coordenação da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Segup) com a integração das polícias Civil e Militar, Departamento de Trânsito (Detran), Centro Integrado de Operações (Ciop), Corpo de Bombeiros, Secretaria Executiva de Mobilidade Urbana (Semob), Grupamento Aéreo de Segurança Pública (Graesp) e Guarda Municipal de Belém. A PM destacou que o Batalhão de Polícia Tática (Bpot), mais conhecido como Rotam, e a Cavalaria, foram as forças repressivas.

O governo disse que sete pessoas foram identificadas como sendo as líderes da manifestação, e que elas foram intimadas e ouvidas. Os 16 adolescentes apreendidos foram apresentados e encaminhados à Divisão de Atendimento ao Adolescente (Data).

Para o governo, a megaoperação não impediu a manifestação antirrascista de acontecer, o que foi contestado pelos jovens. “A manifestação transcorreu normalmente, especialmente para quem respeitou o decreto, mantendo a distância recomendável pelas instituições de saúde, evitando aglomerações e tumulto e fazendo o uso de máscaras”, diz o governo, que incluiu no comunicado uma declaração do secretário de Segurança Pública e Defesa Social, delegado federal Ualame Machado.

“As abordagens foram direcionadas a grupos que estavam munidos de artefatos não permitidos. Foi respeitada a manifestação pacífica, dentro do estabelecido no decreto governamental”, disse ele.

Violência e agressões contra mulheres

Manifestação antirracista em Belém (Foto Cícero Pedrosa Neto
Manifestante contra o racismo protesta em Belém
(Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real/07/06/2020)

Mulheres adultas e jovens, que foram ao Ato Antifascista e Antirracista em Belém, também relataram, sem se identificar, que sofreram agressões verbais de policiais militares e de agentes da segurança pública. “O que vocês estão fazendo por aqui? Vão para as casas de vocês, suas indigentes, suas vadias! ”, contou uma jovem, que estava com as amigas com idades entre 16 e 25 anos e são moradores da periferia da cidade.

“Quando ele me questionou, respondi que eu e minhas amigas estávamos indo lutar por nossos direitos, disse que tínhamos o direito de ir protestar. Ele me ofendeu, dizendo em alto e bom som: ‘vai embora para tua casa, sua puta! ’”, denuncia uma das vítimas.

Uma mulher negra, reconhecida por manifestantes como militante do movimento pró-Bolsonaro, em Belém, começou a filmar de dentro do carro, modelo SUV, da marca Mitsubishi, os participantes do Ato Antifascista e Antirrascista nas imediações do Mercado de São Brás. Do carro, segundo alguns jovens, ela, que não usava máscara, insultou as pessoas. “Ela chamou a gente de ‘absurdo!’ E filmava os presentes. Em nenhum momento, essa mulher foi abordada pelos policiais militares e nem foi orientada sobre o uso da máscara”, disse um jovem.

Veja as fotos da ação policial no Flickr.


  • Manifestação antirracista em Belém (Foto Cícero Pedrosa Neto
    Ato Antirracista e Antifascista pacífico “Vidas Negras Importam” (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
  • Manifestação antirracista em Belém (Foto Cícero Pedrosa Neto
    Ato Antirracista e Antifascista pacífico “Vidas Negras Importam” (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
  • Manifestação antirracista em Belém (Foto Cícero Pedrosa Neto
    Mãos do Coronel (não identificado) que chefiava a operação na no Mercado de São Brás. (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
  • Policiais abordam manifestantes revistando documentos e mochilas. Manifestação antirracista em Belém (Foto Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
  • Manifestação antirracista em Belém (Foto Cícero Pedrosa Neto
    Batalhão de Choque da PM posicionada em frente ao mercado de São Brás (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)

 

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/ato-vidas-negras-importam-e-marcado-por-violacoes-a-jovens-da-periferia-de-belem/

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