“Público achava que ia encontrar o pajé do imaginário da mídia e do folclore”, diz João Paulo Barreto

Manaus (AM) – O Bahserikowi’i – Centro de Medicina Indígena, localizado no Centro de Manaus, completou na quarta-feira, dia 6 de junho, um ano de funcionamento. A programação de aniversário será neste sábado, dia 9, com uma atividade marcada para começar às 9h e encerrada às 22h, com apresentações artísticas, debates, dança e música.

Na parte da manhã, será realizada uma Roda de Conversa intitulada “Medicina Tradicional Indígena: concepções, práticas e contextos”. Às 12h, acontece um almoço intercultural, que inclui alimentos indígena, africano e vegetariano. A programação continua a tarde, às 14h, com o debate “Indígenas e a Antropologia: espaço de diálogo possível”. O encerramento será a partir de 18h, com apresentação de dança do grupo Kariçu e outros músicos convidados (veja ao final a programação completa e endereço). A entrada é franca, mas o almoço será cobrado, no valor de R$ 25 (antecipado) e R$ 30 (na hora).

“Queremos mostrar nessa programação um pouco do trabalho que aconteceu neste um ano no Centro de Medicina Indígena. Falar da nossa experiência, do contato com indígenas e não indígenas e provocar discussões acadêmicas. Nossa proposta não é apenas levar tratamento de saúde, mas articular diferentes saberes e mostrar que há outras formas de conhecimento”, diz o antropólogo João Paulo Barreto, indígena da etnia Tukano e idealizador e coordenador do Centro de Medicina Indígena.

Desde a inauguração em junho de 2017, o Bahserikowi’i – Centro de Medicina Indígena recebeu 1.200 pessoas (a maioria mulheres entre 30 a 55 anos de idade) para tratamento de saúde com os Kumuã (também conhecidos como pajés) que se revezaram no atendimento: Manoel Lima, do povo Tuyuka, da região do Igarapé Açaí, Dorvalino Fernandes, do povo Dessana, da região do Igarapé Cucura, José Maria Barreto e Ovídio Barreto, também da etnia Tukano, ambos da comunidade São Domingos Sávio. As comunidades ficam na Terra Indígena do Alto Rio Negro, região de Pari-Cachoeira, em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, fronteira com a Colômbia.

Para trabalhar no Bahserikowi’i , os Kumãa fazem uma viagem fluvial de quatro dias de suas comunidades até a sede do município de São Gabriel da Cachoeira e mais três dias até Manaus. Atualmente, quem está atendendo os pacientes realizando os Bahsese (benzimentos), com apoio de remédios produzidos por indígenas da etnia Apurinã, é o Kumu Ovídio Barreto.

Ivan Barreto, Manoel Lima e João Paulo Barreto, na inauguração do centro, em 2017 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

O coordenador do Bahserikowi’i, antropólogo João Paulo Barreto diz que um dos desafios é falta de recursos, que impede, por exemplo, custear o transporte dos Kumuã de outras aldeias no Alto Rio Negro e até de outras partes do Amazonas para atender no centro, em Manaus.

“Gostaríamos de trazer outros conhecedores indígenas para Manaus. Bancar seu transporte, seu deslocamento. A ideia é que tivesse circulação desses conhecedores no centro. Mas é preciso pagar a viagem e ainda não temos estrutura financeira”, afirma.

Apesar da falta de Kumuã, Barreto destaca que o número de pessoas atendidas por eles neste 1 ano é considerado elevado, mas também vem carregado de significados.

“Recebemos muita gente nos quatro ou cinco primeiros meses. Depois foi diminuindo. Eram 30 pessoas por dia. Agora, um ano depois, são seis a oito pessoas por dia. Mas são essas pessoas que mostram que o Centro está se consolidando”, diz Barreto, que é filho de Ovídio.

Para Barreto, as pessoas que continuam indo ao Bahserikowi’i  em busca de tratamento alternativo (palavra que ele usa a contragosto na falta de outra mais adequada) são as que têm uma postura diferente de quem chegava nos primeiros meses, em geral com um olhar exotizado sobre a figura do pajé e da medicina indígena.

“O público que frequentou no início vinha com uma ideia de que o pajé pode curar tudo. Naquela hora, naquele momento, como um deus. Esperava encontrá-lo de cocar, de colares, em uma maloca, com aquele imaginário construído pela mídia, pelo folclore, pelas pesquisas. O público vinha com essa lógica. Mas foi um impacto para muita gente com a realidade encontrada. Quando chegavam se deparavam com uma imagem diferente. Um senhor que senta com bermuda, com roupa. Em uma casa histórica, igual às demais da rua. Esse público parou de frequentar”, diz Barreto.

Segundo João Paulo Barreto, muitos tiveram dificuldade de seguir um tratamento de 100 dias, por exemplo, e que incluía a suspensão de consumo de certos alimentos. “A pessoa não aguentava, desistia”.

Barreto conta que permaneceram frequentando o espaço às pessoas que realmente levam a sério o tratamento. Elas, de acordo com o antropólogo Tukano, seguem as rígidas recomendações (entre elas dietas específicas e abstinência sexual) e têm paciência para aguardar o resultado.

“Agora, vem mais aquele público que segue as restrições e obedece regras no tempo necessário para durar o tratamento, conforme sua complexidade. São pessoas que começam a entender que o conhecimento indígena não é este modelo construído por não indígenas”, diz.

Medicina como política pública

Kumu Dophó Manoel Lima atende visitante no Centro de Medicina Indígena (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Quando João Paulo Barreto concretizou a ideia de criar um espaço de atendimento indígena de saúde, ele queria também iniciar um antigo projeto seu de levar o conhecimento dos Kumuã para ser incorporado às políticas públicas de saúde.

Ele conta que uma das prioridades do Bahserikowi’i  é estender o tratamento a outros espaços. Barreto acredita que é possível levar os pajés para as unidades de saúde indígena, especialmente aos pacientes que ficam alojados na Casa de Saúde Indígena (Casai), em Manaus, enquanto aguardam tratamento no Sistema Único de Saúde (SUS).

“Queremos incidir nas políticas públicas, para que elas levem a sério nosso conhecimento. Para que os conhecedores indígenas fiquem no mesmo nível dos profissionais de saúde, aqui em Manaus ou nas aldeias”, disse.

Barreto conta que ele e outros indígenas do Bahserikowi’i  já iniciaram um diálogo com a coordenação do Distrito Sanitário de Saúde Indígena (Dsei) de Manaus a respeito.

“Tudo começou por iniciativa de uma profissional da Casai-Manaus, Danielle Michilles. Ela viu minha palestra na Ufam (Universidade Federal do Amazonas) e sentiu que o que eu estava falando era uma necessidade dos profissionais de saúde indígena entender. Nossa intenção agora é levar os pajés, e não apenas do Centro de Medicina, mas também de outras comunidades e de outras etnias, à Casai”, afirma.

Outra atividade paralela ao atendimento de saúde oferecido no Bahserikowi’i  é o diálogo e intercâmbio que João Paulo Barreto, os Kumuã e os demais indígenas que atuam no espaço mantiveram com profissionais de saúde da medicina ocidental (enfermeiros, médicos, por exemplo) e com pesquisadores de instituições de ensino do Brasil e do exterior.

“Recebemos muitos profissionais. Nossa intenção era que o Bahserikowi’i  fosse também um espaço de diálogo, de troca de conhecimento, e que ele seja conhecido como sendo de alto nível. Queremos que ele seja um incentivador para que outros povos indígenas do Brasil tomem iniciativa semelhante”, conta.

O espaço também foi visitado por lideranças reconhecidas, como Davi Kopenawa Yanomami, e vários indígenas do Alto Rio Negro, região de origem do povo Tukano.

A única objeção que João Paulo Barreto faz é que o Bahserikowi’i – Centro de Medicina Indígena seja visto como um ponto turístico. Ele conta que recebeu visita de funcionários de agências de turismo, que sondaram sobre essa possibilidade, mas sua reação sempre foi negativa.

“O Centro de Medicina Indígena não é para turista ver. Isso já acontece com outros indígenas. Quando o índio entra nessa agenda turística, é sempre tratado como exótico. Não é isso que queremos. O que queremos é dialogar conhecimento de igual para igual”, afirma.

Integrantes do Bahserikowi’i preparam exibição de filme na parte externa do prédio (Foto: Arquivo CMI)

 

 

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