Mulher tuxaua e pajé, Zelinda da Silva Freitas fundou uma comunidade indígena matrilinear dos Sateré-Mawé (Foto de Dona Baku, em 05 de agosto de 2015, cedida por Jimmy Duarte)

Manaus (AM) – Nesta segunda-feira (30) acabaram os oito dias de luto da comunidade Sahu-Apé, pela morte da tuxaua e pajé Baku Sateré-Mawé, que em português chama-se Zelinda da Silva Freitas. Ela morreu aos 65 anos no último domingo (22) na aldeia que fundou à margem do rio Ariaú, afluente do rio Negro, município de Iranduba, distante 80 quilômetros de Manaus, no Amazonas. Quem assumirá a função de tuxaua da aldeia será sua filha, Midian da Silva Freitas, de 36 anos.

Matriarca, professora e parteira, Baku foi pioneira no protagonismo feminino no movimento indígena da Amazônia brasileira, com vigoroso papel desempenhado na criação de uma aldeia fora de seu território original, uma iniciativa pouco comum décadas atrás, sobretudo em um espaço urbano.

Ela nasceu na aldeia Ponta Alegre, na Terra Indígena Andirá Marau, no Baixo Rio Amazonas, divisa do Amazonas com Pará. Órfã de pai, aos 19 anos veio com a mãe, Tereza Ferreira de Souza, e as sete irmãs e um irmão para Manaus. Pouco anos depois, casou-se com Benedito Freitas, também do povo Sateré-Mawé, com quem teve seis filhos – quatro homens e duas mulheres.

No período de luto pela sua morte, as 14 famílias – formadas por filhos, genros, noras, netos e bisnetos da matriarca – não saíram da aldeia Sahu-Apé. No dia do velório, domingo, e no enterro, na segunda-feira, a comunidade recebeu muitos parentes vindos de comunidades vizinhas e lideranças indígenas conhecidas do Amazonas. A reportagem da Amazônia Real acompanhou a cerimônia fúnebre de Baku.

Agora começa um novo momento na comunidade Sahu-Apé. Apesar da tristeza, todos sabem as tarefas que desempenharão. “Vamos continuar agora, sem ela. Mas minha mãe deixou tudo organizado, no seu devido lugar. Ela orientou todos”, conta um dos filhos de Baku, João Freitas da Silva, 44 anos, professor da comunidade.

João diz que a mãe estava hospitalizada no Hospital e Pronto-Socorro 28 de Agosto. Vislumbrando que seu tempo estava esgotando, pediu para ir para casa. “Ela disse que não queria morrer no hospital”, afirma João.

Baku faleceu exatamente à meia-noite de domingo (22), ao lado do filho Ismael, o Sahu, conforme disse Benedito, de 69 anos.

Dona Baku (Foto: Sahu-Apé)

Além de aconselhar um por um da sua comunidade, a tuxaua teve tempo para designar os papéis das próximas lideranças de Sahu-Apé. A linhagem feminina vai permanecer. A filha Midian será a tuxaua. Sahu, de 37 anos, terá a missão da cura. Há algum tempo ele já vinha substituindo Baku no manuseio das plantas, no preparo dos remédios e nas conversas com os espíritos da floresta para assumir a função de pajé da comunidade.

Já João diz que “será sempre o professor de Sahu-Apé”. Tanto Midian quanto Sahu, muito emocionados, não deram entrevista à reportagem. Os outros filhos são Lucemir, Mizael e Luciane.

Baku foi enterrada na própria comunidade. O caixão foi colocado ao lado do corpo de sua mãe Tereza, que morreu aos 97 anos, em 2013. As familías dançaram e cantaram canções em sateré-mawé, muitas delas entoadas durante os rituais da Tucandeira que acontecem regularmente em Sahu-Apé. Um grupo de pessoas de uma Igreja Adventista, na qual Baku frequentava junto com sua família, também esteve no velório, cantando canções religiosas cristãs. Um pastor deu a bênção.

Indagado sobre esse curioso sincretismo, João disse que isso nunca atrapalhou a prática da pajelança de Baku e a presença de uma religião ocidental no ambiente da comunidade não impede que outras crenças sejam praticadas.

Protagonismo feminino

Dona Baku (Foto: Alex Chimango)

Baku fazia parte de uma família quase exclusivamente feminina. Eram sete irmãs e um homem: Leilina, Zebina (falecida), Zelinda (Baku, falecida), Zenilda (falecida), Zilma, Zorma, Zeila (Kutera, falecida) e Zaquel (falecido).

Zenilda fundou em 1996 uma das primeiras organizações indígenas de mulheres do Brasil, a Associação de Mulheres Indígenas Sateré-Mawé (Amism), hoje coordenada por sua filha, Regina Vilácio. Zenilda morreu em 2007. Outra irmã, Zeila, a Kutera, também já falecida, fundou a aldeia Inhambé, no rio Tarumã, em Manaus.

“Minha mãe e a tia Baku eram muito próximas. Elas foram heroínas do movimento indígena. Depois que minha mãe morreu, a tia Baku me apoiou bastante para continuar com a Amism, queria que eu levasse à frente. É como se eu tivesse perdido a minha segunda mãe”, disse Regina.

João Freitas da Silva diz que a mãe “sempre teve passos além dos outros” e lutou com perseverança, mesmo sofrendo preconceito e racismo nos seus primeiros anos em Manaus, ainda jovem.

“Sempre trabalhou não para ela, mas para os filhos, netos e bisnetos. Nunca pensou em acumular riqueza material. Não queria que acontecesse com os netos o que aconteceu com ela quando chegou a Manaus. Passando por preconceito, discriminação, em ter que ir praticamente para o lixão e depender de outras pessoas”, diz João.

Sahu-Apé (que na língua sateré-mawé significa Casa do Tatu) foi criada em 1996. Benedito, marido de Baku, fazia alguns serviços para turistas no extinto Hotel de Selva Ariaú. A família decidiu então morar numa área à margem do rio. João conta que o terreno foi doado pela prefeitura de Iranduba, mas durante muitos anos as ameaças de desapropriação foram frequentes. Também sofreram muita pressão de moradores ao redor, junto com manifestações de racismo.

“Quando chegamos, o corpo docente de Iranduba nos negava matrícula para as crianças da aldeia. Mas agora são outras pessoas, outras mentalidades. Tiramos a venda deles. Isso também é conquista da Baku, que lecionou durante 12 anos aqui. Ela é a única aposentada com título de professora sem nunca ter tido educação formal. Foi contratada como professora de língua sateré-mawé e abriu prerrogativa para que outros indígenas também fossem contratados como professores”, disse.

No início, as famílias sobreviveram com visitas de turistas e venda de artesanato. Com o fechamento do Hotel Ariaú, desenvolveram outras formas de sustentabilidade.

“Estamos sobrevivendo de turismo educacional, de etnoturismo. Recebemos grupo de visitantes de Manaus e de outras cidades. Há muitos vídeos sobre a comunidade no youtube. As pessoas assistem e entram em contato para visitar. Vendemos artesanato e também cobramos uma taxa de 10 reais”, diz João.

Junto com o artesanato, os turistas também procuravam Baku para consultas e tratamentos de saúde física e espiritual.

Uma comunidade matrilinear

Cerimônia fúnebre de Dona Baku (Foto: Alex Chimango)

Outro relevante papel desempenhado por Baku e sua comunidade foi incentivar o interesse acadêmico. Sua importante figura como liderança feminina, atraiu muitos pesquisadores de universidades. A antropóloga Kalinda Félix de Sousa foi uma dessas pesquisadoras.

Ela conta que tudo começou em 2006, quando fazia pesquisa para graduação de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) sobre plantas medicinais. Kalinda diz que aprofundou a relação acadêmica – e também pessoal – com Baku em seu mestrado em Antropologia sobre xamãs e pajés.

“Depois de 2011, quando finalizei a pesquisa do mestrado, pude continuar uma relação com a comunidade, sempre visitando, participando dos rituais da tucandeira, para saber o que se passava”, conta Kalinda.

Segundo a antropóloga, Baku, sua mãe e suas irmãs se viram obrigadas a migrar para Manaus com a morte do pai. “Em Manaus, elas enfrentaram muitas dificuldades. A começar pela língua, elas possuem pouca fluência. A Baku contava que, como empregada doméstica, as patroas a humilhavam porque ela não sabia lidar com os utensílios domésticos das casas da cidade. Os modos de preparar os alimentos era outra barreira que ela enfrentou. Mas ela nunca desistiu”, relata.

Conforme Kalinda, anos depois, já casada, a construção de Sahu-Apé foi um trabalho “árduo e persistente”.

“Muitas vezes ela se preocupava muito mais com a saúde de quem a procurava. Ela ouvia e curava as dores de quem quer que fosse. Foi conselheira, não apenas de sua família, mas de muitas pessoas que a buscavam para receber palavras de conforto. Ela também foi parteira, ajudou a trazer muitos netos e bisnetos. Ajudou muitas grávidas. Atendia expectativas de mulheres que desejavam filho. Pude ouvir isto durante o funeral. Aos prantos muitas famílias agradeceram as dádivas da Baku”, diz Kalinda.

“Espero que os filhos, netos e bisnetos, nunca esqueçam de seus atos, palavras e ações. E possam dar continuidade à sua luta”, finalizou.

O pesquisador e professor Glademir Sales de Souza durante muitos anos desenvolveu estudos em comunidades indígenas localizadas em Manaus. Ele era pesquisador Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), e manteve uma relação próxima com Baku e os moradores de Sahu-Apé. Também realizou oficinas de mapas sobre os ancestrais da família de Baku.

“A morte da Baku representa uma perda não apenas para o povo Sateré-Mawé, mas para o movimento indígena, sobretudo da cidade”, diz.

Glademir define o grupo de mulheres Sateré-Mawé da qual Baku fazia parte junto com sua mãe e irmãs como “subversivo”, pela coragem de sair da terra natal e trazer para a capital amazonense a linguagem de seu povo e uma cultura diferente.

“Essa linguagem passa também pela autoestima dessas mulheres. Elas são capazes de revelar o sentimento de pertencimento de um povo na cidade. E essa característica de subversão passa por esse fato. A morte do seu Abdão (pai de Baku) na família dissolve uma estrutura patrilinear e na cidade vão acontecer essas formas organizativas com outras características, que é uma estrutura matrilinear”, diz Glademir.

Segundo o pesquisador, Baku ficou marcada por um discurso que enfatizava que, mesmo na cidade e no ambiente urbano, se dava ao direito de viver de modo diferente.

“Ela deixa essa história registrada e essa lição. Que é uma linguagem sateré-mawé, assim como outros grupos trazem a língua tikuna, a língua kokama, e formas de vida na cidade dessas formas diferenciadas dos povos da Amazônia presente em Manaus. A Baku apresentou para nós uma forma singela, acolhedora, participativa, na aldeia. Quero solicitar desse espírito da Zelinda que ela derrame suas benção para que possamos caminhar com essa força de sermos cada vez mais aliados nas lutas, nas resistências, na forma de lutar pelos seus direitos”, diz Glademir.

Cerimônia fúnebre de Dona Baku (Foto: Elaíze Farias/Amazônia Real)

Fonte: http://amazoniareal.com.br/baku-e-seu-protagonismo-feminino-no-movimento-indigena/

Thank you for your upload