Rio Branco (AC) – Um dia após a tropa de choque reprimir de forma violenta a manifestação dos povos indígenas no Congresso Nacional, o governo Jair Bolsonaro (sem partido) usou de sua ampla maioria na Câmara dos Deputados para aprovar, por 40 votos a 21, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) , o texto-base do projeto de lei (PL 490) que muda as regras da demarcação de terras indígenas e abre caminho para legalizar o garimpo dentro dos territórios.
Tramitando há 14 anos no Congresso, o PL 490 é uma das principais bandeiras do presidente Jair Bolsonaro, que nunca escondeu ser contra a demarcação de terras indígenas, e defende a exploração econômica por parte de não indígenas nos territórios, como o agronegócio e a mineração.
A deputada Joenia Wapichana (REDE-RR), única parlamentar indígena no Congresso Nacional, foi a principal porta-voz pelo arquivamento do PL 490. Durante suas intervenções, ela chegou a ser interrompida diversas vezes pela presidente da CCJ, deputada Bia Kicis (PSL-DF), e foi alvo de comentários preconceituosos de outros parlamentares. Bia Kicis se retirou justamente durante a leitura de uma carta de juristas, feita por Joenia, recomendando que os parlamentares aguardassem para não tomarem nenhuma decisão antes do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), do princípio do marco temporal, marcado para o próximo dia 30.
“A questão indígena ainda é muito desconhecida no Congresso e o desrespeito é muito grande. Infelizmente somos minoria. Foi numa diferença muito grande (na votação). Vai ser uma luta muito difícil, mas a gente não perde a esperança. A gente já resiste há mais de 521 anos”, disse a deputada Joenia Wapichana em vídeo divulgado no início da noite desta quarta-feira.
A votação na CCJ aconteceu depois de uma longa sessão que começou às 9 da manhã e acabou perto das 18h. O clima foi de muita discussão e bate-boca entre deputados governistas e opositores. Apesar de o governo ter a maioria das cadeiras, a oposição dominou a maior parte dos debates, apontando a inconstitucionalidade do PL 490. Desde o começo já estava declarado que, caso a matéria fosse aprovada, recursos seriam impetrados junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) para pedir a sua inconstitucionalidade.
Para os oposicionistas, por tratar da atividade de mineração em terras indígenas – tema regulamentado pela Constituição de 1988, que a veta – tal alteração só deveria ocorrer por meio de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC). Por conta disso, os parlamentares avaliam que o STF tornará sem valor a proposta, caso seja sancionada pelo presidente da República.
Outra crítica bastante recorrida pela oposição foi o fato de a CCJ não ter dado a oportunidade para os movimentos indígenas se posicionarem sobre o projeto. Segundo os deputados, não houve a realização de audiências públicas com as partes afetadas. Bia Kicis alegou questões de restrições sanitárias adotadas pela presidência da Câmara, por conta da pandemia da Covid-19, para não ter ocorrido audiências.
“Um projeto desse jamais poderia ter sido aprovado sem consultar os interessados, sem ouvir os atingidos. Não foi feita uma audiência pública. Isso é algo nunca visto na história da Câmara dos Deputados. É a primeira vez que isso acontece”, disse a deputada federal Perpétua Almeida (PCdoB-AC) à Amazônia Real após a sessão da CCJ.
“Essa aprovação foi um retrocesso histórico nos direitos dos povos indígenas, e uma quebra da Constituição. Como se faz uma mudança na Constituição por meio de um projeto de lei?”, indagou ela.
Para o deputado Léo de Brito (PT-AC), a aprovação do PL é uma “aberração jurídica para massacrar os povos indígenas”. Líder da Minoria na Câmara, José Guimarães (PT-CE) afirmou que recursos para anular a validade do PL serão movidos no STF.
Projeto inconstitucional
A Polícia Militar do Distrito Federal e indígenas entraram em confronto ontem, 22 de junho de 2021, em frente à Câmara (Foto: Dida Sampaio/Estadão Conteúdo)
No centro das atenções do debate por ser a única parlamentar indígena no Congresso Nacional, Joenia Wapichana recorreu a todos os instrumentos regimentais – como pedidos de requerimento e obstruções – para retirar de pauta ou adiar a votação do PL 490 na CCJ. Um dos pontos mais recorridos por ela foi a não consulta prévia aos povos indígenas.
Ele fez questão de destacar a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, e determina essa consulta às comunidades afetadas. As tentativas da parlamentar foram frustradas pela tropa bolsonarista.
“Esse relatório [favorável ao PL 490] é totalmente inconstitucional, e a pena quem vai pagar são os povos indígenas, que vão ter seus direitos retalhados. Esperamos que o Supremo derrube esse projeto”, afirmou Joenia antes da proposta ser votada.
Ao fazer uso de sua ampla maioria e de outras medidas regimentais para acelerar a tramitação do PL, os opositores disseram que o governo Jair Bolsonaro fez “passar a boiada” e o “tratoraço” no processo de votação. Entre os recursos está a apresentação de requerimento para encurtar o tempo de discussões entre os deputados antes da votação. A estratégia da oposição era esgotar ao máximo o tempo de fala para adiar a votação.
A proposta era esperar que o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), abrisse a sessão no plenário, o que obrigaria a deputada Bia Kicis a encerrar os trabalhos da CCJ. Quase que numa manobra orquestrada, até a sessão do plenário foi atrasada. Recorrendo à maioria, os governistas aprovaram o requerimento que antecipou o fim dos debates. Dos 27 inscritos, apenas 10 falaram.
Logo em seguida, o PL 490 foi colocado em apreciação, recebendo 40 votos favoráveis e 21 contrários. Nos bastidores, o movimento indígena fazia tratativas para conseguir votos necessários para uma reviravolta. Segundo Toya Manchineri, assessor político da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), o objetivo era conquistar o voto de pelo menos oito parlamentares mais simpáticos às questões ambientais e indígenas; contudo, o tratoraço bolsonarista também prevaleceu.
A CCJ votará nesta quinta-feira (24), os chamados destaques ao PL 490, ou emendas. De acordo com a oposição, a proposta é apresentar o máximo de emendas possíveis para “desconfigurar” a originalidade do texto-base. “A intenção é apresentar o máximo de proposta que realmente retire as partes que são ruins para os povos indígenas em relação à demarcação sendo feita pelo Congresso e usufruto exclusivo das terras indígenas”, diz Toya Manchineri, assessor político da Coiab.
Em seguida à votação dos destaques, o PL é enviado para o plenário, onde o governo também tem maioria. Tão logo seja aprovada pela Câmara, a tramitação segue para o Senado Federal. Caberá ao presidente Rodrigo Pacheco (DEM-MG) enviar diretamente ao plenário da Casa ou passar pela CCJ. Se houver alterações no Senado, a matéria retorna para uma nova votação pela Câmara.
Somente após isso, o projeto segue para a sanção presidencial, quando passa a ter valor de lei. É a partir daí que o STF poderá ser acionado por meio das ações diretas de inconstitucionalidade. Além da oposição, Coiab e Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) já se articulam para a batalha no campo do Judiciário.
A Apib divulgou nota enfatizando a inconstitucionalidade do PL e confirmou que o Acampamento Levante pela Terra, iniciado no início deste mês, com a presença de mais de 800 indígenas, vai continuar (saiba mais)
A Coiab também se manifestou dizendo estar com “a mais profunda indignação” contra a aprovação do PL. “Uma proposta completamente inconstitucional, sem consulta com as populações indígenas afetadas, e que tem como objetivo inviabilizar as demarcações, e permitir a anulação das Terras Indígenas, abrindo nossos territórios aos madeireiros e garimpeiros ilegais e aos grandes empreendimentos”, disse trecho da nota da Coiab .
Na mira bolsonarista
A deputada Joenia Wapichana durante coletiva após votação da CCJ
((Foto :Pablo Valadares/Agência Câmara)
Presente à sessão do começo até o último minuto, Joenia Wapichana foi o alvo preferido da artilharia bolsonarista, sendo alvo até de comentários racistas. Representante do governo Bolsonaro na CCJ, o deputado José Medeiros (Podemos-MT) chegou a afirmar que a parlamentar não era uma legítima representante dos povos indígenas..
A declaração causou revolta entre os parlamentares e entre os povos indígenas. Na velha retórica da bancada ruralista, Medeiros também disse que os indígenas presentes nos protestos em Brasília representam uma pequena minoria e que são financiados por ONGs e partidos de esquerda. Segundo ele, a grande maioria é a favor de projetos como o PL 490 por lhes dar “liberdade para produzir dentro de seus próprios territórios”.
A tropa governista também tentou criminalizar os indígenas após serem atacados pela polícia na terça. Eles usaram o caso de um dos seguranças da Casa, atingido por uma flecha na perna, para afirmarem que houve uma tentativa de invasão do prédio da Câmara e contra a vida dos policiais.
Pelos corredores da Câmara e diante de Joenia Wapichana, a bolsonarista Carla Zambelli (PSL-SP) chamou de “índios assassinos” os manifestantes atacados pela tropa de choque da PM. Joenia afirmou que representará contra Zambelli no Conselho de Ética.
Mineração liberada
Imagens aereas de garimpo na região do médio rio Tapajós, no Pará (Foto Fiocruz)
Pelo texto-base aprovado pela CCJ, o processo de demarcação de terras indígenas deixa de ser uma atribuição do poder Executivo, e passa para o Congresso Nacional. O PL incorporou o conceito de marco temporal para definir uma demarcação. O marco temporal define que caso os indígenas não estivessem morando num território reivindicado na data de promulgação da Constituição – em 5 de outubro de 1988 – eles não têm direito à demarcação.
O PL 490 veta o aumento de áreas de TIs já demarcadas. Os processos de demarcação de novos territórios em tramitação e não finalizados deverão se adaptar às regras do projeto. Outro ponto sensível é o que retira dos povos indígenas o usufruto exclusivo de recursos naturais dentro de seus territórios. Entre estes recursos está o mais cobiçado pela bancada bolsonarista: os minerais.
Pela matéria aprovada, o usufruto exclusivo por parte dos indígenas não abrange a garimpagem nem a faiscação, “devendo, se for o caso, ser obtida a permissão da lavra garimpeira”. Em outros termos, a eventual sanção do PL 490 representará um liberou-geral do garimpo dentro das terras dos povos indígenas.
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