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“Nossa floresta [amazônica] é úmida e não permite a propagação do fogo em seu interior. Os incêndios acontecem praticamente nos mesmos lugares, no entorno leste da floresta, onde o caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas”.

Quem tivesse a coragem (o cinismo, ou a ignorância) de proferir essa frase seria desmentido e ridicularizado, qualquer que fosse o auditório, desde que minimamente informado sobre a Amazônia.

A frase foi dita nesta terça-feira (22) pelo ex-capitão do exército Jair Messias Bolsonaro, 65 anos. Bolsonaro preside o maior dentre os nove países que possuem área amazônica no continente sul-americano,o Brasil, onde ficam dois terços do total dessa região, ocupando 65% do seu vasto território. Ela tem 7,9 milhões de quilômetros quadrados, representando 5% da superfície terrestre, com 30% das florestas tropicais remanescente na Terra.

Em qualquer encontro científico, independentemente da sua coloração ideológica ou política, o responsável por essa afirmativa seria tratado como impostor, vigarista, esquizofrênico, psicopata ou qualquer outro enquadramento técnico das manifestações de perturbação mental. Qual terá sido a reação dos integrantes da Organização das Nações Unidas depois de assistirem ao vídeo que abriu, nesta manhã, com a péssima leitura de um texto alucinado, a sessão solene inaugural da ONU, na data dos seus 75 anos?

O discurso de Bolsonaro é um disparate na reconstituição geográfica, histórica e conjuntural da Amazônia, lastreada na famosa frase do ideólogo nazista da comunicação governamental totalitária, Joseph Goebbels, de que uma mentira, repetida mil vezes, se transforma em verdade. Bolsonaro mentiu à vontade, sem qualquer compromisso com os fatos. Disse o que lhe interessava. O resto foi o resto – o povo brasileiro e a humanidade.

“Nossa floresta [amazônica] é úmida e não permite a propagação do fogo em seu interior”.

Dita meio século atrás, a declaração teria foros de verdade. Hoje, é uma falácia grosseira. Tomando-se o dado citado por Bolsonaro, de que 34% da cobertura florestal nativa da Amazônia foram destruídos e considerado como referência apenas o bioma amazônico, com 4,2 milhões de quilômetros quadrados, a supressão da floresta já teria atingido mais de 1,5 milhões de km2. Assim, só o que já foi destruído da floresta original da Amazônia formaria o 10º mais extenso país do mundo.

Queimada ou derrubada a floresta nativa e em seu lugar formados pastos, culturas agrícolas ou deixado um espaço vago, a elevação da temperatura do solo, combinada com a redução das chuvas, muda completamente o cenário, permitindo a combustão da vegetação secundária, desprovida da sua proteção natural na mata úmida. Há muitas pesqusias sobre essa transformação ameaçadora.

“Os incêndios acontecem praticamente nos mesmos lugares, no entorno leste da floresta, onde o caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas”.

Quando a ditadura militar promoveu, a toque de tambor acelerado, a ofensiva às terras interiores e altas da Amazônia, na década de 1970, a alteração da cobertura vegetal não chegava a 1% (0,8%), segundo interpretações pioneiras de imagens de satélite de 1975, feitas por um convênio da Sudam com o IBDF (atual Ibama). Essa era a contribuição de milhões de habitantes nativos que se sucederam por milênios na Amazônia antes do aparecimento dos terríveis colonizadores europeus e do habitante que resultou da miscigenação que se seguiu ao longo de 500 anos.

A área alterada, portanto, teria pouco mais de 15 mil km2. Ou seja: o equivalente a um único ano de desmatamento médio durante pouco mais de três décadas de acompanhamento sistemático das imagens de satélite pelo Inpe, órgão oficial do governo federal para o assunto, reconhecido internacionalmente pela sua excelência (embora sabotado por Bolsonaro). Ou seja: o presidente da república coloca na conta de índios e caboclos 135 mil km2 de destruição de floresta úmida amazônica, atribuindo aos seus minifúndios e roças rotativas a destruição de máquinas poderosas e homens inescrupulosos do capitalismo mais selvagem que já dilapidaram o patrimônio da Terra.

É fraude. Mais do que fraude: é um crime de lesa humanidade. É a conclusão a que devem ter chegado milhões de pessoas ao redor do mundo no dia de hoje.


A foto que ilustra este artigo, mostra o presidente Jair Bolsonaro em Sorriso, MT no dia 18/09/2020 durante a cerimônia do início do plantio de soja. (Foto: Júlio Nascimento/PR)


Além de colaborar com a agência Amazônia Real, Lúcio Flávio Pinto mantém quatro blogs, que podem ser consultados gratuitamente nos seguintes endereços:

lucioflaviopinto.wordpress.com – acompanhamento sintonizado no dia a dia.

valeqvale.wordpress.com – inteiramente dedicado à maior mineradora do país, dona de Carajás, a maior província mineral do mundo.

amazoniahj.wordpress.com – uma enciclopédia da Amazônia contemporânea, já com centenas de verbetes, num banco de dados único, sem igual.

cabanagem180.wordpress.com – documentos e análises sobre a maior rebelião popular da história do Brasil.


Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com.

Fonte: https://amazoniareal.com.br/bolsonaro-o-mentiroso/

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