Lucas Ferrante, Mércio Pereira Gomes e Philip Martin Fearnside


Observamos que o Brasil tem uma longa história de ter muitas leis e decretos que, na prática, não são cumpridos – uma tradição que remonta ao início da história do Brasil como uma colônia portuguesa há 500 anos [1].

No caso da consulta legalmente exigida aos povos indígenas, a lei foi repetidamente ignorada e os esforços do Ministério Público Federal para garantir o cumprimento falharam. As barragens de Belo Monte e São Manoel permanecem como monumentos concretos para esse fracasso [2-4]. O caso BR-319 é um teste atual do sistema jurídico do país, com implicações abrangentes, não apenas por causa dos impactos extraordinariamente graves deste projeto de rodovia, mas também por causa dos muitos impactos das futuras rodovias, barragens e outros desenvolvimentos da Amazônia.

A consulta sob a Convenção 169 da OIT deve fornecer “consentimento livre, prévio e informado”. O requisito “prévio” refere-se à consulta e ao consentimento resultante que ocorre antes da decisão de construir um projeto de infraestrutura, e o consentimento dos povos afetados deve fazer parte da decisão sobre a existência do próprio projeto, não apenas uma adição de requisitos para medidas de mitigação. Em outras palavras, os povos afetados têm o direito de dizer “não” (por exemplo, [5].

Os planos do DNIT para que a consulta prossiga nos próximos três anos, apenas para serem finalizados antes da inauguração da rodovia concluída, não representam consentimento prévio. O requisito “informado” significa que cada consulta deve ser feita no próprio idioma da comunidade, de acordo com um protocolo desenvolvido pela comunidade.

Embora consultas deste tipo ainda não tenham sido realizadas, um protocolo para consulta foi desenvolvido no caso de uma proposta mina de potássio localizada a menos de 150 km da Rodovia BR-319 [6, 7]. A mina afeta comunidades do povo Mura, um grupo étnico também afetado pela BR-319. Observe que é necessário fazer consultas para cada comunidade, não em conjunto para grupos étnicos inteiros.[8]


A imagem que ilustra este artigo é de um grupo de Indígenas na BR-319 (Foto: Ben Sutherland/Wikimedia)


Notas

[1] Rosenn, K. S.,1971. The jeito: Brazil’s institutional bypass of the formal legal system and its development implicationsAmerican Journal of Comparative Law 19(3): 514-549.

[2] Fearnside, P. M., 2017b. Belo Monte: Actors and arguments in the struggle over Brazil’s most controversial Amazonian damDie Erde 148(1): 14-26.

[3] Fearnside, P. M., 2017c. Brazil’s Belo Monte Dam: Lessons of an Amazonian resource struggleDie Erde 148(2-3): 167-184.

[4] Fearnside, P. M., 2017d. Amazon dam defeats Brazil’s environment agencyMongabay 20 de setembro de 2017.

[5] Esteves, A. M., Franks, D.,Vanclay, F., 2012. Social impact assessment: The state of the artImpact Assessment and Project Appraisal 30(1): 34-42.

[6] Borges, T., Branford, S., Torres, M., 2019. Amazon’s Mura indigenous group demands input over giant mining projectMongabay, 27 de dezembro de 2019.

[7] Borges, T., Branford, S., Torres, M., 2020. Mega-projeto para exploração de potássio no Amazonas gera controvérsias. Mongabay, 07 de janeiro de 2020.

[8] Esta série de textos é traduzida de: Ferrante, L.; M. Gomes & P.M. Fearnside. 2020. Amazonian indigenous peoples are threatened by Brazil’s Highway BR-319Land Use Policy


Leia os artigos da série:

BR-319 ameaça povos indígenas 1: – Resumo da série

BR-319 ameaça povos indígenas 2: – O pano de fundo

BR-319 ameaça povos indígenas 3: Identificação dos povos impactados

BR-319 ameaça povos indígenas 4: – A inviabilidade econômica da estrada

BR-319 ameaça povos indígenas 5:- Promessas vazias de governança


Lucas Ferrante  é Doutorando em Biologia (Ecologia) no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Tem pesquisado agentes do desmatamento, buscando políticas públicas para mitigar conflitos de terra gerados pelo desmatamento, invasão de áreas protegidas e comunidades tradicionais, principalmente sobre Terras indígenas e Unidades de Conservação na Amazônia ( lucasferrante@hotmail.com).

Mércio Pereira Gomes é doutor em Antropologia pela University of Florida (EUA) e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ. É Coordenador do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e das Técnicas e de Epistemologia (HCTE), da UFRJ. Foi-presidente da Fundação Nacional do Índio–FUNAI (2003-2007) e representante brasileiro na elaboração da Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, aprovada em Assembleia Geral da ONU em 2007.

Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 600 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.


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Fonte: https://amazoniareal.com.br/br-319-ameaca-povos-indigenas-6-a-obrigacao-de-consulta-aos-povos-impactados/

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