Por Beka Munduruku

A jovem liderança indígena Beka Munduruku escreveu uma carta para o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva pedindo que ele retire garimpeiros dos territórios de seu povo. A carta é publicada com exclusividade pela Amazônia Real. A foto acima mostra área de garimpo ilegal na Terra Indígena Munduruku, em Jacareacanga, Pará (Foto: Marizilda Cruppe/Amazônia Real)


Terra Indígena Sawré Muybu (PA) – Presidente Lula, meu nome é Beka Munduruku, sou da Terra Indígena Sawré Muybu, no rio Tapajós (Pará). Tenho 20 anos e resolvi escrever esta carta aberta para falar de três promessas feitas pelo senhor durante a campanha. A primeira é a que o senhor mais fala: combater a fome que assola tantos brasileiros para que todos possam tomar café da manhã, almoçar e jantar todos os dias. Há milhões de brasileiros sem ter o que comer, geralmente vivendo nas cidades ou no sertão, e é muito importante que o senhor garanta comida no prato para todos. Mas eu gostaria que o senhor soubesse que a fome também existe entre os povos indígenas, e foi trazida pelo garimpo ilegal que se espalhou pela Amazônia.

Nós, indígenas, sempre vivemos em harmonia com a natureza, que nos dá tudo que precisamos para viver: terra para plantar, água pra beber, cozinhar e nos banhar, peixes, frutas e caça para nos alimentar. Nosso território tem tudo o que precisamos, foi assim que aprendemos com nossos ancestrais.

Mas isso mudou para muitos parentes que vivem ao longo do rio Tapajós. Em agosto de 2022, enquanto o senhor viajava pelo Brasil fazendo campanha, voltei à aldeia Katõ, na Terra Indígena Munduruku (PA), após dois anos e meio que tinha estado lá. Encontrei a fome e o medo nos relatos das lideranças com quem conversei, e não pude gravar o que eles contaram porque os garimpeiros circulam dentro da aldeia. “É perigoso falar”, me disseram os caciques. Até mesmo os funcionários da Funai (Fundação Nacional do Índio) que nos acompanharam até lá temem a presença constante dos invasores do garimpo.

A região do Katõ e do Kadiriri fica na cabeceira do rio Kabitutu, um afluente do rio Tapajós que foi destruído pelos garimpeiros. Em busca de ouro, eles invadiram o território indígena, poluíram tanto as águas que os peixes desapareceram, e afastaram a caça para longe com o barulho incessante dos motores das máquinas do garimpo. São 17 aldeias Munduruku que dependem do rio Kabitutu, que era bem limpo quando estive lá, em janeiro de 2020, e tinha cor vermelho límpido.

Hoje tem cor de café com leite de tão sujo. Eu não imaginava ver tanto garimpeiro dentro do rio como vi ao voltar, em agosto passado. Os garimpeiros entraram e acabaram com o rio, e estão acabando com a vida dos indígenas.

Na minha aldeia, Sawré Muybu, a água do rio também se tornou leitosa e suja, graças às dragas de garimpo que podem ser vistas à luz do dia. É impossível pescar, porque os peixes estão contaminados pelo mercúrio que já circula no sangue de todos na minha aldeia, como provaram os testes da Fiocruz. No inverno amazônico (que começa neste período na nossa região, quando as chuvas são mais intensas), a chuva que lava a floresta traz as poças de lodo poluído deixado pelo garimpo no rio Jamanxim para os igarapés. Quem não tem poço artesiano, como os parentes da aldeia Sawré Aboy, depende da água do rio para beber, cozinhar e se banhar. É o igarapé, agora sujo, que abastece a aldeia.

Por isso, quero falar da outra promessa que o senhor fez durante a campanha, Presidente Lula. Foi em Manaus (AM), no fim de agosto, logo depois que voltei da aldeia Katõ. Não haverá mais garimpo ilegal. Não haverá mais mercúrio, foi o que o senhor prometeu. E sem cumprir essa promessa, presidente, será impossível realizar o seu sonho de acabar com a fome no Brasil.

Enquanto houver garimpo ilegal contaminando os rios da Amazônia, a fome vai se alastrar entre os povos indígenas, presidente, porque nós dependemos dos rios, da terra, da floresta viva. É preciso interromper esse ciclo de destruição e morte que nos cerca. A nossa sobrevivência não depende de produtos industrializados comprados na cidade. O nosso alimento é tirado diretamente da natureza. Se ela for destruída, nós também seremos destruídos. Nossa sobrevivência fica ameaçada.

Na sua campanha, presidente Lula, o senhor também assumiu um compromisso com os povos indígenas de demarcar o território e garantir a demarcação. Nosso território ainda aguarda a vontade política do próximo governo para homologar a demarcação da Terra Indígena Daje Kapap Eypi, parada há vários anos na mesa do presidente da Funai. Enquanto esperamos, os invasores continuam destruindo a natureza e o modo de vida dos povos originários. O Brasil é terra indígena, isso jamais pode ser contestado.  

Tudo isso está conectado: territórios demarcados são os mais preservados porque nós cuidamos da Amazônia há séculos. Mas cabe ao governo expulsar os invasores e fiscalizar para que não haja garimpo e mercúrio, que estão envenenando e matando meu povo. Ao tomar posse, em 1º de janeiro de 2023, não esqueça das suas palavras, presidente Lula. Precisamos cuidar da nossa floresta, da nossa água e do nosso meio ambiente, mas, acima de tudo, precisamos cuidar do nosso povo. É isso que pedimos e queremos. Sawe!

Fonte: https://amazoniareal.com.br/carta-aberta-ao-presidente-eleito-a-fome-tambem-existe-entre-os-povos-indigenas/

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