Por Nicoly Ambrosio

Dsei Parintins registrou 400 casos em menos de dois meses. Mas lideranças indígenas dizem que já passou de 500 casos e o contágio continua se espalhando. Entre as causas estão aglomeração e atividades ilegais de garimpo e retirada de madeira nas proximidades da terra indígena (Foto: Sesai).


Manaus (AM) – Aldeias Sateré-Mawé, na Terra Indígena Andirá Marau, no Amazonas, estão sofrendo um surto epidêmico de malária assustando os moradores e levando vários indígenas para os postos de saúde. Um boletim divulgado pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Parintins (Dsei) informou que, até o momento, são 2.205 casos notificados e 400 positivos para malária atingindo aldeias do Polo Base Nova Esperança, Santa Maria e Vila Nova II, nos rios Marau e Urupadi, no município de Maués, na região do Baixo Rio Amazonas, divisa com o Pará. Os primeiros casos da doença foram notificados em abril, mas a situação se agravou em maio.

As aldeias com maior taxa de incidência, até o momento, são Nova Jerusalém, cuja população inteira foi infectada, seguida de Sagrado Coração de Jesus, Vila da Paz e Santa Maria, onde fica o polo base, no rio Urupadi. Mas ao menos 18 aldeias estão com a população infectada, segundo relatório do Dsei Parintins, que a Amazônia Real teve acesso.

Na região do rio Marau há 50 aldeias indígenas e a maioria também está com notificação da doença. Um enfermeiro do Dsei Parintins disse nesta semana, em áudio ouvido pela Amazônia Real, que o número de casos já passou de 500. O surto epidêmico levou à interrupção das atividades escolares por 15 dias, determinada pela coordenação de Educação Escolar Indígena de Maués, a pedido das lideranças Sateré-Mawé.

A Amazônia Real apurou que, em 2020 e em 2021, o Ministério da Saúde registrou 68 casos de malária na região; foram 42 casos há três anos e 26 há um ano. O órgão não apresentou os dados de 2022.

Lideranças indígenas ouvidos pela reportagem, além do próprio Dsei, atribuem o surto repentino à aglomeração em eventos e festividades, mas tendo como origem as atividades de garimpo e retirada de madeira ilegal em área próxima da terra indígena.

Os Sateré-Mawé também afirmam que o Dsei Parintins demorou para agir, fazendo apenas alertas para os indígenas evitarem trânsito na região, sem iniciar imediatamente o combate à doença, resultando no contágio descontrolado. Temendo a explosão dos casos, lideranças indígenas passaram a fazer cobranças públicas, inclusive em redes sociais, como o tuxaua da aldeia Nova Esperança, Aristides Michiles, em entrevista dada na língua de seu povo.

O tuxaua Josibias Alencar, líder da Ilha Michiles, no Baixo Marau, e uma das mais de 55 aldeias da TI Andirá Marau, está com malária. Em entrevista à Amazônia Real, ele disse que foi infectado pela última vez em 2015, mas que nunca tinha visto tantos casos da doença como agora. A liderança de 43 anos acredita que a proximidade do território indígena com áreas de garimpo e desmatamento contribui diretamente para o aumento do número de doentes.

“Eu vejo que esses impactos ambientais são causados porque nós moramos próximo à região do rio Urupadi, onde tem exploração ilegal de madeira e garimpo. O acesso fica muito próximo e nós temos por trás da nossa região o estado do Pará também, onde tem bastante desmatamento. Acredito que isso contribui para o aumento dos casos de malária”, afirmou o tuxaua à Amazônia Real.

O líder Sidney Michiles, também Sateré-Mawé, confirma que desde junho os casos de malária estão aumentando na região e que o foco da doença começou no rio Urupadi, onde há forte presença de garimpeiros e madeireiros.

“O desmatamento tem a ver com a questão dos madeireiros na nossa região e na cabeceira do rio Urupadi. A gente sabe que existem pessoas que trabalham com garimpo e isso pode estar contaminando o rio e causando todo esse problema da malária que está acontecendo”, disse.

Josibias diz que indígenas da TI Andirá Marau têm vínculos com famílias ribeirinhas e essas pessoas têm acesso ao garimpo. “Foi por meio disso que a gente ficou doente de malária. Essas famílias que tiveram acesso ao garimpo tiveram malária e são casados com parentes daqui da terra indígena. Como não tomaram providência antes, os casos se complicaram e aumentaram”, disse.

De acordo com o tuxaua Josibias, o foco do desmatamento e do garimpo está nas regiões dos ribeirinhos, no rio Urupadi, e as autoridades competentes precisam fazer o trabalho de fiscalização.

“A malária é consequência dessas atividades. É preciso que verifique como está sendo feita essa extração de madeira, se é manejo ilegal. E as autoridades competentes precisam tomar providência para que essas atividades não tragam prejuízo às populações da região e ao meio ambiente, que é importante para a nossa sobrevivência e subsistência como povo indígena”, declarou.

De acordo com levantamento feito pelo Dsei Parintins, a primeira contaminação na região começou em março em uma mulher grávida que frequentava área de garimpo e moradora da comunidade ribeirinha São Sebastião. Trinta pessoas da família da mulher foram imediatamente contaminadas. Conforme o Dsei, São Sebastião fica nas proximidades da TI Andirá Marau e seus moradores têm livre trânsito na terra indígena. O primeiro caso de indígena contaminado aconteceu no dia 31 de março, na aldeia São Benedito. Um mês depois, o Dsei notificou quatro nove casos, na aldeia Sagrado Coração de Jesus. O órgão fez o alerta, mas entrou em área para combater o surto entre 25 de maio e 10 de junho.

O relatório do Dsei Parintins, além de indicar fatores como aglomeração em recentes festividades indígenas para proliferação da doença, também cita o garimpo como causa da epidemia. “O aumento deu-se devido às aldeias estarem próximas de garimpos e também às numerosas festividades que estão ocorrendo nas comunidades indígenas”, diz o órgão, em seu diagnóstico.

Surto epidêmico se descontrola

Indígenas aguardam atendimento na aldeia Santa Maria do Urupadi (Foto: Dsei Parintins).

Os casos de malária também já começam a ser notificados na região do rio Andirá, no município de Barreirinha, onde não se registrava a doença há vários anos, conforme disse uma liderança à Amazônia Real, em condição de anonimato. A TI Andirá Marau abrange os municípios de Maués, Barreirinha e Parintins, e mais uma área do estado do Pará.

A pesquisadora Ana Lúcia Tourinho, doutora em Ecologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), classifica os casos elevados como um “surto epidêmico”, pelo alto número de infectados localmente e a escala que a doença está alcançando. Mesmo sem dados fornecidos pelas autoridades de saúde de Maués, ela avalia que, se houver mais explosões e expansão para outros locais, pode chegar uma “epidemia municipal”.

“Quando se tem um foco onde o número de infectados em um local pequeno, ou numa comunidade, em um bairro aumenta muito, passa a ter número muito elevados e fora de controle para um espaço de tempo curto, é um surto. Se estiver ocorrendo em vários bairros ou comunidades, é uma epidemia municipal, porque está expandindo a área, sendo então uma situação de epidemia”, explica.

Ana Lúcia é especialista em interações ambientais, especialmente na Amazônia, onde ela concentra seus estudos, e vem fazendo alertas para o avanço do desmatamento, queimadas e garimpo. Atualmente, ela é pesquisadora da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).

Medidas insuficientes

Servidor da Sesai na instalação de mosquiteiro nas aldeias da TI Andirá Marau (Foto: Sesai).

Em outro documento epidemiológico, o Dsei Parintins, vinculado à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, informou que está construindo um plano de intensificação das ações de combate à malária em conjunto com o Município e o Estado. Entre as ações, estão o tratamento supervisionado das pessoas infectadas, exames e testagem rápida, borrifação com objetivo de combater o mosquito adulto e distribuição e instalação de mosquiteiros nas aldeias. O planejamento prevê uma série de ações com data até o dia 30 deste mês.

No entanto, o tuxaua Josibias Alencar afirma que as medidas tomadas para evitar a proliferação da doença não estão sendo suficientes. “A borrifação foi iniciada, mas está sendo feita de forma muito lenta no Urupadi, onde tem muitos casos. Aqui no Marau não tem equipe fazendo a borrifação ainda e isso faz a gente ter a certeza de que é preciso com urgência aumentar as equipes para fazer essas ações aqui”, alertou o líder indígena. 

Ele relata que a própria comunidade decidiu, por conta própria, tomar medidas para evitar a propagação da doença. Os moradores pararam de fazer eventos públicos para evitar mais contágios da doença e estão mais cautelosos, atendendo orientações dos agentes de saúde indígena.

“Não estamos mais nos reunindo à noite, nos horários onde há maior momento de proliferação. O cuidado com a água nas comunidades, para não criar focos, também está sendo feito. São meios pelos quais estamos informando a população sobre a importância de fazer nossa parte nas comunidades”, afirma.

Garimpo e do desmatamento

  • A Força Tarefa de Segurança Pública Ambiental (FTSPA), composta por equipes da Polícia Federal, ICMBio, PRF, Força Nacional e ABIN, na Operação Aurum, na Floresta Nacional de Urupadi, em Maués (Foto: PF).
  • A Força Tarefa de Segurança Pública Ambiental (FTSPA), composta por equipes da Polícia Federal, ICMBio, PRF, Força Nacional e ABIN, na Operação Aurum, na Floresta Nacional de Urupadi, em Maués (Foto: PF).
  • A Força Tarefa de Segurança Pública Ambiental (FTSPA), composta por equipes da Polícia Federal, ICMBio, PRF, Força Nacional e ABIN, na Operação Aurum, na Floresta Nacional de Urupadi, em Maués (Foto: PF).

O aumento dos casos a partir de junho na TI Andirá Marau ocorre no mesmo período em que as autoridades federais de meio ambiente e policial anunciaram uma força-tarefa para combater o garimpo. Em junho, operações de órgãos federais destruíram 10 garimpos ilegais na região do Urupadi. As ações foram empreendidas por equipes Polícia Federal, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Polícia Rodoviária Federal (PRF), Força Nacional e ABIN.

As atividades de garimpo e a retirada ilegal de madeira associadas a outros crimes ambientais também podem ter relações com o desaparecimento do jovem indígena Reinaldo Santana Magalhães na área próxima da comunidade São Sebastião. O rapaz, que até hoje não foi encontrado, foi visto pela última vez em abril. Seus parentes e amigos denunciam o desinteresse das forças policiais em investigar o caso. A comunidade local, que está há quase quatro meses sem respostas, acredita que o desaparecimento de Reinaldo tenha ligação com os crimes ambientais que acontecem na região.

A pesquisadora Ana Lúcia Tourinho afirma que os crimes ambientais relatados pelos indígenas podem ter relação com os aumentos dos casos de malária, somados a outros aspectos, como aglomeração e proximidades das pessoas em áreas restritas.

“Não quer dizer que possamos afirmar contundentemente que o que está acontecendo naquela região seja causa exclusiva da extração de madeira e do garimpo, mas há fortes indícios que mostram essa relação”, disse Ana Lúcia à Amazônia Real.

A pesquisadora explica que essa “epidemia local” (como ela descreve o que está acontecendo na TI Andirá Marau) está relacionada à abundância dos vetores, os mosquitos infectados.

A malária é transmitida pela picada do mosquito Anopheles e é uma doença infecciosa, febril, potencialmente grave, causada pelo parasita do gênero Plasmodium. No Brasil existem três espécies de Plasmodium que afetam o ser humano: P. falciparum, P. vivax e P. malariae. A doença tem tratamento e cura, mas se não for diagnosticada e tratada da forma correta, há risco de morte.

“O aumento tem a ver com os criadouros onde está acontecendo essa reprodução de mosquitos infectados e está relacionado ao desmatamento e ao garimpo. Esse tipo de atividade influencia diretamente no uso e dinâmica da água da região. As poças que são abertas por esses garimpeiros podem estar criando vários criadouros dos mosquitos”, disse a ecóloga.

A pesquisadora afirma que a presença dos garimpeiros na floresta pode ter acarretado um problema sanitário, que também ajudou a criar condições para que esses criadouros aumentassem a população de mosquitos infectados. 

“A atividade do desmatamento e do garimpo podem em geral aumentar o número de doenças e infectados. O trânsito e o fato de essas pessoas estarem morando ali e dentro da floresta pode estar criando novos criadouros de malária e gerando alteração ambiental que proporciona o nascimento de criadouros e um boom reprodutivo dos mosquitos”, atesta.

Segundo Ana Lúcia Tourinho, as medidas de prevenção coletiva contra a malária são a borrifação intradomiciliar, o uso de mosquiteiros, drenagem, pequenas obras de saneamento para eliminação de criadouros do vetor, aterro, limpeza das margens dos criadouros, modificação do fluxo da água, controle da vegetação aquática, melhoramento da moradia e das condições de trabalho e uso racional da terra.

Em 2016, um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) usou dados de 773 cidades da Amazônia em um projeto de monitoramento de desmatamento, entre os anos de 2004 e 2012. Tanto a malária quanto a Leishmaniose apareceram relacionadas ao desmatamento na região. 

“Do ponto de vista científico e de estudos que são realizados há muitas décadas aqui no Brasil, por institutos e pesquisadores renomados, a relação do desmatamento com o aumento de doenças infecciosas é uma coisa conhecida. Essa pesquisa do Ipea conseguiu encontrar uma relação do desmatamento com o aumento dos casos de malária, descrevendo que a cada 1% de derrubada de árvores por ano, há um aumento de 23% nos casos de malária”, disse Ana Lúcia.

Um estudo realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Universidade Federal de Roraima (UFRR) e Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade e Biotecnologia (Rede Bionorte) sobre o avanço do garimpo em Roraima apontou que o garimpo foi responsável pelo aumento de casos de malária em terras indígenas do estado.

“Os garimpeiros invadem a floresta e escavam a terra, formando poços que, por sua vez, funcionam como criadouros de proliferação de mosquitos anofelinos, que transmitem a malária. Ou seja, com mais mosquitos e mais pessoas, cujo sangue serve de alimento para os mosquitos, está criada a situação ideal para a transmissão da doença. Isso acontece ao lado das aldeias, e os indígenas passam a viver perto de núcleos de transmissão de malária, que antes não existiam”, diz a pesquisadora Maria de Fátima Ferreira da Cruz.

A Amazônia Real procurou a assessoria de comunicação da Sesai, em Brasília, para obter mais informações sobre os casos de malária e ações realizadas, além de pedir dados epidemiológicos nos anos anteriores para fazer comparação, mas não teve respostas até a publicação desta reportagem. A Secretaria Municipal de Saúde de Maués também foi procurada, mas não deu retorno.

Testes de malária realizados na TI Andirá Marau (Foto: Sesai).

Fonte: https://amazoniareal.com.br/casos-de-malaria-explodem-em-aldeias-satere-mawe-na-ti-andira-marau-am/

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