Profissionais de saúde dizem que remoções de pacientes dentro do território precisa de mais helicópteros; Unidade de saúde foi inaugurada na última sexta-feira (21) (Foto: Felipe Medeiros/Amazônia Real).
Boa Vista (RR) – A emergência Yanomami levou o governo federal a instalar um Centro de Referência para atender pacientes no próprio território e diminuir a necessidade de transferências para hospitais de Boa Vista, capital de Roraima. A unidade foi construída na região de Sururucu, nas proximidades do prédio de madeira do Polo-Base de Saúde Yanomami. Já na inauguração, na última sexta-feira (21), 90% do Centro de Referência, que tem capacidade para atender 100 pacientes por dia, estava lotado.
Entre os internados, 26 estavam com malária e havia bebês desnutridos que acabavam de chegar. Raiane Lopes, enfermeira que já atua no Polo-Base, disse que este é o número frequente de pacientes com a doença. Ela destacou que, além do Centro de Referência, é preciso que se melhore a logística do transporte dos doentes. Não é incomum, segundo a profissional de saúde, indígenas morrerem durante o trajeto, entre as aldeias na maior terra indígena do país, até a unidade de saúde.
“Às vezes [eles] não conseguem resgatar porque não tem missão de helicóptero. Só tem um, e tem que fazer os resgates de Surucucu e de outros polos”, relatou Raiane à Amazônia Real, que acompanhou a inauguração do Centro, na região de Surucuru.
O Centro de Referência foi montado para atender cerca de 100 pacientes de urgência e para realizar consultas, exames e o tratamento de malária e desnutrição. A estrutura, de lona, é semelhante à de um hospital de campanha, mas não recebe esse nome. A previsão é atender cerca de 2,7 mil pessoas distribuídas entre 46 aldeias, incluindo pacientes das regiões de Parafuri, Haxiu, Homoxi, Xitei e Waputha.
Enquanto as autoridades do governo Lula analisavam a estrutura e se deslocavam para onde iriam falar com os Yanomami, no evento que marcava a inauguração do Centro, era possível observar a aflição e a pressa dos profissionais da saúde para tentar salvar um recém-nascido e outros bebês desnutridos com dificuldades para respirar.
“Essa criança a gente chegou a entubar ontem [quinta-feira, dia 20], mas ela está tão grave que é melhor não ficar aqui”, conversava Márcia Abdala, diretora do Expedicionários da Saúde (EDS) com a servidora do Dsei-Y (Distrito de Saúde Especial Indígena Ye’kuana e Yanomami), Isabela Matias, sobre uma transferência para Boa Vista que ocorria e chamava a atenção.
Poucos minutos depois, um recém-nascido também é levado do Centro até a pista de pouso, distante 1 km, para continuar o tratamento na capital de Roraima. Da unidade hospitalar, mãe e filho são colocados em uma carroceria de uma moto, ao lado um cilindro de oxigênio para que ele consiga respirar durante toda a viagem.
A urgência no transporte dos doentes leva os profissionais a tomarem medidas de improviso e arriscadas. Por isso, para eles, não basta um espaço para receber os doentes. Mas uma estrutura que permita o atendimento de forma completa e, em casos de remoções, que haja transportes disponíveis.
A médica Carla Rodrigues, coordenadora do Centro de Referência, afirmou que “só o Centro de Referência não está sendo efetivo”. Que a unidade precisa de logística também para o transporte dos pacientes dentro do território.
“Estamos sem helicóptero. A gente só tem um que faz todo o Território Yanomami e quando ele vai para a manutenção a gente fica sem. A gente precisa de logística também, tanto para trazer os pacientes como para quando eles têm alta, senão eles ficam aqui se contaminando. A gente tem uma estrutura, mas ainda assim, precisamos expandir mais. Já estamos com a capacidade de 90%”, alertou Carla Rodrigues, à reportagem.
Junior Hekurari endossa a preocupação da médica. Segundo o presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi-Y), a falta de apoio na retirada de Yanomami doentes resulta em mortes pelo caminho ao buscarem a pé o tratamento nos polos-base. Quando isso não ocorre ficam sujeitos a contaminar toda uma comunidade (em caso de doenças transmissíveis) sem auxílio clínico.
“Precisamos avançar mais para a gente acabar com a malária e a desnutrição em algumas comunidades longe daqui. Tem comunidade, do Auaris [por exemplo], da região do Amazonas, que ainda estão esperando para chegar esses atendimentos”.
Vítimas de arma de fogo
Logo que foi montado, o primeiro caso atendido pelos profissionais do Centro de Referência foi um paciente ferido por arma de fogo. A presença de armas na TIY reflete a presença de invasores na região. Eles são armados por garimpeiros e narcotraficantes em uma estratégia de exterminá-los para usufruir da terra rica em ouro e outros minérios.
O Yanomami ferido tinha cerca de 20 anos. Ele recebeu os primeiros socorros e precisou ser transferido para Boa Vista. O jovem indígena foi vítima de um tiro de espingarda na região do pescoço e estava com ferimentos graves no rosto.
Marcelo Moura, antropólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que trabalha há cinco anos com o povo Yanomami, conta que uma das estratégias dos garimpeiros é armar determinados grupos que os apoiam e, às vezes, incitar conflitos com aqueles que não os apoiam. As armas de fogo também desencadeiam mais conflitos entre os próprios Yanomami, segundo ele.
“Quando entra uma arma dessa morrem cinco, seis pessoas, que na paulada ou na flechada, talvez, morreria um apenas. Quando entra essa quantidade de armas os conflitos ficam mais nervosos e mortais”, diz o antropólogo.
Melhorias na nutrição
A promessa do governo federal é que o Centro de Referência reforce as ações de atenção primária à saúde com consultas e acompanhamento periódico de crianças e pré-natal, por exemplo. Uma das prioridades, segundo as autoridades, é garantir a recuperação nutricional para casos de desnutrição grave e moderadas, tratamento de pacientes com malária, trauma e acidente ofídico (picadas de cobras).
“A nossa intenção é que se faça um plano que ele não seja só emergencial, mas duradouro. Porque a saúde indígena desde que ela existe, ela é sempre emergencial. Claro que agora é uma emergência humanitária da qual Yanomami e nenhum outro povo passou por isso como está passando agora, apesar de todas as comunidades serem dizimadas desde quando os europeus chegaram até aqui”, analisou Carla.
“Esse trabalho é para as pessoas que moram aqui, melhorar a qualidade de vida dessas pessoas, esse é o foco. Melhorar a assistência, porque essas pessoas merecem a dignidade retomada. É nosso dever, como ser humano, fazer a gente sair dessa emergência e retomar o SUS aqui dentro e as políticas públicas”, se comprometeu a médica, coordenadora do Centro.
Weibe Tapeba, secretário da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) reconheceu as dificuldades de logística e disse que o Centro de Referência fortalece a assistência permanente na TIY, reduzindo a necessidade de locomoção dos indígenas para Boa Vista.
“O objetivo principal da instalação desse equipamento aqui no território é exatamente evitar sair desse fluxo rotineiro [de transferência] de pacientes para Boa Vista. Isso gera um custo e mais do que isso, uma logística muito complexa que a gente precisaria superar. É para a gente trazer mais dignidade para o povo Yanomami garantindo que a atenção especializada, em alguns aspectos da própria média complexidade, pudessem chegar dentro do próprio território”, explicou o titular da Sesai, durante a programação de inauguração em Sururucu.
Mortes de Yanomami
Desde janeiro, segundo o Ministério da Saúde, mais de 700 pacientes foram transportados por aeronaves em todo o território, considerando inclusive traslados entre aldeias e polos-base. Além de Weibe Tapeba, a comitiva que foi a Sururucu contou com a presença da ministra Sônia Guajajara (Ministério dos Povos Indígenas), Joênia Wapichana (presidente da Funai) e da deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG). Davi Kopenawa e Júnior Hekurari também participaram, assim como o coordenador do Dsei Yanomami, Leandro Lacerda.
Conforme o Ministério da Saúde, o Centro de Referência é dividido em ala ambulatorial, sala de acolhimento e triagem, salas de estabilização, consultórios, lactário, farmácia, laboratório e microscopia. A estrutura permanente também contará com refeitório, centro de convivência e redários.
Cerca de 30 profissionais entre médicos, técnicos de enfermagem e enfermeiros, nutricionistas e técnicos de nutrição, de laboratório, farmacêuticos, microscopistas, cozinheiros e serviços gerais.
Os contratos são feitos via Dsei-Y, Força Nacional do SUS ou convênios com instituições como Fiotec (Fundação de apoio à Fiocruz), Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e Expedicionários da Saúde (EDS). Para manter os equipamentos eletrônicos, geradores de energia e placas fotovoltaicas foram instalados.
Conforme o último relatório do Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE-Yanomami), 85 Yanomami morreram desde quando iniciaram as ações do governo federal para barrar a atuação garimpeira na TIY. Desse total, 32 mortes foram registradas em hospitais e 53 no território indígena.
Os dados reforçam a falta de assistência para atendimento direto nas regiões. Os números ainda não refletem uma realidade total, já que algumas regiões foram dominadas por garimpeiros e sequer houve alguma operação como já denunciado pela Amazônia Real.
Marcelo Moura disse que o problema de desassistência não é novo. Entretanto, nos últimos quatro anos se agravou. Segundo ele, é preciso uma ação permanente e não apenas no momento de crise. Além de estabelecer um controle efetivo do território dos povos da floresta.
“Não adianta a gente vir aqui recuperar a saúde dessas pessoas, levantar elas de novo, dá a vida para elas de novo, daqui a pouco elas voltam para as suas comunidades e chegam lá enfrentando a invasão, a poluição das suas águas, a completa desestruturação social”, alerta Moura.
Garimpeiros permanecem
As ações do governo federal ainda não conseguiram atingir todas as regiões da Terra Yanomami. Por isso, a completa retirada dos garimpeiros não chega a um fim. Os garimpeiros dominam totalmente algumas áreas e em outras driblam a fiscalização, escondem máquinas durante o dia e mineram a noite. Dário Kopenawa, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, denunciou a falta de fiscalização em todo a TIY.
“Essas regiões que ainda seguem com a presença dos garimpeiros, a gente não sabe nem a dimensão da tragédia porque a gente não conseguiu chegar até lá. Enquanto todos eles não saírem, a gente não tem condições de saber a real condição. A gente tem medo de chegar e encontrar um povo completamente destruído, como eu ouvi relatos de um enfermeiro que faz as remoções, de ter chegado em casa onde estavam todas as pessoas mortas. Isso a gente ainda vai ver, porque a gente sabe que apesar de termos três meses [de emergência em saúde declarada pelo governo federal] ainda não acabou”, analisou o antropólogo da UFRJ.
A declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) completou três meses na sexta (21), com 5,3 mil atendimentos realizados, entre a Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai), os polos-base no território, o Hospital de Campanha das Forças Armadas e o Hospital Geral de Roraima em Boa Vista. Os principais problemas de saúde identificados nesta população são malária, pneumonia e desnutrição.
Além do envio de profissionais para o reforço no atendimento – mais de 500 da Força Nacional do SUS, Unicef, MSF, Fiotec e Opas e 14 do programa Mais Médicos – o Ministério da Saúde segue enviando insumos para utilização nos atendimentos de urgência: 75,9 mil testes rápidos, sendo 21,7 mil para malária, 38,9 mil antibióticos e mais de 280 mil medicamentos para malária.
A recuperação nutricional das crianças segue como um dos principais focos das ações do COE-Yanomami. Conforme o Ministério da Saúde, até o momento, foram acompanhadas 95 crianças na Casai, 63 delas se recuperaram, outras seis seguem em acompanhamento para desnutrição grave e 26 com quadro moderado.
Após a publicação desta reportagem, a assessoria de comunicação do Ministério da Saúde enviou nota informando que “o contrato anual prevê a disponibilidade de um helicóptero para atendimento e mais um de reposição”. Segundo a assessoria, “a meta é que nos próximos contratos esse número seja ampliado”.
“O Centro de Referência em Saúde Indígena de Surucucu tem como meta ser o principal polo de atendimento na região. Já a construção de um hospital em Boa Vista ainda está em fase de análise de viabilidade”, diz a nota do Ministério da Saúde.
- Weibe Tapeba no Pólo Base de Saúde em Surucucu (Foto: Felipe Medeiros/Amazônia Real)
- Redário no Polo Base de Saúde em Surucucu (Foto: Felipe Medeiros/Amazônia Real)a
- Weibe Tapeba no Pólo Base de Saúde em Surucucu (Foto: Felipe Medeiros/Amazônia Real)
- Davi Kopenawa no Polo Base de Saúde em Surucucu (Foto: Felipe Medeiros/Amazônia Real)
- Júnior Hekurari no Polo Base de Saúde em Surucucu (Foto: Felipe Medeiros/Amazônia Real)
- Centro de Referência de Saúde Yanomami na região do Surucucu (Foto: Felipe Medeiros/Amazônia Real)
- Centro de Referência de Saúde Yanomami na região do Surucucu (Foto: Felipe Medeiros/Amazônia Real)
- Joenia Wapichana no Polo Base de Saúde em Surucucu (Foto: Felipe Medeiros/Amazônia Real)
- A deputada Célia Xakriabá no Polo Base de Saúde em Surucucu (Foto: Felipe Medeiros/Amazônia Real)
O repórter Felipe Medeiros acompanhou a inauguração do Centro de Referência, em Surucucu, na TI Yanomami, a convite do Ministério da Saúde.
Leia aqui a cobertura da emergência do povo Yanomami.
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Jornalista multimídia. Foi repórter e apresentador em portais e emissoras de TV em Roraima onde participou de importantes coberturas, como o sarampo no estado, garimpo ilegal, desmatamento no extremo norte, eleições, a crise migratória da Venezuela e a pandemia de Covid-19. Já atuou com jornalismo sindical, em centrais e sindicatos trabalhistas. É formado pela Universidade Federal de Roraima (UFRR). Nas redes sociais defende a democracia e as minorias.
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