Coletivo indígena do povo Mura celebrou seus ancestrais e protestou contra monumentos colonizadores nos arredores da Igreja de Santo Antônio, na capital de Rondônia (Foto cedida por Taña Mura).


Manaus (AM) – No dia 22 de abril, indígenas da etnia Mura se reuniram no local que consideram a representação viva da colonização e invasão do seu território em Porto Velho, em Rondônia. Por meio do Coletivo Mura, coordenado pela escritora e educadora Márcia Mura (Tañamak), eles realizaram um ato simbólico de recuperação do território ancestral em frente à Igreja de Santo Antônio e nas proximidades da Hidrelétrica Santo Antônio. “Os monumentos históricos colonizadores que apagam a nossa existência Mura em Porto Velho”, explica Márcia.

Articulado como ação do Abril Indígena, o principal objetivo do ato simbólico foi fazer com que o Estado reconheça que Porto Velho é, antes de tudo, território ancestral Mura. “O rio Madeira também é nosso território ancestral. O rio não tem fronteiras e existem vários registros historiográficos, cartográficos e também de memória oral que trazem essa ocupação no rio Madeira”, afirma a liderança. 

Esta não é a primeira vez que os Mura realizam atos de resgate do território. A primeira manifestação simbólica de demarcação em Porto Velho aconteceu em 2017, na Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Márcia afirma que a ferrovia é uma marca colonial que deixou feridas na história dos povos indígenas da região, além de apagar ainda mais a memória dos Mura em Porto Velho. “A ferrovia passou a ser o referencial e o patrimônio cultural da cidade, apagando ainda mais a nossa memória e a nossa existência. Ela também passa pelo nosso território de memória e por cima do território físico e cultural dos Karipuna e dos Karitiana. Os Karipuna, no período da construção da ferrovia, foram quase dizimados”, detalha.

No segundo ato, em 2018, os Mura fizeram uma ocupação cultural em um mirante com vista para o rio Madeira, onde funcionava um restaurante. Segundo a escritora, a dona do empreendimento usava cestos de tecnologia indígena como lixeiras. “Eu fiz um texto poético falando da importância e do sentido ancestral que têm os cestos para nós indígenas. Foram feitas danças e cantamos”. Apesar da mobilização pacífica, contrária ao uso dos conhecimentos milenares indígenas como depósito de lixo, ela lembra que os Mura não foram bem recebidos. “Foi um ano antes da era bolsonarista. Se fosse durante, teriam dado até tiros na gente”.

Símbolo de morte

Coletivo Mura faz ato simbólico de retomada do território em Porto Velho (Foto cedida por Taña Mura)

Construída a partir da Vila de Santo Antônio, formada em meados do século 18 por padres jesuítas, a Igreja de Santo Antônio foi o local escolhido para realizar o terceiro ato simbólico do Coletivo Mura. “A Igreja de Santo Antônio representa a ocupação colonial no nosso território. Em torno dessa igreja outras intervenções colonizadoras, que representam a morte para nós, foram construídas no rio Madeira”, diz Márcia, fazendo  referência à construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré e da Hidrelétrica Santo Antônio.

Para ela, as construções das hidrelétricas ao longo do rio Madeira foram formas de matar aos poucos o rio ancestral. “Onde nós fizemos o ato dá para ver de pertinho a barragem de Santo Antônio, que desviou o nosso rio”. Além da ferrovia e das hidrelétricas, fica nas imediações da igreja o Memorial Rondon, que ostenta na sua entrada uma imagem do militar Cândido Rondon, o que é considerado uma afronta para os Mura, apagados da história oficial de Rondônia.

Apesar de o museu citar a existência dos Suruí e dos Karitiana, por meio de fotografia e maloca, nada é informado sobre o povo Mura dentro do seu próprio território. “Mais uma vez é construído um monumento em cima do nosso território de memória e nem sequer mencionam a nossa existência. Isso nos fere muito”, afirma Márcia. 

Diante disso, a liderança explica que sempre houve resistência em relação ao espaço. “Quando a gente vai, é para protestar contra essa política colonial que atravessa nossos territórios e nossas vidas”. Para além de ser uma volta ao território ancestral, o ato simbólico mostra que os Mura continuam existindo e resistindo em Porto Velho. 

Reconstrução da memória

Coletivo Mura faz ato simbólico de retomada do território em Porto Velho (Foto cedida por Taña Mura)

Durante o ato, registrado em vídeo nas redes sociais de Márcia, foi realizado um ritual de rememoração dos antepassados, das ancestralidades. “Fomos para debaixo de uma árvore, um pé de taperebá, e fizemos a nossa roda ali. Nós cantamos, fizemos soar o maracá, tocamos as forças dos nossos ancestrais e sentimos essa força ancestral ali. Levamos urucum e passamos no pulso  de cada pessoa que estava presente, como símbolo de renovação da nossa luta e do compromisso de manter viva a nossa memória”, relata.

O Coletivo Mura trabalha com a recuperação da memória indígena de pessoas que vivem em comunidades tradicionais do baixo Madeira. “Temos feito um trabalho de fortalecimento dessas comunidades tradicionais, hoje configuradas como ribeirinhas, dessa resistência a esses projetos de morte como as hidrelétricas, o garimpo e as rodovias”, explica. O projeto, comprometido também com o fortalecimento político das comunidades, pretende estimular o pertencimento à identidade indígena, fazendo a reconexão com os antepassados e trabalhando a questão da afirmação indígena. 

Márcia afirma que em muitas comunidades de contexto ribeirinho ainda se mantém o modo de ser indígena e as famílias entram em contato com o Coletivo Mura porque se identificam com a construção da memória dos povos. “Temos contribuído com a reconstrução das memórias dessas famílias que estavam caindo no apagamento por conta do processo de colonização”, diz. Ela acredita que a reconexão da memória do povo Mura com seus antepassados, retirada a força durante o processo de colonização, vai reforçar a luta política e a reconstrução dos seus territórios. “Isso nos torna mais fortes para enfrentar essa política de apagamento, etnocídio e embranquecimento que vem ocorrendo de forma muito forte e tem afetado o nosso povo”, afirma.

Como exemplo, a escritora aponta para o seu próprio caso de perseguição, racismo e etnocídio por se afirmar indígena. Em 2021, após 20 anos atuando como professora na rede estadual de Rondônia, ela foi removida da Escola Estadual Professor Francisco Desmorest Passos, no distrito de Nazaré. O relatório enviado à Secretaria Estadual de Educação (Seduc) indicou que um dos motivos para a remoção foi a “insistência” em ensinar conteúdos de temática indígena para os alunos. “Essa situação já ganhou repercussão internacional, por meio da ONU Mulheres, e eu não entendo porque isso não tem efeito no Estado para que eu volte a dar aulas”, questiona a professora.

Apesar de toda a luta, ela diz que, assim como os seus antepassados, os Mura vão continuar resistindo ao projeto colonial até as últimas consequências. “Nós que estamos aqui nos levantando vamos também fazer resistência, apesar de toda a perseguição do Estado de Rondônia”.

Coletivo Mura faz ato simbólico de retomada do território em Porto Velho (Foto cedida por Taña Mura)

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Nicoly Ambrosio

É estudante finalista do curso de jornalismo na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e fotógrafa independente residente na cidade de Manaus. Como repórter, escreve sobre cultura e direitos humanos. Já expôs trabalhos fotográficos no Festival de Fotografia de Tiradentes (Tiradentes/MG, 2020) e Galeria do Largo (Manaus/AM, 2020). De 2020 a 2022, participou do projeto de Treinamento no Jornalismo Independente e Investigativo da Amazônia Real.

Fonte: https://amazoniareal.com.br/coletivo-mura-faz-ato-simbolico-de-retomada/

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