Cuiabá (MT) – Nem a pandemia de Covid-19 foi capaz de interromper o trabalho das mulheres coletoras de sementes de Marãiwatsédé, na região nordeste de Mato Grosso. Ao longo de 2020, foram coletadas mais de uma tonelada de sementes de caju, jatobá, ipê, pequi, xixá, copaíba e baru. São elas que darão continuidade ao reflorestamento de uma das terras indígenas mais devastadas da Amazônia. E também garantem renda à comunidade.
De 1.324 toneladas de sementes, 300 quilos serão destinados à recuperação ambiental do território, que ocorre desde que foi retomado pelos Xavante, em 2013. Latifundiários da soja, da pecuária e outros grileiros invadiram as terras ilegalmente por mais de 20 anos. A maior parte das sementes coletadas será vendida pela Rede de Sementes do Xingu, que conta com cerca de 600 coletoras que moram nas regiões das bacias hidrográficas do Xingu e Araguaia.
A liderança que está à frente das coletoras é a cacica Carolina Rewaptu. Na década de 1960, quando os Xavante foram retirados de Marãiwatsédé por aviões da Força Aérea Brasileira, Carolina tinha 6 anos. Não se lembra de muita coisa. Cresceu escutando as histórias dos anciãos de uma Marãiwatsédé cercada pela floresta amazônica onde os Xavante saiam para caçar e coletar as sementes que adornavam os artesanatos e os rituais festivos e religiosos. Agora, ela quer participar dessa promissora história, vendo a floresta renascer no território com os próprios olhos.
A inspiração para continuar a coleta, em ritmo recorde, veio da anciã Mônica Renhinhãi’õ, que também era coletadora e faleceu de Covid-19 ano passado, há 25 dias de completar 100 anos. Como era muito lutadora, deixou no imaginário essa mensagem de sempre seguir em frente. “A gente acredita que ela não gostaria que o trabalho fosse interrompido”, diz a cacica Carolina.
Mônica era uma das anciãs mais respeitadas de Marãiwatsédé. Deve-se a ela a existência das atuais 90 coletoras no território, que repassou seus saberes para as mais novas. A cacica Carolina segue hoje o seu legado, também ensinando o ofício às futuras gerações: “Hoje já têm meninas de 8 anos que acompanham a gente nas expedições”, afirma a cacica.
Mônica Renhinhãi’õ (Foto: Marcelo Okimoto -ISA)
Carolina lidera um grupo de 90 coletoras distribuídas em 11 aldeias da terra indígena. A coleta de 2020 foi recorde, um fato notável se for levado em conta o contexto da pandemia. Isso surpreendeu muita gente, principalmente os indigenistas da Opan (Operação Amazônia Nativa ), que apoiam o trabalho das coletoras, mas que durante todo ano passado suspenderam as atividades de campo por conta da Covid-19. Embora os indigenistas estivessem preocupados com a interrupção das atividades das coletadoras, o que aconteceu foi o contrário. “A gente tinha receio de que a coleta não iria acontecer em 2020. Mas as mulheres Xavante tomaram a frente do processo e nos disseram que não iriam parar”, conta Elisabete Carolina Pinheiro Zaratim, indigenista da Opan que trabalha diretamente com as coletoras de Marãiwatsédé.
Os desafios da coleta
Colheita do Buruti por xavante do grupo Nödzö’u da Rede de Sementes do Xingu
(Foto: Rogério Assis-ISA)
As expedições em busca das sementes são cercadas de desafios. Elas saem bem cedo das aldeias, munidas de cestos e facões e adentram na mata nas adjacências do território. Em algumas aldeias, por conta do desmatamento histórico e recente, essas matas estão mais distantes. Então o caminho é longo e pode durar algumas horas. No trajeto, e até mesmo durante a coleta, há o risco de serem picadas por cobras e aranhas. Uma das coletoras, Eliza, morreu de picada de cobra durante a coleta do ano passado.
A coleta é feita com a mão, a partir das sementes que caem das árvores. Em algumas situações elas utilizam o facão para abrir os cascos das sementes. Esse trabalho, geralmente, vai de junho até dezembro. O plantio ocorre na época da chuva, normalmente de outubro a dezembro. Mas a cada ano, devido ao desequilíbrio climático do planeta, esse período fica incerto: “É por isso que a gente precisa recuperar as árvores. Elas nos ajudam a respirar melhor e dão equilíbrio ao ciclo climático, pois aprendemos com os nossos ancestrais que as árvores ‘puxam’ a chuva”, explica a cacica Carolina.
Elisabete, a indigenista da Opan, destaca que da coleta, 10% das sementes vão para reflorestar Marãiwatsédé e o restante para a renda das coletoras. Elas entregam essas sementes para a Rede de Sementes do Xingu que as vendem para os comerciantes locais e depois repassam o dinheiro para as coletoras. Essa economia verde já rendeu mais de 78 mil reais, entre os anos de 2011 e 2019: “É uma renda que mensalmente vai de 300 a 500 reais. É um recurso que garante a alimentação, compra de roupas e medicamentos”, enumera Carolina.
Outra que se impressionou com o trabalho das coletoras durante a pandemia foi Eliane Xunakalo, assessora institucional da Federação dos Povos Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt). Ela se encontrou com Carolina durante uma roda de conversa de mulheres protagonistas, promovida pela organização não governamental (ONG) The Nature Conservancy, que apoia diferentes projetos de conservação e autonomia dos territórios indígenas pelo país. O encontro ocorreu em Brasília, e serviu como pré-aquecimento para o Acampamento Luta Pela Vida e a 2ª Marcha das Mulheres Indígenas , eventos que ocorreram entre os dias 22 de agosto a 10 de setembro para acompanhar a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre a validade ou não do marco temporal. O acampamento reuniu mais de 5 mil indígenas de 172 povos.
Em determinado momento da roda de conversa, as mulheres indígenas puderam compartilhar suas histórias e experiências durante a pandemia. Foi quando a cacica falou do trabalho de coleta em Marãiwatsédé. “Eu fiquei maravilhada, fascinada com a determinação dessas mulheres. Claro que eu já tinha ouvido falar sobre o trabalho delas. Mas tinha sido a primeira vez que essa experiência foi compartilhada tão de perto”, lembra Eliane.
A Fepoimt abriu um Departamento de Mulheres, cujo estatuto será finalizado ainda neste ano. A ideia é apoiar iniciativas que fortaleçam a autonomia das mulheres indígenas, principalmente para romper paradigmas de machismo muito fortes na cultura de alguns povos indígenas. “Com certeza, o trabalho das coletoras de sementes de Marãiwatsédé vai nesse sentido”, afirma Eliane. A Fepoimt é uma das principais organizações indígenas de Mato Grosso e possui sete regionais espalhadas pelo estado que representam mais de 50 mil indígenas de 43 etnias.
A retomada de Marãiwatsédé
Algodão colhido pelas Xavante ( Foto: Adriano Gambarini/OPAN)
Guerreiros, resilientes e com forte organização política, os Xavante nunca desistiram de retomar o seu território. Liderados pelo grande cacique Damião começaram ocupando em 2004 uma pequena faixa de Marãiwatsédé ao longo da BR-158. Resistiram aos diversos ataques de posseiros até que o processo na Justiça determinasse a retirada dos invasores em dezembro de 2013. Uma época de muita tensão em que a Força Nacional teve que ser acionada diante da resistência das pessoas em deixarem o local. No território, haviam comerciantes, pequenos agricultores, mas também grandes latifundiários e políticos que ocuparam ilegalmente a região no início da década de 1990.
Quando os Xavante retomaram a terra de seus ancestrais o estrago já estava feito: mais de 75% da cobertura vegetal do território havia sido devastada, ao longo de duas décadas, o que tornou Marãiwatsédé uma das terras indígenas mais devastadas da região amazônica.
Com muita fé, e dia após dia os Xavante se dedicam na recuperação da paisagem de Marãiwatsédé, ainda cercada de pastos da pecuária que foram abandonados depois da desintrusão promovida pelo governo de Dilma Rousseff. “Hoje, já se ouve o canto dos pássaros, as araras, os papagaios… os bichos estão voltando por causa das arvores”, comemora Carolina.
Cacica Carolina (Foto cedida por Cumbaru Filmes)
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