O primeiro caso de Covid-19 no Amazonas foi registrado em 13 de março, em Manaus. Desde então, a curva epidemiológica vem apresentado um intenso crescimento no estado. Até esta quarta-feira (29 de abril) já foram confirmados 4.801 casos e 380 mortes, conforme dados do Ministério da Saúde. A agência Amazônia Real entrevistou três especialistas, de distintas áreas de pesquisa na saúde, que analisaram a incidência dos casos no Amazonas, que é o epicentro da pandemia do novo coronavírus na região Norte do país.

Eles avaliam que é preocupante o aumento dos casos de Covid-19 nos municípios fronteiriços, principalmente aqueles com muitas populações indígenas e com falta de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) nos hospitais do interior do estado.

O Amazonas tem 62 municípios e uma população de mais de 4 milhões de habitantes, sendo a metade vivendo na capital do estado. Manaus concentra 64,38% dos casos confirmados da doença ou seja 3.091 notificações, e 288 mortes.

Além de Manaus, há confirmações de casos de coronavírus em 48 municípios: são 1.710 notificações, que representam 35,62% do total de registros do estado, e 92 mortes.

Bernardino Albuquerque, médico infectologista, professor e presidente do Comitê Central de Combate à Covid-19 da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) diz que “a situação é extremamente preocupante aqui no estado [do Amazonas], não só na capital, mas principalmente para o interior do estado, onde realmente temos um sistema de saúde extremamente deficiente”.

O médico, que foi presidente da Fundação de Vigilância em Saúde (FVS) de 2009 a 2019, demonstra particular preocupação com o acesso ao sistema hospitalar no interior do Amazonas: “apesar de que cada município há um hospital, são hospitais de baixa resolutividade. Isso nos deixa preocupados, pois a Covid-19 demanda maior assistência, e nós não temos isso”, resume o médico.

Enterros coletivos no Cemitério Municipal Nossa Senhora Aparecida
(Foto: Alex Pazuello/Semcom/27/04/2020)

As cidades do interior com casos confirmados de coronavírus, segundo o governo do Amazonas, são Manacapuru (405); Parintins (145); Iranduba e Itacoatiara com 115 casos cada; Maués (85); Tabatinga (83); Coari (70); Careiro Castanho (69); Carauari (66); Santo Antônio do Içá (61); Rio Preto da Eva (56); Autazes (52); Presidente Figueiredo (50); São Paulo de Olivença (33); Anori e Tefé com 27 casos cada; Amaturá (25); Benjamin Constant (24); Lábrea e Tapauá com 19 casos cada; Tonantins (18); Maraã (15); Careiro da Várzea (13); Boca do Acre e Manaquiri com 12 casos cada; Itapiranga (10); Beruri (9); Urucará (8) e Novo Aripuanã (7).

Bernardino considera que apesar dos casos de Covid-19 confirmados em São Gabriel da Cachoeira, que tem a maioria da população formada por indígenas e está na fronteira com a Colômbia e a Venezuela serem preocupantes, a situação mais delicada está na calha do Alto Solimões, na fronteira com a Colômbia e o Peru, onde há populações de povos indígenas isolados.

“Há transmissão instalada em praticamente todos os municípios daquela calha, e muitas comunidades indígenas. A única opção tem sido o hospital do Exército, e os hospitais municipais. São hospitais do estado, mas geridos pelo município, com sua capacidade bem fora de seus limites”, afirma Bernardino.

Para Jonas Brant, que é professor da Faculdade de Saúde da Universidade de Brasília (UnB), a situação é particularmente crítica na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, a mesma região apontada por Bernardino.

“A região existe como tríplice. O fechamento é muito mais político do que real. Não dá para imaginar essa fronteira fechada, pois um país depende do outro. Esse fechamento político dificulta a coordenação entre os países no nível local. Pois é no nível local que se dá a vigilância”, diz ele.

Jonas Brant é membro da Associação Brasileira de Profissionais de Epidemiologia de Campo (ProEpi) e possui longo histórico de estudo e atuação em saúde de fronteira e epidemiologias, com enfoque especial em Tabatinga (AM). O professor relata que “a região amazônica no Peru é a de maior incidência no país, depois [da capital] Lima. A preocupação é grande, pois a cólera já entrou no Brasil pela fronteira Brasil-Colômbia-Peru”. Jonas receia que a situação possa se repetir com a Covid-19 vindo do Peru e atingindo em cheio essa região do território brasileiro.

Um dos problemas da região no enfrentamento ao novo coronavírus é, para Jonas Brant, o modo como o Peru muitas vezes é deixado de lado.

“A gente pensa muito na relação Brasil e Colômbia, e isso é um problema, pois se ignora Santa Rosa, que pode ser uma fonte de origem de doenças. Como posso ter uma vigilância num local que só tem três fronteiras, quando eu tenho apenas duas envolvidas?”, questiona.

Jonas Brant conta que ao discutir com gestores e médicos planos de combate no interior do Amazonas, costumar alertar “que eles precisam se virar com que eles possuem disponível, pois quando eles precisarem do sistema de saúde, Manaus já terá colapsado”. Para o especialista, em “Tabatinga está começando agora a epidemia”. Jonas considera que “o grande desafio de todas essas cidades é a ausência de retaguarda de alta complexidade. Não existe UTI no interior do Amazonas”.

De acordo com os dados divulgados pela Secretaria de Saúde do Amazonas (Susam), em 23 de abril, a rede pública tinha 668 leitos para tratamento de pacientes com Covid-19, sendo 222 de UTI´s e 446 leitos clínicos distribuídos entre os hospitais Delphina Aziz, Platão Araújo, João Lúcio, 28 de Agosto e o hospital de retaguarda Nilton Lins, todos em Manaus. A taxa de ocupação média (naquela data), é de 95%, diz o órgão.

Já o hospital de campanha municipal Gilberto Novaes, gerido pela Prefeitura de Manaus, atendia, até dia 26 de abril, 38 pacientes, divididos em duas UTIs e outros 33 em leitos de unidades semi-intensivas.

Diante da falta de UTI´s em Manaus, a população que busca atendimento de emergência na rede pública sofre. Esther Silva, com Covid-19, morreu sem conseguir um leito no hospital Delphina Aziz, no dia 10 de abril.

Incidência alta no Amazonas

Pacientes no Hospital 28 de Agosto, em Manaus (Foto: Amazônia Real/27/04/2020)

Érika Berenguer é bióloga, especialista em ecologia amazônica e pesquisadora da Universidade de Oxford, na Inglaterra. Por sua longa trajetória de pesquisa na região Norte do país, a pesquisadora tem chamado atenção para os fatores regionais que determinam a incidência do novo coronavírus na região Amazônica. Ela afirma que “a região Norte tem mais casos por milhão de habitante, porém é a região que tem menos respiradores e UTI´s do SUS. Os três primeiros lugares com maior número de casos são Amapá, Amazonas e Roraima”. Diz que “tanto Amapá quanto Amazonas tem o dobro dos casos por milhão de habitante em comparação a São Paulo, Rio e Espírito Santo”. São dados compilados e analisados até hoje.

A pesquisadora receia ainda que a subnotificação pode ser maior na região Norte do que em outras regiões do país: “quando você tem letalidade alta, significa que você não está testando. Se a letalidade está em 10%, quer dizer que tem muita gente que você não está testando”.

Bernardino Albuquerque também aponta para a incapacidade da curva de contágio dar uma dimensão real do que está de fato acontecendo. “Na curva de casos acumulados, obviamente ela não me diz muita coisa em termos de tendência. Aquela curva é dependente do laboratório. Nós sabemos que a contagem a nível local, ela está extremamente deficiente. Consequentemente, aquilo que se visualiza é uma ponta o iceberg, que deve ser 10 a 15 vezes maior”, afirma o médico.

O médico descreve a existência de um problema na realização dos testes, relacionado à data em que são catalogados: “esses casos estão sendo catalogados como data de realização de exame, e não a data dos primeiros sintomas, que seria o correto. Se fosse na data dos sintomas, se teria uma visão melhor da tendência da cura”, afirma Bernardino.

O médico e professor da UFAM considera ainda que “não saímos da fase crítica de ascensão da curva. Acredito que teremos ainda duas ou três semanas para atingir o seu patamar maior e partir daí poderá ocorrer uma visualização de decréscimo”. Ele afirma que, diante da falta de equipamentos hospitalares complexos capazes de atender a população no interior do estado, a “tendência é piorar quando tiver a transmissão comunitária no interior”, diz Bernardino Albuquerque.

Particularidades da região amazônica

Indígenas nas ruas do centro de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas(Foto: Paulo Desana/Dabakuri/Amazônia Real/28/04/2020)

Érika Berenguer chama atenção para características particulares da região Norte, que ajudam a explicar as razões da elevada incidência da Covid-19 na Amazônia. “A região, além de estar pagando o preço por anos e anos de invisibilidade e má gestão, há medidas políticas que não levam em conta as especificidades do contexto”, diz a pesquisadora.

Ela aponta que “política pública na Amazônia só existe para meio ambiente. A gente tem um código florestal diferente, grandes operações. Tudo é voltado para meio ambiente, mas para nenhuma outra área do Estado”. O caso do Amazonas é paradigmático.

“Essa baixa infraestrutura [de equipamentos de saúde], no Amazonas, que é o maior estado do país, é um reflexo disso, da falta de políticas públicas na região” afirma a bióloga.

“Muitas peculiaridades da Amazônia fazem com que medidas que são tomadas no ar condicionado, não tenham eficácia na Amazônia”, critica a pesquisadora. Ela considera ainda ser uma “falácia que a Amazônia é uma região pouco povoada. Se você divide habitantes pela área total, sim. Mas há grandes concentrações de população, mesmo em comunidades”, disse Érika Berenguer.

bióloga Érika Berenguer cita como exemplo comunidades pequenas, de cem pessoas, mas que se dividem em poucas casas, e muitas vezes compartilhando dormitórios à noite, onde se estende a rede para dormir.

“Nas comunidades, todo mundo se conhece. Há um outro esquema de organização social. A comunidade depende dessas interações sociais: um que caça e distribui a caça, um que vai na cidade fazer sei lá o que e faz um monte de corre para as pessoas”, especifica.

Outro fator a ser levado em consideração, segundo Érika, diz respeito às doenças não tratadas que podem existir já na população. “Essa falta de estrutura médico-hospitalar da região amazônica como um todo significa que muita gente não procura tratamento médico, para várias outras doenças, que não a Covid”.

A pesquisadora aponta também, para a existência de um grande número de doenças não-tratadas: “você tem um monte de pessoas que tem condições pré-existentes, que lá, pela falta de acesso de histórico à saúde na região”. Isso, se reflete, para ela, em dados concretos, como a expectativa de vida: “todos os Estados da região Norte têm taxas menores de expectativa de vida em comparação à média nacional”.

Jonas Brant considera que os critérios de densidade populacional usualmente utilizados para decidir sobre dispersão de estruturas de saúde precisam ser repensados quando se trata da Amazônia: “no geral, a estrutura de saúde vai relacionada à densidade populacional. Mas na Amazônia, precisa usar um critério muito mais espacial do que populacional. O desafio é descentralizar o sistema de saúde. Em Tabatinga, por exemplo, pelo critério de densidade, não teríamos uma estrutura complexa. Mas a região precisa de uma estrutura complexa de saúde. Esse foi um erro histórico do passado”, afirma ele.

O professor aponta também a dificuldade de acesso à água limpa na região amazônica. Jonas diz que “apesar de ter muita água, é difícil acesso a água limpa. Se a água que estou usando está contaminada, vai contaminar todas as pessoas próximas a mim”.

Outro fator que preocupa o pesquisador, para o qual ainda faltam pesquisas conclusivas, diz respeito ao potencial de transmissão do vírus pelas fezes. “Vírus tem potencial de sobreviver nas fezes; ainda há poucas evidências da infectividade dele, da transmissão dele a partir dessa fonte. Mas é plausível. Se o vírus está sendo encontrado nas fezes, é plausível que ele possa contaminar outras pessoas. Mas ele provavelmente não sobreviveria muito tempo no ambiente”, afirma Jonas.

Segundo os dados do IBGE de 2010, apenas 62,2% da população de Manaus, por exemplo, possuem esgotamento sanitário adequado, índice que cai para 26,8% em Macapá (capital do Amapá) e chega a apenas 21,6% em Tabatinga (Amazonas) – ainda segundo os dados do IBGE de 2010.

Resposta do isolamento social

Hospital 28 de Agosto, em Manaus (Foto: Amazônia Real/27/04/2020)

Jonas Brant considera “que os lugares que estão conseguindo responder melhor, são os que conseguiram entender como se organizar dentro do seu território”. Ele cita o exemplo de cidades que mobilizaram “costureiros do próprio município para fazer máscaras, que criaram formas de monitorar grupos de risco. Essa ação concreta no nível local é o que pode fazer com que se responda melhor”, diz o pesquisador.

Para ele, entre os principais desafios a serem enfrentados na região amazônica é “fazer com que pessoas mantenham em isolamento”. Jonas considera que as “políticas sociais precisam ser muito agressivas. Se a pessoa depende de seu trabalho para ter renda e ela fica em casa, sua renda fica comprometida. Ela precisa ter uma certeza de que a estrutura social, o governo, vai dar conta de te amparar. Mas isso não está acontecendo”.

Para o médico Bernardino Albuquerque a resposta do Estado e da população não está à altura do problema: “infelizmente nós não tivemos, por parte do Estado, uma agilidade na implementação para receber uma situação como essa. Estamos correndo atrás do prejuízo Improvisando leitos, fazendo hospital de campanha, a toque de caixa, para tentar atender da melhor forma possível”.

Segundo Bernardino, o isolamento social tem um objetivo “que é exatamente diminuir a carga das pessoas doentes para as unidades de saúde e dar um tempo para que elas realmente se habilitem de forma possivel, para atender uma gama maior de pessoas com a Covid-19”. Ou seja, trata-se, de acordo com o médico, de uma estratégia para retardar a transmissão.

“Houve uma resposta efetiva da população? Não houve, pelo menos não na medida que queríamos. Não houve essa resposta, possivelmente por uma falta de comunicação, falta de maior poder de convencimento e sensibilização da população”, questiona o médico.

Bernardino Albuquerque diz, por fim, em tom preocupado: “infelizmente temos essa prática, que só começamos a responder na medida em que começa a atingir nossa família, aí você realmente tem uma conscientização maior”.

Passageiros de embarcação no Porto da Queiroz Galvão, em São Gabriel da Cachoeira
(Foto: Paulo Desana/Dabakur/iAmazônia Real/28/04/2020)

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Fonte: https://amazoniareal.com.br/coronavirus-pesquisadores-alertam-para-incidencia-dos-casos-e-falta-de-uti-no-interior-do-amazonas/

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