“Os pais não viram o filho; é um acontecimento de negligência ao nosso parente, ser enterrado diretamente num cemitério”, afirmou Dario Yawarioma Urihithëri
Manaus (AM) e Boa Vista (RR) – Os pais do jovem Yanomami, que morreu em consequência do novo coronavírus, não foram informados pelas autoridades do Ministério da Saúde sobre o sepultamento do filho, que aconteceu na noite de quinta-feira (9) no Cemitério Campos da Saúde, em Boa Vista. O líder Dario Yawarioma Urihithëri, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami (HAY), porta voz da Terra Indígena Yanomami, disse à Amazônia Real que faltaram respeito e conhecimento das autoridades sobre as cerimônias tradicionais da cultura indígena.
“Os pais estavam planejando levar esse corpo do filho deles para sua comunidade (Helepe), onde ele nasceu e onde ele cresceu, na sua terra. Eles não autorizaram para enterrar em Boa Vista”, afirmou Dario Yawarioma Urihithëri.
Na cultura Yanomami, segundo a Hutukara, os indígenas fazem rituais funerários de seus mortos com a cremação dos ossos e ingestões de cinzas. Dario explicou que a associação está estudando e vai elaborar um documento para acionar os órgãos públicos para questionar o sepultamento do jovem sem autorização dos pais. “Os pais (que estão em Boa Vista) não foram comunicados do enterro, isso está errado e estamos questionando”, disse.
Sobre o sepultamento ter sido realizado sem a presença dos pais, Dario voltou a afirmar que eles não foram consultados. “Nosso colega que foi a óbito de Covid-19, eles não autorizaram, não estavam sabendo, ele foi enterrado sem conhecimento dos pais. Os pais não viram o filho. Esse é um acontecimento de negligência ao nosso parente, ser enterrado diretamente num cemitério; isso a gente vai questionar na Justiça”, afirmou Dario.
Indagado sobre o que acha do protocolo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), adotado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, para o sepultamento de pessoas mortas pelo novo coronavírus, Dario disse que está estudando o documento e que as autoridades precisam explicar esses procedimentos aos indígenas.
“Hoje nós, Yanomami e Yekuana, estamos muito tristes. Primeira vez, jovem Yanomami foi a óbito por covid-19. Por isso estamos preocupados com essa doença, que está se aproximando aqui em Roraima e também, essa doença, vai entrar em nosso território Yanomami. Isso é preocupante, porque a nossa terra está invadida de garimpeiros e as autoridades precisam tomar providências para retirar esses garimpeiros”, disse o líder.
De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Portaria Conjunto Nº 1, de 30 de março de 2020, estabeleceu procedimentos excepcionais para sepultamento e cremação de corpos durante a situação de pandemia do Coronavírus em razão de exigência de saúde pública. A portaria considerou “a necessidade de providenciar o sepultamento em razão dos cuidados de biossegurança, a manutenção da saúde pública e respeito aos legítimos direitos dos familiares do obituado providenciado a inumação (enterramento)”. Em todo o país, as famílias são comunicadas pelos hospitais sobre a morte dos parentes. Os enterros são realizados na presença de poucos familiares.
“O protocolo fala no sepultamento, mas nós somos Yanomami e nossa cultura é diferente da de vocês. A gente está estudando como vai acionar os órgãos públicos. Essa recomendação é para os não indígenas, nós somos diferentes”, disse Dario, que é filho de Davi Kopenawa Yanomami.
O secretário da Sesai, Robson Santos Silva disse à Amazônia Real que o órgão vai seguir o estabelecido pelo protocolo do CNJ. “Compreendemos as peculiaridades dos povos, mas, nesse momento, essa portaria vai prevalecer”, afirmou. O coordenador do Dsei Yanomami, Francisco Dias confirmou que os pais não foram ao enterro do filho, mas não explicou se eles foram comunicados ou não do sepultamento.
Comunidade em isolamento
A morte do estudante, de 15 anos, aconteceu às 20h (21h em Brasília) desta quinta-feira (09) na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Geral de Roraima, em Boa Vista. O Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Yanomami, do Ministério da Saúde, disse que o corpo do adolescente foi sepultado uma hora após o falecimento por Covid-19, no Cemitério Campos da Saudade, na capital roraimense.
Os pais do jovem estão em isolamento na Casa de Saúde Indígena (Casai) Yanomami, que fica também em Boa Vista. Por causa do contato que eles tiveram com o filho, passaram pelo teste de Covid-19. O Dsei informou que o resultado foi negativo, mas eles continuam em monitoramento.
Como publicou a agência Amazônia Real, o jovem Yanomami começou a sentir os sintomas (febre, dor de cabeça e no corpo) de Covid-19 no dia 17 de março. Ele passou 21 dias com os sintomas do novo coronavírus, buscando por atendimento de saúde e não foi submetido no início da doença ao teste para Covid-19. Os atendimentos com internações aconteceram no período de 18 de março a 3 de abril – quando ele foi para a UTI com Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG).
No período em que ficou indo e voltando de hospitais, ele recebeu atendimento para tratar de doenças como meningite, malária, febre e dor muscular. No dia 23 de março, o adolescente chegou a receber alta do Hospital Geral de Roraima e foi para a comunidade Helepe, dentro da Terra Indígena Yanomami. No local, os pais o levaram para um atendimento de cura com um pajé.
O diagnosticado com a doença Covid-19 foi confirmado apenas no último dia 7 de abril com a contraprova realizada com o sangue (RT-PCR), que detectou o vírus. As múltiplas internações demostraram fragilidade no sistema da saúde indígena brasileira neste momento da pandemia mundial.
Além dos pais do estudante morto por Covid-19, na comunidade Helepi, onde o jovem nasceu, “12 pessoas, sendo 11 crianças e um adulto, estão sendo monitoradas e todas estão em isolamento social”, informou o Dsei Yanomami.
Cinco profissionais de saúde, que tiveram contato direto com o indígena, incluindo motorista e o piloto, também “estão sendo monitorados diariamente e estão em isolamento domiciliar sem apresentarem sinais e sintomas respiratórios até o presente momento”, disse o distrito.
“Enterrar sem comunicar é desumano”
Marcos Wesley de Oliveira, indigenista e assessor do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA), defende que as autoridades em saúde expliquem com clareza aos indígenas como funciona o protocolo de manejo de corpos determinado pelo Ministério da Saúde.
“Com relação aos Yanomami, é fundamental a Sesai informar com clareza aos familiares das vítimas que vierem a óbito o protocolo do Ministério da Saúde para óbitos por Covid-19. Simplesmente enterrar, sem comunicar, é desumano”, diz.
A cerimônia funerária Yanomami, que se chama Reahu, é um dos principais rituais da etnia. Ela reúne pessoas vindas de outras comunidades Yanomami e grupos aliados e dura vários dias. A prática é importante, pois garante que os mortos possam seguir seu caminho e encontrar seus antepassados.
“A prática tradicional dos Yanomami é de cremar o corpo, com algumas variações no ritual. Recentemente, algumas comunidades que passaram por processo de evangelização têm preferido enterrar seus mortos, mas ainda é uma pequena minoria. Seja como for, fazer o ritual funerário é fundamental para eles, como para muitas culturas, senão todas”, disse Oliveira.
Desnutrição e malária
O médico infectologista Joel Gonzaga, do Dsei-Y/Sesai, foi o primeiro profissional a comentar a morte do jovem Yanomami à reportagem ainda na quinta-feira (9). Ele disse que o quadro de saúde do estudante se agravou “com o comprometimento cerebral, tromboembolismo e complicações da resposta inflamatória do vírus”.
O estudante tinha a saúde afetada por ter contraído, antes da Covid-19, “doenças como desnutrição, anemia, malárias repetitivas e foi tratado, mês passado (março), de Malária Falciparum”, disse Gonzaga.
Nesta sexta-feira (10), Gonzaga disse que o novo coronavírus produz uma inflamação no pulmão, que ataca a célula para poder reproduzir. “O organismo, por sua vez, reconhece isso como uma agressão e vêm os macrófagos, que são outras células que estão ali, de defesa, e atacam a célula que está sendo invadida para matar o vírus. Isso produz um processo inflamatório imenso. O pulmão fica fibrosado, fica inflamado, e é essa inflamação que causa a Síndrome Respiratória Aguda Grave. A SRAG é resultado do processo inflamatório. O pulmão não consegue mais absorver o oxigênio e passá-lo para o sangue através dos alvéolos, porque está tudo inflamado lá dentro”, disse.
O caso de Covid-19 no estudante Yanomami é o primeiro notificado em indígena em Roraima. O estado tem uma população indígena de 70.596 pessoas. Os Yanomami somam uma população de 26.789 pessoas.
Com a morte do jovem, em Roraima subiu para 3 o total de vítimas de Covid-19 na população, segundo o Ministério da Saúde. Foram confirmados até o dia 9 de abril, 63 casos confirmados da doença, sendo: em Boa Vista (56), Alta Alegre (1), Cantá (3) e Bonfim (3), município que faz fronteira com a Guiana. A Sesai incluiu na plataforma de dados a confirmação do caso no jovem Yanomami.
A Terra Indígena Yanomami tem 9.664.975 hectares, localizada entre os estados do Amazonas e Roraima.São 380 comunidades. (Colaborou Izabel Santos e Elaíze Farias, de Manaus)
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