Por Izabel Santos

 

Mapeamento genético identificou quatro novas linhagens do vírus no estado. Uma delas só em Tabatinga

A imagem acima, mostra o porto do município de Tabatinga (Foto: Marcos Amend/Greenpeace)


Manaus (AM) – Uma pesquisa realizada pela Fiocruz Amazônia em parceria com Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM) identificou que 4 das 30 linhagens do novo coronavírus em circulação no Brasil só são encontradas no estado do Amazonas. E uma delas só foi localizada, até agora, no município de Tabatinga, na região do Alto Solimões, na fronteira do Brasil com a Colômbia. Esse contágio elimina a hipótese de que o vírus teria chegado no Amazonas apenas pela capital Manaus e então se espalhado pelo interior.

“O Amazonas teve introduções do novo coronavírus independentes do restante do Brasil, ou seja, através de pessoas que não contraíram a doença na região Sudeste”, destaca o coordenador da pesquisa, Felipe Naveca, vice-diretor de Pesquisa e Inovação da Fiocruz Amazônia.  “As regiões de fronteira são extremamente sensíveis em situações como essa, porque não temos a mesma intensidade de vigilância em saúde ocorrendo.”

A pesquisa analisou 79 amostras de pacientes que testaram positivo para Covid-19 em 18 municípios amazonenses, entre abril e junho: Anori, Autazes, Careiro, Iranduba, Itacoatiara, Jutaí, Lábrea, Manacapuru, Manaquiri, Manaus, Manicoré, Maués, Nova Olinda do Norte, Parintins, Presidente Figueiredo, Santa Isabel do Rio Negro, Santo Antônio do Iça e Tabatinga.

Com a pesquisa, agora são 8 linhagens existentes apenas no Amazonas. Desde o início da pandemia, já se sabia da existência de outras quatro linhagens da doença circulam entre os amazonenses. Com o atual mapeamento genético, é possível identificar a origem dos contágios. As quatro linhagens descobertas no Amazonas são: B.1.111, da Colômbia; B.1.107, da Dinamarca; B.1.1.2 e B.1.35, do Reino Unido.

Tabatinga faz fronteira com a Colômbia e com o Peru. Com mais de 67 mil habitantes, ela é a principal cidade do Alto Rio Solimões. A proximidade é maior com a cidade colombiana de Letícia, separada de Tabatinga apenas por uma faixa de rua. A região é de extrema importância para a Amazônia, pois abriga uma grande diversidade de povos indígenas, entre os quais os Tikuna, etnia mais numerosa da região e também a mais populosa do país.

É nessa região onde também vive os Kokama, o segundo povo indígena que registra o maior número de mortes no Brasil, com 57 óbitos de acordo com dados da Coordenação das Organizações indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), até o momento. No entanto, o caso detectado na pesquisa da Fiocruz não é de um paciente indígena.

“A nossa epidemiologia local não tem uma relação direta com o Sudeste. O Amazonas não necessariamente teve uma introdução de dentro do Brasil. Nós até temos esses casos pelas amostras que analisamos, mas não foi o principal”, acrescenta Felipe.

A existência de linhagens encontradas somente no Amazonas não implica que uma futura vacina contra o novo coronavírus seja ineficiente. O sarampo, explica Naveca, tem 24 subtipos e uma única vacina é eficaz contra a doença. Mas saber mais sobre o mapeamento genético do Sars-CoV-2 localmente fará diferença até para a mudança de protocolos de testagem. Naveca quer agora que o estudo seja realizado também em municípios vizinhos de Tabatinga, como São Paulo de Olivença, Benjamin Constant e Atalaia do Norte.

A Covid-19, alerta o pesquisador, ainda é grave e não permite relaxamentos. Os números comprovam: até domingo (15), os 62 municípios do Amazonas registraram 169.333 casos confirmados de Covid-19, sendo 66.724 em Manaus (39,40%) e 102.609 do interior (60,60%). Leia a entrevista concedida por Felipe Naveca à Amazônia Real:

Amazônia Real – Sobre essa linhagem encontrada somente na região do Alto Solimões, em Tabatinga, o que mais se pode falar sobre ela?

Felipe Naveca – Encontramos quatro casos dessa linhagem “colombiana” em Tabatinga, mas não foi entre pacientes indígenas. Queremos expandir a pesquisa para os municípios vizinhos de Tabatinga, tipo São Paulo de Olivença, Benjamin Constant e Atalaia do Norte para entender se essa linhagem teve sucesso em outro local além de Tabatinga. Por enquanto, não podemos afirmar que chegou em áreas indígenas. Para isso estamos tentando obter amostras confirmadas por RT-PCR dessa região.

Amazônia Real – O que a pesquisa revela?

Felipe Naveca – A ideia da pesquisa é entender a dinâmica de transmissão do vírus no Amazonas. No começo, tinha uma hipótese de que o vírus chegaria primeiro pela capital e que então se espalharia para o interior, mas não é bem isso que esta pesquisa nos mostra. Vimos que algumas introduções aconteceram via Manaus, mas outra que também aconteceu de maneira independente via fronteira com a Colômbia. As regiões de fronteira são extremamente sensíveis em situações como essa, porque não temos a mesma intensidade de vigilância em saúde ocorrendo. Acaba que esses eventos vão ocorrendo e nós não temos como monitorar. A ideia foi pegar o maior número de amostras representando diferentes regiões do estado e acabamos usando 79 genomas de 18 municípios. Vimos oito linhagens do novo coronavírus, sendo sete em Manaus e uma que só ocorreu em Tabatinga, no Alto Solimões. O que podemos dizer é que o vírus entrou pelo menos oito vezes no estado entre abril e junho, o que mostra que a entrada do vírus foi muito intensa e que ele se espalhou por várias rotas diferentes. Agora vamos fazer mais uma rodada de experimentos para chegar a 150 genomas e analisar mais profundamente o caminho seguido pelo vírus que entrou por Manaus foi para outros municípios.

Amazônia Real – Qual a importância do mapeamento genético do Sars-CoV-2 no Amazonas?

Felipe Naveca – Para conhecermos as rotas de circulação do vírus no Amazonas. Mas o mais importante é para estabelecer padrões seguros de diagnóstico. Hoje, o diagnóstico padrão-ouro é feito por meio de teste RT-PCR, que depende da informação genética do vírus, e conta com protocolos estabelecidos pela China ou pelos Estados Unidos, com ênfase nos vírus que estão circulando nesses países. Se o vírus que circula aqui acumular muitas mutações ao longo do tempo, à medida que circular, isso poderá comprometer o resultado dos exames e provocar falsos negativos. Por isso, precisamos conhecer os vírus que circulam no estado para que, caso seja necessário, possamos fazer ajustes nos protocolo de testes para aprimorar o diagnóstico independente do resto do mundo.

Amazônia Real – Essas descobertas explicam a virulência da pandemia em Manaus e no interior do Amazonas?

Felipe Naveca – É uma das coisas que queremos descobrir. Estamos em busca de dados do desfecho clínico com as vigilâncias de Manaus e outros municípios. Para isso é necessário cruzar as informações para saber quais amostras correspondem a pacientes com quadros graves. Mas prefiro não opinar agora, pois posso errar.

Amazônia Real – A diversidade de linhagens presentes no Amazonas pode afetar a imunidade que se espera com as vacinas que estão sendo produzidas?

Felipe Naveca – Se nós formos comparar o que conhecemos sobre sarampo, que tem 24 subtipos, uma única vacina é eficaz contra toda essa diversidade. Mas isso é para sarampo Não sabemos se isso vai acontecer com o novo coronavírus. Eu diria que, a priori, vai proteger. Mas só ao longo do tempo que vamos saber.

Amazônia Real – Mas é possível pelo menos saber se essas linhagens também exigem tratamento médico diferente aos pacientes infectados?

Felipe Naveca – Não. Nesse sentido só é possível deduzir que os médicos aprenderam a tratar melhor a doença. No início, ninguém sabia o que fazer. No mundo inteiro ainda estamos tendo muitos casos, mas a curva de mortes vem diminuindo. Hoje sabemos que a terapia com corticoides funciona, heparina, inibidores de trombose, e outras coisas que deram certo. Não é porque existe a circulação de uma linhagem menos agressiva, pode até ser, mas acredito que isso tenha mais a ver com tratamento.

Amazônia Real – A presença dessas linhagens diferentes pode indicar tendência a novas ondas da doença no Amazonas?

Felipe Naveca – Não sei nem se saímos da primeira onda, pois não fizemos um comportamento como em alguns países da Europa que chegaram quase a zerar o número de casos e depois tiveram um pico bem pronunciado. Mas a diversidade de linhagens mostra que as introduções do vírus continuam acontecendo e o comportamento da população sugere que o pior já passou. Esse é o medo. Não tem nada que indique que podemos relaxar, pois estamos vendo aumento do número de casos com repercussão nos hospitais em algumas cidades do Brasil. Essa guerra não está ganha. O fato de as coisas terem melhorado um pouco não quer dizer que elas não possam voltar a piorar. A Europa está voltando a cenários piores, os Estados Unidos chegaram a fazer o cenário absurdo de 100 mil casos por dia. Quando achávamos que não podia piorar, dobrou. Agora tem uma diferença, eles testam muito, nós não testamos nem um décimo do que eles testam.

O pesquisador da Fiocruz, Felipe Naveca (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Amazônia Real –  A Dinamarca anunciou que vai sacrificar milhões de visons, porque há casos de animais infectados pelo Sars-CoV-2 que deram origem a uma nova cepa que reinfectou humanos. Essa diversidade de linhagens do vírus no Amazonas aumenta a possibilidade de um episódio como esse ocorrer na Amazônia?

Felipe Naveca – O risco existe, mas se pudesse opinar a respeito desse episódio, eu seria contra sacrificar todos esses animais. Existe uma discussão sobre isso na comunidade científica que aponta que o risco para esse tipo de acontecimento é baixo. Sacrificar milhões de animais sem a comprovação de que eles de fato vão provocar algum problema para gente? Eu acho que o problema maior já está circulando entre os seres humanos, o Sars-CoV-2. A gente espera que isso não aconteça na Amazônia, não é impossível que ele vire um vírus selvagem e passe a infectar animais. Ele já pulou uma barreira entre espécies uma vez. Mas se for assim, vamos sair exterminando todos os possíveis reservatórios do vírus e o dano ecológico vai ser absurdo. É preciso ter mais dados sobre o assunto.

Amazônia Real – No Brasil, há poucos testes. Mais de 90% dos testes realizados no Amazonas são do tipo rápido. Isso complica o monitoramento da doença?

Felipe Naveca – O teste rápido nos ajuda a saber se o vírus está circulando em uma população de um município ou de um bairro de onde ainda não se tem dados. Mas o teste rápido tem baixa sensibilidade, e com isso acabamos por perder muitas informações mesmo que ele tenha sido positivo. Outro problema é que ele não detecta casos na fase aguda. Até o sétimo dia de sintomas o ideal é o teste do tipo RT-PCR. Somente lá pelo 15º dia é que o teste rápido começa a ser um pouco mais confiável.

Amazônia Real – Ainda sobre a deficiência de testagem, você acha que se nós realizássemos mais testes do tipo RT-PCR, teríamos conhecimento sobre ainda mais linhagens do novo coronavírus no Amazonas?

Felipe Naveca – No RT-PCR, coletamos amostras positivas e levamos para o laboratório. Somente com isso foi possível analisar amostras de diferentes regiões de saúde em 18 municípios. Trinta e nove por cento das amostras sequenciadas eram de Manaus, porque tem um universo maior.

Amazônia Real – A pesquisa analisou 79 amostras, mas registramos oficialmente mais de 160 mil casos. Por que o universo analisado pode ser tomado como representante da realidade no Amazonas?

Felipe Naveca – Nós vamos expandir as análises. Ainda faltou analisar amostras de Coari, Tefé e São Gabriel da Cachoeira e também queremos fazer mais análises em Tabatinga e São Paulo de Olivença, mas isso depende de logística e da amostra chegar com qualidade ao laboratório. Além disso, não é qualquer amostra que serve para sequenciamento. Existem vários desafios para que as amostras cheguem adequadas para análise como o deslocamento e a cadeia fria.

Amazônia Real – A ciência no Brasil vem passando por um processo intenso de desvalorização e perda de investimentos. Como foi possível fazer esse trabalho nesse contexto?

Felipe Naveca – Eu sempre digo que tivemos sorte, pois estávamos preparados para isso. Em dezembro do ano passado, tínhamos assinado o contrato para a criação de um novo laboratório de vigilância de vírus. Quando a pandemia chegou, ele já estava pronto e nós pudemos aumentar a capacidade de exames, porque tínhamos aumentado a nossa infraestrutura. Outra coisa foi a Rede Genômica de Vigilância em Saúde, uma luta de anos em parceria com a Fapeam (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas) e com Sedecti (Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação). Esses investimentos totalizam cerca de R$2 milhões da Fapeam, da Fiocruz e do CNPq, mas é irrisório frente aos investimentos estrangeiros.

Amazônia Real – Qual recado essa pesquisa dá para as autoridades em saúde do Brasil e do Amazonas?

Felipe Naveca – De que precisamos olhar as regiões do Brasil de maneira diferente e não achar que um único dado representa uma população enorme em um território de dimensões continentais. Isso é meio clichê, mas às vezes é esquecido na hora de computar os dados. Precisamos estar sempre fortalecendo as estruturas de vigilância em saúde, mas de maneira regionalizada. Do ponto de vista do Amazonas, isso mostra que nossas ideias de trabalhar em parceria, amadurecidas há anos, estão certas. Sozinha a Fiocruz não teria chegado até aqui. Sozinha a FVS também não. Só com a sinergia dessas ações e atuação dos membros da Rede Genômica foi possível fazer o sequenciamento das linhagens de vírus.

Amazônia Real – Quais os próximos passos da pesquisa?

Felipe Naveca – Imediatamente vamos analisar a amostras de outros municípios e de um período de metade junho para cá. Nesse período, houve uma diminuição de amostras porque tivemos um menor registro de casos. Depois em agosto voltou a subir. Vamos fazer o possível para chegar a 150 sequenciamentos e contar a história detalhada do caminho que o novo coronavírus seguiu no Amazonas.

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/covid-19-tambem-entrou-no-amazonas-pela-fronteira-com-a-colombia-na-regiao-do-alto-solimoes/

Thank you for your upload