São Paulo (SP) – Duas repórteres mulheres, feministas, de sangue indígena e negro e devotas da floresta foram responsáveis por criar e, cotidianamente, alimentar com propósitos, determinação e sentido filosófico a Amazônia Real, agência de jornalismo independente pioneira no trabalho de cobertura dos fatos do Norte do País. O trabalho delas não consiste apenas na apuração e publicação das notícias relativas à região, mas também em priorizar, entre esses fatos, aqueles que representam as histórias e as narrativas dos povos da Amazônia.

Por conta disso, a cearense Kátia Brasil e a amazonense Elaíze Farias foram protagonistas de um documentário da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que as homenageou no último dia 23 no Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo. O filme Amazônia Real enfoca o pensamento e a “práxis” das duas jornalistas, e é dirigido por Carolina Fernandes, assistente do cineasta Luiz Bolognesi no premiado A Última Floresta. Em seu currículo, Carolina também já realizou produções para a National Geographic, o Smithsonian Channel, HBO, Netflix, Facebook Watch e Al Jazeera English.

As questões agrária, a indígena, a étnico-racial, a feminina, as lutas afirmativas, o combate à violência no campo, o mundo econômico, o mundo científico, a  maior enchente em 119 anos no rio Negro: o mais interessante, no breve acompanhamento da rotina de Kátia e Elaíze mostrado pelo filme, é notar que nenhum dos temas fundamentais da cobertura tradicional do jornalismo aparece, para elas, desvinculado de uma questão maior – o pertencimento, a identidade, a visão de dentro.

Kátia Brasil é cofundadora da Agência Amazônia Real
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

No filme, Kátia Brasil, que nasceu em Fortaleza (CE) e foi criada no Rio de Janeiro, conta como chegou à Amazônia no início dos anos 90. Ela explica o motivo da mudança para Manaus, vinda de Roraima, onde tinha sido ameaçada por denunciar criminosos e de “amanhecer com a boca cheia de formiga” na cobertura investigativa da morte do conselheiro federal da OAB, Paulo Coelho, em 1993. O jornalista Plínio Vicente da Silva, que foi editor de Kátia no jornal A Gazeta de Roraima, confirma a ameaça. “Ela fez realmente uma matéria ampla. Se a Kátia tivesse ficado aqui [em Roraima}, ela não tinha ficado viva, ela teria sido assassinada”.

Com 30 anos de carreira, Kátia praticamente criou o conceito de correspondente na Amazônia (ao mesmo tempo em que o adaptou à condição de mãe em movimento), com relevantes passagens por veículos da chamada grande imprensa.  “Toda vez que tocava o telefone, e era ela, tinha uma pauta. E uma pauta boa. E era algo que ia causar, inclusive, uma repercussão muito grande”, lembra o jornalista Júlio Veríssimo, que trabalhou com Kátia Brasil quando era coordenador da Agência Folha.

Elaíze Farias, nascida em Parintins (AM), é remanescente do povo Sateré Mawué e, quando não está nas comunidades tradicionais e indígenas, apurando uma história ou mesmo ensinando os mistérios da Amazônia a quem pode amplificar seus significados, também pode eventualmente ser vista na Espanha ou na França recebendo prêmios internacionais ou fazendo palestras sobre o mundo que ela domina como poucas profissionais do jornalismo. ndo palestras sobre o mundo que ela domina como poucas profissionais do jornalismo. “Ela me ajudou a realmente entender como funciona a Amazônia, as populações, a própria floresta e o meio ambiente e quebrou todos os estereótipos que eu tinha”, relata o fotógrafo Bruno Kelly, colaborador da agência.

Elaíze Farias, durante filmagens do documentário
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Outra coisa que chama a atenção no documentário, além da firmeza de Kátia e Elaíze, é a reverência genuína das jornalistas para com sua matéria-prima de trabalho. Mesmo habituadas ao mergulho diuturno na floresta, é fabuloso ouvir Elaíze, de origem ribeirinha, contar como um dia, cortando o rio Negro num barco, ouviu um som enigmático muito forte vindo da atmosfera da floresta, algo parecido com uma respiração ofegante, mas alto e contínuo. Algo que nunca tinha ouvido – “e não era onça”, porque onça não chega tão perto. “A floresta tem coisas muito misteriosas que têm que ser respeitadas”, ensina a repórter, como se ecoasse uma crônica de Darcy Ribeiro. “Tem seres aqui humanos e não-humanos, como dizem os Tukano.”

Veja o documentário da Abraji com as fundadoras da Amazônia Real:

A força do pertencimento

“Os dias têm sido difíceis na Amazônia”, diz Kátia Brasil no início de uma jornada de trabalho. Mais uma vez, garimpeiros armados entraram em uma unidade de conservação, é preciso comunicar-se com a Polícia Federal, com o ICMBio, apurar e informar o resto do País (e do mundo) sobre aquilo que o jornalismo distanciado, enfronhado no coração do poder econômico, não vai conseguir alcançar. E que envolve um compromisso de representação precisa das etnias, das culturas, das sociedades e do sistema ecológico que habitam a região há milhares de anos.

“No passado, diziam que os indígenas iam desaparecer, e no entanto estamos aqui”, reforça Elaíze, enfatizando isso não só como uma constatação, mas também uma declaração de princípios – ou, como diz Ailton Krenak, de que se trata de uma resistência que não é de hoje, tem mais de 500 anos já. Ao mesmo tempo, salienta Elaíze, sua ênfase na origem indígena tem a força do pertencimento, “mas não é um atributo a mais; sou apenas uma jornalista”.

No caso, essa declaração talvez seja apenas demasiado modesta, porque o reconhecimento do trabalho que Kátia e Elaíze desenvolvem na Amazônia Real com seu núcleo de jornalismo independente ultrapassa o do exercício cotidiano de informar, que é a função da qual a imprensa trata. Elas incorporaram a esse arcabouço básico a tarefa de potencializar as vozes daqueles que tradicionalmente são ignorados – um caso escandaloso recente foram as grandes manifestações de 176 povos indígenas contra a tese do marco temporal em Brasília, na semana passada. Reunindo 6 mil indígenas, o Acampamento Luta pela Vida foi invisibilizado pela grande imprensa, uma clara demonstração de sua parcialidade na questão.

“Eu acho que a Elaíze é aquela repórter que sempre teve o jornalismo como uma profissão muito mais ampla em relação ao que determinadas pessoas pensam a respeito do jornalismo”, conta o escritor e jornalista Wilson Nogueira. Essa determinação de ampliar o espectro de interesses do jornalismo ambiental, incluindo nele a própria condição feminina, foi e segue sendo referencial – seja denunciando a exploração sexual de meninas indígenas ou enfrentando o poder institucional patriarcal e excludente.

“Nós não podemos esquecer que o Brasil ainda oprime a mulher. E a Kátia sempre foi uma voz pela qual muitas mulheres da Amazônia puderam ter o seu problema julgado”, afirma Júlio Veríssimo, opinião com a qual concorda a ativista indígena e enfermeira Vanda Witoto: “E a gente se inspira nessa coragem dela também, para enfrentar todos os desafios; ela fala assim mesmo: vocês se mantenham firmes no seu propósito”.

A cineasta Carolina Fernandes durante as filmagens do documentário em Manaus
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

 

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/documentario-revela-a-visao-de-dentro-da-amazonia-real/

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