Por Nicoly Ambrosio

Indígenas cobram de donas de pequenas hidrelétricas reajuste de valores para comprarem peixes e conseguirem manter ritual reconhecido pelo Iphan. No último dia 25 de junho, eles foram reprimidos por seguranças do grupo Bom Futuro, da família Maggi Sheffer (Imagem: Reprodução redes sociais).


Manaus (AM) – Impactado por oito Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) há mais de 10 anos, o povo Enawenê-Nawê, em Mato Grosso, quer rever as compensações dos empreendimento que atendem a sua comunidade. As barragens das usinas contaminaram o rio Juruena, que banha a aldeia das 1.400 pessoas da etnia, e reduziram o estoque de peixe, principal alimento dos Enawenê-Nawê. Também alteraram significamente o ritual Yaõkwá, reconhecido pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio cultural imaterial. Por falta do pescado no rio, eles passaram a fazer o ritual com peixes comprados de comércios ou vindos de doações. O ritual, que continua acontecendo, chega a durar de quatro a sete meses.

No último dia 25 de junho, os indígenas foram reprimidos por seguranças da empresa Hydria Participações e Investimentos S.A, uma holding pertencente ao grupo Bom Futuro, de propriedade da família Maggi Sheffer, gigante do setor do agronegócio, e que detém a maioria das PCHs na região. Os Enawenê-Nawê, que faziam uma manifestação pacífica, foram recebidos com tiros de balas de borracha, tiveram veículos destruídos e tiveram de sair correndo para não serem feridos. Ao menos 20 indígenas foram atendidos em hospitais. Além dos disparos das balas de borracha, eles tiveram mochilas, documentos, redes, cobertores, celulares, carteira com dinheiro e outros pertences queimados.

Havia cerca de 400 indígenas Enawenê-Nawê na manifestação, que ocorreu nas proximidades de algumas das PCHs, localizadas na região das cidades de Sapezal, Rondon, Parecis, Telegráfica e Campos de Júlio. Elas pertencem aos grupos empresariais Bom Futuro e Amaggi, donas das PCHs de Segredo, Telegráfica, Rondon, Sapezal, Cidezal, Ilha Comprida, Campos de Júlio e Parecis. Há previsão de que outras três PCHs sejam construídas próximas de territórios indígenas.

Segundo as lideranças ouvidas pela Amazônia Real, a manifestação foi o ato mais radical deles, já que as empresas se recusam a conversar e atendê-los.

Mesmo assim, os indígenas decidiram persistir e ir até a entrada da PCH Telegráfica. A liderança Holikiari Enawenê-Nawê contou à Amazônia Real que, quando chegaram no local, foram recebidos à bala. “Era pacífica. Não levamos borduna, nem flecha. A gente só queria discutir com o pessoal da usina, já que eles não aceitavam nossa proposta. Quando chegamos lá colocaram vários seguranças para nos receber”, relatou.

A liderança afirmou ainda que foram atacados por seguranças da empresa que estavam com os rostos cobertos. “Eles disseram: ‘índio vai tudo morrer’. Isso foi no dia 25 e durou até a noite. Também destruíram um carro que a gente tinha. Quando terminou, deixamos o carro lá. Entramos em contato com o procurador da República Ricardo Pael [do Ministério Público Federal em Mato Grosso], e pedimos ajuda. Ele mandou segurança para a gente, mandou PM e uma delegada, que também não queria a gente ali”, declarou Holikiari, que ficou com ferimentos nas pernas após a reação violenta dos seguranças.

Dias antes da manifestação, eles haviam enviado uma carta endereçada às empresas Bom Futuro e Grupo Amaggi. Também incluíram a Hydria Participações e Investimentos S.A na demanda do documento. Os indígenas exigiram respostas ao reajuste no valor da compensação dada mensalmente à comunidade, impactada culturalmente, socialmente e ambientalmente de forma negativa pela operação dos empreendimentos no Juruena e seus afluentes.

A comunidade relatou na carta que os rios em que pescavam antes, Juruena e Iquê, foram impactados pelas PCHs e que a quantidade de peixes que produzem, não é mais suficiente para oferecimento em rituais sagrados. “Ressaltamos a importância de cumprirem também com o acordo, sobre o pagamento das dívidas ativas da Associação Enawenê-Nawê, junto aos fornecedores de peixes de tanque, pois a comunidade teve que comprar grande quantidade de peixes, para a realização do ritual Yaõkwá”, escreveram na carta.

Marcas de balas de chumbinho pelo corpo de indígena (Reprodução: redes sociais)

Como “resposta”, as empresas chegaram a  oferecer doações de cestas básicas, cobertores e alguns quilos de peixe aos indígenas, além de uma estruturação de mutirão social com a prestação de serviços à saúde e identificação na aldeia e auxílio na construção de projetos sociais. Nenhuma proposta de reajuste da compensação em dinheiro foi apresentada.

Os Enawenê-Nawê protestam contra a construção e operação das PCHs desde o início dos anos 2000, por temerem os impactos no território e no seu modo de viver. Ainda em 2007, as obras de cinco PCHs foram iniciadas mesmo sem haver qualquer consulta aos cinco povos indígenas impactados (Parecis, Nambikwara, Menkü, Rikbátsa e Enawenê Nawê), como determina a Constituição Federal.

Em 2010, em um dos diversos episódios de resistência do povo Enawenê-Nawê contra os danos gerados pelas PCHs, eles chegaram a acampar na região de Sapezal, revoltados com as águas barrentas e impróprias para consumo devido às obras de desvio do rio Juruena para a construção dos empreendimentos. 

Os indígenas reforçam a tragédia ambiental que causou o desaparecimento e a contaminação dos peixes do Juruena em consequência do funcionamento das PCHs. “Elas [as PCHs] estão a 40km da Terra Indígena, mas polui o rio Juruena. Nós dependemos dele. O rio está todo poluído. O peixe fica magrinho, não cresce mais, fica contaminado. Antes da usina o peixe era bom, era um rio certo. Agora o rio Juruena fica contaminado. Tem muito assoreamento”, denuncia Holikiari.

Compensação insuficiente

Preparação para o ritual dos Enawenê-Nawê (Foto: Leo Wery)

O território originário dos Enawenê-Nawê foi homologado em 1996. Ele possui uma única grande moradia chamada aldeia Doloikwa e Kotakwinakwa, e têm o peixe como base da sua alimentação. Eles não comem carne vermelha e dependem quase exclusivamente do peixe, além de sua vida espiritual girar em torno de rituais de pesca ao longo do ano.

Há mais de 10 anos eles tentam rever o acordo feito com as empresas em relação aos impactos ambientais e culturais devastadores que as usinas hidrelétricas causam em seu território, sobretudo em relação ao pescado.

Segundo a liderança Holikiari Enawenê-Nawê, desde o começo da implantação das PCHs, a comunidade cobrou das empresas o Estudo de Componente Indígena e a consulta prévia, livre e informada, para assegurar a compensação dos danos e assim liberar a construção das usinas. “A gente pediu compensação e não nos deram. Quando a gente fez um protesto e queimamos uma das usinas [em 2008], aí eles abriram mão e nos passaram 20 mil reais. Isso foi em 2009, quando aceitaram pagar a compensação”, explicou.

Depois disso, Holikiari alegou que a comunidade foi procurada de novo pelas empresas, para construir novas usinas, em 2012. “A gente abriu mão, aceitando que fizessem. Mas a gente pediu uma renegociação, para aumentar a compensação”, disse.

Na ocasião das negociações com outros povos impactados pelas PCHs, as empresas ofereceram, em acordo, uma compensação de R$ 4 milhões para os Rikbaktza, Paresi, Nambiquara e Mynky, além dos Enawenê-Nawê. Estes foram os únicos que, inicialmente, recusaram. Tempos depois, por pressão das empresas e da força dos interesses econômicos e políticos, acabaram aceitando R$ 1 milhão

Segundo Holikiari, este valor foi insuficiente e, observando hoje, é incompatível com a capacidade financeira das empresas, que pertencem às famílias Maggi e Maggi Sheffer. 

“Eles nos pagavam depois 26 mil reais por mês. Hoje, recebemos 36 mil por mês. Esse valor é pouco. Não dá pra comprar nada para uma comunidade de 1.400 pessoas”, diz ele, referindo-se apenas aos prejuízos financeiros e materiais, sem falar dos culturais e espirituais.

“Esses 36 mil reais não dá para comprar peixe para fazer nosso ritual. Não dá pra ajudar em nada. Temos uma aldeia grande, aumentou a população. Mas eles querem só pagar cesta básica de arroz, nos mandar cobertas, mandar alguns quilos de peixe. Essa sempre é a resposta deles. A comunidade não aceita mais isso. Não queremos cesta básica”, relatou Holikiari. 

Os indígenas cobram um repasse mensal de 400 mil reais mensais e defendem que o principal motivo para a solicitação é garantir a compra dos peixes ao longo dos anos, usados na alimentação e principalmente nos rituais sagrados da aldeia.

“Queremos que o valor seja 400 mil reais por mês – no acordo – para ajudar na aldeia. Para construir ritual, para comprar peixe para o ritual. Quando a usina apareceu, não conseguimos mais pegar o peixe para fazer o ritual. Peixe não tem mais. Queremos 400 mil mensais para comprar ferramentas, comprar peixe, construir o fortalecimento das aldeias”, justificou a liderança.

De acordo com Fausto Campolli, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em Mato Grosso, os Enawenê-Nawê, por viverem em uma sociedade complexa e se relacionarem com entidades superiores e poderosas, tem sua razão de viver na terra em tentar a harmonia entre o mundo material e o mundo espiritual. Essa harmonia passa pelos rituais e obrigatoriamente pelo peixe.

“Eles não estão tentando remanejar esse acordo porque querem só dinheiro. Eles fazem isso por conta dessa relação espiritual com esses seres. O dinheiro não é especificamente para o uso pessoal, o dinheiro é para ter condições de se harmonizar nas relações com esses seres nos rituais”, explicou Fausto.

Xoxokwa Enawenê, outro representante da comunidade indígena, afirma que o recurso atual dado pelas empresas não paga toda a logística para fortalecer os rituais Enawenê-Nawê, que necessitam de dinheiro também para a compra de combustíveis usados em carros e barcos.

“Eles [empresários] têm que aumentar o recurso para poder comprarmos peixe para o ritual. Precisamos também pagar gasolina de carros e barcos para poder buscar esses peixes, já que não conseguimos mais pescar no nosso território. Nós compramos cerca de 30 toneladas de peixes por mês para o ritual e esse recurso não dá para pagar tudo isso, não serve e fica faltando para o ritual, por isso queremos o reajuste”, disse.

Nas diversas tentativas de renegociação, a comunidade chegou a enviar mais de oito cartas às empresas reivindicando a revisão do acordo, além de elaborar o protocolo de consulta livre, prévia e informada do povo Enawenê-Nawê, mas as propostas nunca foram aceitas. “Queremos diálogo e nunca conversaram com a gente sobre a nossa proposta de reajuste”, disse.

Para Xoxokwa Enawenê, a comunidade ainda precisa conversar com as empresas e está cansada de ter suas demandas ignoradas. “Depois de mandar várias cartas e pedir por reuniões, nós cansamos. Nós nos desafiamos a manifestar, porque manifestar lá é um desafio. A gente queria conversar com a empresa, manter um diálogo e pegar informações para a comunidade”, reitera. Ele reforça que os Enawenê-Nawê querem diálogo para reajustar a compensação pelos danos causados em seu território e vão continuar lutando e reivindicando os seus direitos.

“O recurso não é para comprar coisas pessoais e para o nosso próprio bem, e sim para ser usado na manutenção dos rituais do povo Enawenê-Nawê”, desabafou Xoxokwa.

No dia 3 de julho, em resposta a carta enviada pelos Enawenê-Nawê, a empresa Hydria Participações e Investimento S.A disse que desde o começo das instalações das PCHs, se voluntaria ao apoio dos rituais dos indígenas, fazendo doação de peixes, alimentos e combustíveis, “na intenção de manter uma relação amigável com a Comunidade Indígena Enawenê-Nawê e colaborar com a manutenção à cultura dos povos tradicionais”.

A Hydria ainda afirmou, contrariando o depoimento dos indígenas, que sempre manteve “postura de diálogo, no intuito de manter o ambiente amigável e privilegiando tratativas respeitosas” e que se colocou à disposição para conversar com representantes da comunidade indígena por diversas vezes nos últimos meses. 

A empresa não respondeu às reivindicações dos indígenas pelo reajuste da compensação no valor de 400 mil reais. Em vez disso, apresentou aos Enawenê-Nawê uma sugestão de projeto que “visa o desenvolvimento sustentável, econômico e independente da Comunidade Indígena Enawenê-Nawê”. O projeto sugerido pela organização seria executado em três etapas, após aprovação e concordância da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e da própria comunidade indígena. As etapas apresentadas consistem, entre outras coisas, na doação de 400 cestas de alimento, contendo até 13 itens cada uma, doação de dois mil quilos de peixes e doação de 400 cobertores para os indígenas. 

O que dizem as empresas

PCHs Cidezal da Hydria Energia (Foto: Divulgação Hydria)

Em resposta enviada por e-mail à reportagem da Amazônia Real, o Grupo Amaggi informou que “sempre cumpriram com todas as suas obrigações legais junto aos indígenas e estão adimplentes com os órgãos ambientais. Além disso, ao longo dos anos, as empresas vêm apoiando de forma voluntária e, para além de suas obrigações legais, a cultura e rituais da comunidade indígena”. Ainda reforçaram que estiveram abertos ao diálogo “pacífico e equilibrado com todos os envolvidos, a comunidade indígena, demais empreendimentos do entorno, Funai e autoridades competentes”.

Em 2022, o Grupo Bom Futuro, gigante do agronegócio, adquiriu a empresa Hydria Participações e Investimentos S.A, detentora das PCHs Cidezal, Parecis, Rondon, Telegráfica e Sapezal. O Bom Futuro, assim como o Grupo Amaggi, pertence à família Maggi Scheffer, uma das mais ricas do país. Quatro de seus membros estão na lista dos 15 bilionários do agronegócio no Brasil, publicada pela revista Forbes em abril deste ano. A companhia é propriedade do empresário Eraí Maggi Scheffer, conhecido como o “Rei da Soja”. Eraí é primo do ex-ministro da Agricultura Blairo Maggi, também acionista da Amaggi.

Sobre a reação ao protesto dos indígenas no dia 25 de junho, a Hydria informou que os seguranças evitaram uma tentativa de invasão dos indígenas Enawenê-Nawê às PCHs do rio Juruena.

“Há cerca de 60 dias, um grupo de indígenas têm ameaçado invadir as PCHs, na tentativa de alterar os termos de um acordo que ocorreu no ano de 2012. As ameaças foram comunicadas oficialmente a todas autoridades competentes, inclusive à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai)”, afirmou a companhia. A empresa ainda informou que a Justiça Federal emitiu decisão judicial autorizando o uso de força policial “para proteção da empresa e das pessoas que trabalham nas PCHs”.

Em uma nota de repúdio, publicada no dia 28 de junho, o Cimi Regional Mato Grosso pediu que as autoridades tomassem as devidas providências para garantir que as manifestações possam ocorrer sem violência, levando em consideração os pedidos dos Enawenê-Nawê. Pediram também para que a empresa que controla as PCHs seja enquadrada no rigor da lei após essa ação. “O Conselho Indigenista Missionário Regional Mato Grosso se solidariza com o povo Enawenê-Nawê. Os Enawenê-Nawê são originários desta região e devem ser respeitados. A causa indígena é de todos nós!”, declarou o Cimi.

O Ministério Público Federal (MPF) determinou a instauração de apuração sobre o confronto envolvendo os seguranças das PCHs e os indígenas. O órgão declarou que além da apuração criminal, vai avaliar, no âmbito cível, a possibilidade de se apurar ou discutir, judicialmente ou não, os impactos causados pelas PCHs sobre o modo de vida dos Enawenê-Nawê.

A Defensoria Pública da União (DPU), por meio da Defensoria Regional de Direitos Humanos em Mato Grosso (DRDH/MT), informou que abriu processo para apurar os ataques sofridos pelos Enawenê-Nawê durante os protestos. “Estas centrais hidrelétricas têm prejudicado o fluxo dos rios e a reprodução dos peixes, alterando o modo de vida dos povos indígenas da região. Agora a DPU está apurando o ocorrido e buscando soluções que garantam os direitos e a proteção dos Enawenê-Nawê”, disse o órgão.

A Funai não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre como tem acompanhado e apoiado os Enawenê-Nawê em sua luta por reajuste no valor da compensação dada pelas empresas.

Fonte: https://amazoniareal.com.br/povo-enawene-nawe/

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