Publicada no Diário Oficial da União, nesta quinta-feira (3), a portaria prevê a realização de estudos para a criação da Terra Indígena Lago do Soares e Urucurituba, região que é cobiçada pela Potássio do Brasil (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).


Manaus (AM) – Após 20 anos de espera, os indígenas Mura das aldeias Soares e Urucurituba, em Autazes, no Amazonas, comemoraram a notícia de que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) constituiu o Grupo Técnico para iniciar estudos sobre a delimitação territorial. “Para nós é um prazer receber a equipe da Funai novamente aqui para fazer esse trabalho”, antecipou o tuxaua Admilson Pavão, de Urucurituba.

A criação do GT é o primeiro passo para o reconhecimento do território. Os Mura reivindicam suas terras desde 2003, apesar de as comunidades terem mais de 200 anos de história. O GT fará estudos de natureza antropológica, etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica e ambiental, necessários à identificação e delimitação da Terra Indígena Lago do Soares e Urucurituba, descreve a Portaria Nº 741, de 1º de agosto, publicada no Diário Oficial da União desta quinta-feira (3).

O tuxaua Sérgio Nascimento não escondeu a alegria com a notícia. “Eu quero agradecer muito a Deus por isso. Se Deus quiser vai dar tudo certo. A gente espera isso há muito tempo. Fico feliz por isso. Fico até emocionado. É o que mais a gente precisa hoje é disso. Só quero agradecer a todos que estão do nosso lado”, celebrou.

A notícia, que revela uma mudança de rota do governo federal, trouxe esperança às lideranças indígenas. “A gente fica alegre, né? A gente fica muito grato com que a Funai possa mesmo concluir esse trabalho. A gente está na expectativa, está na espera e ansioso para que isso aconteça”, acrescentou o tuxaua Pavão.

Em março deste ano, a Amazônia Real publicou uma reportagem mostrando que a Funai e o Ibama sinalizaram por meio de pareceres que não havia indicação para a realização de estudos voltados ao reconhecimento do território dos Mura. A resposta da procuradoria dos órgãos federais foi dada à juíza Jaiza Fraxe, da Justiça Federal do Amazonas, que decidirá se o projeto de exploração de potássio em Autazes poderá seguir adiante. A Potássio do Brasil, empresa que pertence ao banco canadense Forbes & Manhattan, do mesmo grupo da mineradora Belo Sun, no Pará, é a maior interessada nessa mineração.

O município de Autazes está assentado sobre uma imensa mina de cloreto de potássio de classe mundial. O potássio é a matéria-prima para a produção de fertilizantes, elemento vital para o agronegócio. É por isso que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que contava com o apoio maciço do setor agropecuário, pressionava para que essa exploração no Amazonas começasse o quanto antes. 

Grupos contrários

Lideranças indígenas obsevam área de desmatamento dentro da TI Trincheira do povo Mura, em Autazes, Amazonas (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

A criação do GT da Funai não serve de garantia para assegurar os direitos dos Mura. Os estudos podem indicar, inclusive, que esse povo não terá direito a uma terra indígena. E é por isso que, localmente, se esperam novas frentes de pressão de pessoas ou grupos favoráveis à mineração e à exploração de outros recursos naturais da região.

Nos últimos meses, pecuaristas, fazendeiros e políticos locais têm iniciado uma mobilização contra a demarcação, sobretudo desde que a Funai esteve em Soares e em Urucurituba, no fim de março. Lideranças indígenas passaram a sofrer ameaças, inclusive de morte, e ouvindo difamações de pessoas contrárias à demarcação. 

“Estamos realmente sendo ameaçados pelo pessoal dos brancos, dos comerciantes, fazendeiros. Dizem que vão tacar fogo na nossa casa, que vão nos bater. Tudo isso são ameaças que sofremos ao longo do tempo. Não só eu, como o tuxaua de Soares também. Mesmo assim estamos na luta. Não vamos desistir da demarcação. Os Mura são um povo guerreiro”, disse Pavão à reportagem.  

Pavão conta que os fazendeiros da região estão se mobilizando, realizando eventos para arrecadar dinheiro para contratar advogados que possam atuar contra a demarcação dos territórios indígenas. Há, segundo o tuxaua, um clima de animosidade no ar. 

“Às vezes ficam falando as coisas e a gente fica calado, escutando, ninguém revida nada. A gente tem orientado nas nossas reuniões, para o nosso povo não ficar revidando as coisas. Deixa falar o que eles quiserem. Se querem briga, que briguem na Justiça. Nós estamos deixando eles falarem à vontade”, conta.  

Em abril, a Justiça Federal do Amazonas acatou pedido do Ministério Público Federal e determinou que a Funai respondesse em um prazo de 30 dias sobre a constituição de um grupo de trabalho para demarcar a Terra Indígena Soares/Urucurituba, denominação que eles deram à área após autodemarcação feita em 2018 pelos Mura.

“Para o Ministério Público Federal é o simples cumprimento do dever da Funai, conforme pedido do MPF na ação judicial. Esse é um importante passo inicial para garantia dos direitos do povo Mura”, comentou o procurador Fernando Merloto Soave.

Histórico de conflito

Liderança indígena Tuxaua Sérgio Freitas observa placa da mineradora Potássio Brasil dentro do território indígena (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

De acordo com a Funai, existem 16 terras Mura no município de Autazes. Algumas já estão homologadas pelo governo federal, outras foram apenas regularizadas. Há também as delimitadas, declaradas e em processo de estudo. A aldeia Soares tem a situação mais delicada, já que é nela que está localizada a jazida de potássio, cobiçada pela Potássio do Brasil. 

Os indígenas de Soares e da aldeia de Urucurituba solicitaram a demarcação de seu território à Funai, ainda no ano de 2003, durante o primeiro governo do petista Luiz Inácio Lula da Silva. Até hoje o pedido nunca foi atendido. Cansados de serem ignorados pelo poder público, em 2018, os próprios indígenas decidiram fazer a chamada autodemarcação com o nome TI Soares/Urucurituba. A ação, porém, não tem valor jurídico, mesmo que as comunidades tenham quase 200 anos de fundação.  

Nos últimos quatro anos, na gestão do ex-presidente Bolsonaro, os órgãos públicos passaram a atuar em favor da empresa Potássio do Brasil, que compra terrenos para dar início ao processo de mineração. A Potássio do Brasil diz ter investido 180 milhões de reais no projeto, que teve os trabalhos de campo iniciados em 2009. A empresa já teria executado  27 mil metros de sondagens com 33 furos concluídos na região. 

A  Funai informa que a ação  tem por objetivo a reunião de informações para a qualificação da reivindicação fundiária indígena – Aldeias Lago do Soares e Urucurituba.  Em seguida, as informações reunidas foram analisadas pela equipe técnica da Funai, que apontou para a necessidade de constituição de Grupo Técnico multidisciplinar para realizar os estudos de identificação e delimitação.

O lobby da mineradora tem avançado em outras frentes locais. O governador do Amazonas Wilson Lima (União Brasil) afirmou, no início deste ano, que uma das prioridades de seu segundo mandato é a exploração de silvinita no município de Autazes. Em seu plano de governo na disputa estadual, Lima afirmou que “o desafio, no curto e longo prazos, será o de envolver todos os esforços no sentido de obter o licenciamento para a exploração das reservas de silvinita de Autazes”. 

A agência procurou o governo do Estado para que se manifestasse sobre a criação do GT por parte da Funai. Até a publicação desta reportagem, não obtivemos retorno, porém o governador Wilson Lima já declarou publicamente ser contra a demarcação dos territórios. 

“O Estado é totalmente contra [a demarcação]. Vão acabar com a Bacia Leiteira de Autazes e definitivamente com a possibilidade da exploração do potássio e de uma área que a gente não tem conhecimento de populações tradicionais indígenas”, declarou.A reportagem procurou a Potássio do Brasil para saber o posicionamento da empresa sobre a criação do GT por parte da Funai, mas, até a publicação da reportagem não houve resposta. Tão logo ela seja enviada a reportagem será atualizada. 

Vista aérea da estrada que liga a comunidade Mura de Urucurituba, onde será construído o porto, à comunidade Soares (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

Fonte: https://amazoniareal.com.br/grupo-tecnico-autazes/

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