Por Lucas Ferrante e Philip M. Fearnside

Ameaças à democracia brasileira

O Presidente Bolsonaro gosta de usar a expressão “meu Exército”, o que implica que ele não aceita o papel dos militares como não envolvidos na política. Em 08 de março de 2021, Bolsonaro anunciou que “seu” Exército não obrigaria a população a ficar em casa para conter a pandemia de COVID-19 [1]. Uma declaração de Bolsonaro sugeria o uso do Exército para promover um estado de sítio no país, o que violaria a constituição brasileira, indicando uma tentativa de golpe militar para instaurar uma ditadura [1].

Em 14 de março de 2021, o ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva declarou que o exército não se inclinaria para o autoritarismo e em 30 de março foi demitido por se recusar a alinhar as forças armadas com a ideologia do presidente Bolsonaro [2]. Imediatamente após, os comandantes do Exército, da Marinha, e da Aeronáutica renunciaram, alegando que as Forças Armadas não participariam de uma aventura golpista [3]. O substituto-chave para o comando do Exército foi escolhido a dedo por Bolsonaro ao invés de seguir o procedimento normal baseado na antiguidade [4], e dois meses depois sua subserviência foi demonstrada ao conceder um perdão sem precedentes a um general do exército ativo que fez um discurso político em um comício de Bolsonaro [5]. O presidente Bolsonaro fez esforços extraordinários para agradar as várias forças policiais federais e estaduais do Brasil, incluindo a concessão ou obtenção de salários generosos e outros benefícios [6]. Esse apoio é visto como uma possível alternativa à liderança militar em uma tentativa em potencial de golpe (por exemplo, [7]).

Os meios de comunicação relataram isso como ações orquestradas para um golpe militar (Ver [1]). Se isso ocorrer, pode-se esperar a invasão de terras indígenas por grupos ruralistas na ausência de qualquer proteção governamental para esses povos. Bolsonaro tem defendido a volta da ditadura militar, e todos os anos manda os militares comemorarem a data do golpe militar de 1964 (por exemplo, [8]). Tanto antes quanto depois de sua eleição como presidente, Bolsonaro elogiou repetidamente um dos mais notórios torturadores da ditadura militar brasileira [9, 10]. Embora não seja universal, é clara a existência de um apoio significativo à ideologia de Bolsonaro entre os militares [11].

Bolsonaro afirmou que as Forças Armadas lhe devem total apoio [12], o que reforçou os apelos de seus apoiadores por um golpe militar. As instituições brasileiras não devem ignorar o risco de um golpe militar no Brasil, dada a necessidade de autopreservação de Bolsonaro. Em 13 de agosto de 2021, o presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), um defensor declarado de Bolsonaro, foi preso por ameaças ao Supremo Tribunal Federal (STF) [13]. Em 20 de agosto, Bolsonaro apresentou ao Senado um pedido de impeachment do juiz do STF que havia ordenado a sentença apesar das poucas chances de aprovação [14]. Acredita-se que isso seja um movimento para desviar a atenção dos crimes do próprio presidente durante a pandemia, conforme apontado por vários senadores [15]. A atual “crise institucional” do Brasil entre os três poderes do governo (legislativo, executivo e judiciário) que é alimentada pelo Presidente Bolsonaro e seus apoiadores, inclui ataques constantes ao sistema eleitoral, sugerindo que a próxima eleição presidencial de outubro de 2022 seria fraudada. Isto pode ser parte de uma estratégia de preparação para uma revolta de apoiadores para derrubar uma derrota eleitoral, seguindo o exemplo do presidente dos EUA, Donald Trump [16].

Consequências potenciais para Bolsonaro

O Congresso Nacional do Brasil detém a autoridade para destituir o presidente. Mais de 120 moções pedindo o impeachment do presidente Bolsonaro estão em tramitação na Câmara dos Deputados, mas o presidente da Câmara (Artur Lira), apoiador de Bolsonaro, não permitiu que nenhuma delas avance pelo processo de aprovação da comissão e votação do plenário [17]. As justificativas para o impeachment vão desde o tratamento desastroso do presidente da pandemia de COVID-19 até corrupção, destruição ambiental e tentativas de minar a democracia. O tratamento dos povos indígenas está entre as justificativas. As justificativas para o impeachment do presidente Jair Bolsonaro são mais do que suficientes para permitir que o Congresso considere essa opção.

O Supremo Tribunal Federal (STF) possui uma variedade de poderes, incluindo exigir que o Congresso Nacional aja em determinados assuntos. Em julho de 2020, um membro sênior do STF fez duas declarações públicas associando os militares ao genocídio (incluindo o Ministério da Saúde, então controlado pelos militares) com base no tratamento da COVID-19 em povos indígenas [18, 19]. Várias acusações criminais contra o Presidente Bolsonaro poderiam ser consideradas [20]. As ações judiciais poderiam ser estendidas aos funcionários de órgãos governamentais que contribuíram para a vulnerabilidade desses povos durante a pandemia, como os chefes técnicos do IBAMA que insistem em realizar audiências públicas na rodovia BR-319. A vulnerabilidade dos povos indígenas afetados também significa que os juízes brasileiros têm a responsabilidade de suspender esses projetos durante a pandemia.

A Organização dos Estados Americanos (OEA) pode emitir uma variedade de medidas para seus Estados membros. Em julho e outubro de 2020 e em janeiro de 2021, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) emitiu medidas cautelares ao governo brasileiro devido à falha do governo em tomar medidas para proteger povos indígenas do COVID-19 [21-23]. Em julho de 2021 a APIB apresentou uma denúncia à CIDH para evitar um novo massacre dos povos Munduruku, Yanomami e Guajajara [24]. Além da CIDH, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) também inclui a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), à qual a CIDH pode encaminhar casos para julgamento.

O sistema das Nações Unidas inclui o Escritório do Alto Comissariado de Direitos Humanos (ACNUDH). Em 23 de agosto de 2021, o Relator Especial da ONU sobre os direitos dos povos indígenas pediu que o Supremo Tribunal Federal do Brasil defendesse os direitos à terra indígena [25]. O Conselho de Direitos Humanos da ONU (UNHRC), também parte do sistema ONU, recebeu um relatório em 28 de junho de 2021 de seu conselheiro especial para a prevenção do genocídio levantando formalmente a questão do “risco de genocídio” dos povos indígenas do Brasil [26].

O Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, recebeu uma série de casos contra o presidente Bolsonaro por “crimes contra a humanidade” e “genocídio”. Em 9 de agosto de 2021, a APIB apresentou um processo acusando o Presidente Bolsonaro desses crimes [27]. Esta é a primeira vez que líderes indígenas apresentam um caso desse tipo diretamente, e não por meio de intermediários [28], como um caso apresentado em julho de 2020 por 60 organizações de saúde no Brasil [29]. Em 16 de agosto de 2021, a APIB divulgou um dossiê de reclamações internacionais sobre os povos indígenas do Brasil [30]. O tribunal apenas procede com o julgamento de uma pequena porcentagem dos casos que recebe, mas deve atuar em alguns dos casos pendentes do Brasil, tanto aqueles baseados na destruição do meio ambiente quanto na violação dos direitos dos povos indígenas. É urgente que o Brasil reverta a progressiva erosão dos direitos dos povos indígenas. [31]


A imagem que abre este artigo foi feita em Brasília – DF, durante a Cerimônia do Dia do Exército, com a Imposição da Ordem do Mérito Militar e da Medalha Exército Brasileiro (Foto: Isac Nóbrega/PR/19/04/2022)


Notas

[1] Jornal da Cultura 2021. Jornal da Cultura | 29/03/2021 Jornal da Cultura, 29 de março de 2021.

[2] Cantanhêde, E. 2021. Ministro da Defesa foi demitido após recusar alinhamento das Forças Armadas ao governo Bolsonaro. Estadão, 29 de março de 2021

[3] Gielow, I., V. Sassine & G. Uribe 2021. Comandantes das Forças Armadas pedem demissão em protesto contra Bolsonaro. Folha de S. Paulo, 30 de março de 2021.

[4] Frazão, F. & E. Castanhêde. 2021. Bolsonaro quebra tradição de antiguidade e coloca general Paulo Sérgio para comandar ExércitoEstadão, 31 de março de 2021.

[5] G1 2021. Exército livra Pazuello de punição por ter participado de ato político com BolsonaroG1, 03 de junho de 2021.

[6] Mena, F. 2021. Polícias podem apoiar aventura golpista de Bolsonaro? Folha de São Paulo, 09 de julho de 2021.

[7] Kotscho, R. 2021. Militares desembarcaram, mas Bolsonaro não desiste dos delírios golpistasUOL, 30 de março de 2021.

[8] DW (Deutsche Welle) 2021. Brasil é citado na ONU por risco de genocídio de indígenasDW, 28 de junho de 2021.

[9] Fearnside, P.M. 2018. Why Brazil’s new president poses an unprecedented threat to the Amazon. Yale Environment 360, 08 de novembro de 2018.

[10] Mazui, G. 2019. Bolsonaro chama coronel Brilhante Ustra de ‘herói nacional’G1, 08 de agosto de 2019.

[11] Machado, L. 2021. Demissão de comandantes não tira apoio militar a Bolsonaro, dizem cientistas políticos. BBC News Brasil, 30 de março de 2021.

[12] Carta Capital 2021. Bolsonaro diz que Forças Armadas devem ‘apoio total às decisões do presidente’. CartaExpressa, 12 de agosto de 2021.

[13] Borges, R. 2021. Bolsonaro promete ir ao Senado por impeachment de ministros do STF: “Extrapolam limites constitucionais”. El País, 14 de agosto de 2021.

[14] Vargas, M., M. Rocha & T. Resende 2021. STF vai manter foco criminal contra Bolsonaro, e Câmara tenta se afastar de criseFolha de São Paulo, 22 de agosto de 2021,

[15] Carta Capital 2021. Impeachment de Moraes e Barroso é cortina de fumaça para esconder crimes de Bolsonaro, diz senadorCartaExpressa, 14 de agosto de 2021.

[16] Gielow, I. 2021Trump promove sedição e fornece roteiro para Bolsonaro em 2022. Folha de São Paulo, 06 de janeiro de 2021,

[17] Ferreira, F. 2021. Entenda o poder de Lira sobre impeachment de Bolsonaro e os limites para eventual atuação do STF. Folha de São Paulo, 18 de julho de 2021.

[18] Mello, I. 2020. ‘Exército está se associando a genocídio’ na pandemia do novo coronavírus, diz Gilmar Mendes. Folha de São Paulo, 11 de julho de 2020.

[19] Teixeira, M. 2020. Gilmar cita genocídio de índios e volta a criticar excesso de militares no Ministério da Saúde. Folha de São Paulo, 14 de julho de 2020.

[20] Brandino, G. 2021. Entenda possíveis caminhos para eventual criminalização do presidente BolsonaroFolha de São Paulo, 31 de março de 2021.

[21] IACHR (Inter-American Commission on Human Rights) 2020. Inter-American Commission issues precautionary measures as COVID-19 threatens indigenous communities. IACHR. 22 de julho de 2020.

[22] IACHR (Inter-American Commission on Human Rights) 2021. A CIDH adota medidas cautelares em favor de membros dos povos indígenas Guajajara e Awá da Terra Indígena Araribóia no Brasil. IACHR, 13 de janeiro de 2021.

[23] ILRC (Indian Law Resource Center) 2020. Indigenous peoples of Brazil denounce human rights violations during the pandemic before the Inter-American Commission on Human Rights. Indian Law Resource Center, 06 de outubro de 2020.

[24] APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) 2021. APIB leva para Comissão Interamericana denúncias para evitar novo massacre aos povos Munduruku, Yanomami e GuajajaraAPIB, 01 de julho de 2021.

[25] OHCHR (Office of the High Commissioner of Human Rights) 2021. “Brazil: Supreme Court must uphold indigenous land rights” UN expert.OHCHR, 23 de agosto de 2021.

[26] DW (Deutsche Welle) 2021. Brasil é citado na ONU por risco de genocídio de indígenas. DW, 28 de junho de 2021.

[27] Pontes, N. 2021. Indigenous Brazilians accuse Jair Bolsonaro of genocide at ICC. DW (Deutsche Welle), 09 de agosto de 2021.

[28] APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) 2021. Unprecedented: APIB denounces Bolsonaro before the ICC, in The Hague, for indigenous genocideAPIB, 09 de agosto de 2021.

[29] Jucá, B. 2020. Profissionais de saúde levam a Haia denúncia contra Bolsonaro por genocídio e crime contra a humanidadeEl País, 26 de julho de 2020.

[30] APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) 2021. International Complaints Dossier of Brazil’s Indigenous Peoples. 54 p. APIB, 16 de agosto de 2021.

[31] Este texto é traduzido de: Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2021. Brazilian government violates Indigenous rights: What could induce a change? Die Erde 152(3): 200-211.


Leia os outros textos da série:

Governo viola direitos indígenas: 1 – Retórica presidencial

Governo viola direitos indígenas: 2 ‑ Desmantelamento de órgãos e proteções legais


Lucas Ferrante é doutorando em Biologia (Ecologia) no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Manaus, AM. Tem pesquisado agentes do desmatamento, buscando políticas públicas para mitigar conflitos de terra gerados pelo desmatamento, invasão de áreas protegidas e comunidades tradicionais, principalmente sobre Terras indígenas e Unidades de Conservação na Amazônia.

Philip Martin Fearnside É doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 700 publicações científicas e mais de 600 textos de divulgação de sua autoria que podem ser acessados aqui. https://philip.inpa.gov.br

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